Voltar    
  MEMÓRIAS DOCUMENTAIS SOBRE O DIREITO À EDUCAÇÃO: LEITURAS E SENTIDOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EM SÃO GONÇALO

Márcia Soares de Alvarenga –UERJ/FFP
Michelle dos Santos-(bolsista)UERJ/FFP

O presente trabalho integra parte da pesquisa realizada através do Programa Institucional de Iniciação Científica (Pibic), ao longo do ano de 2004. O problema da pesquisa situa-se dentro do debate e das produções que analisam os efeitos das políticas educacionais desenvolvidas pelos sistemas públicos municipais e suas repercussões sobre o direito à educação de crianças, jovens e adultos.
A pesquisa vem sendo realizada na cidade de São Gonçalo, município localizado na região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro. Retratado como o terceiro município mais populoso do Estado, 889.828 habitantes (IBGE, 2000). Os dados sobre a escolarização do município exibem uma taxa impactante de 36,9% de analfabetismo (IBGE, INEP, 2000) entre a população com mais de 15 anos, contabilizando 126.364 pessoas excluídas do direito à educação. Em relação ao direito à educação das crianças de 0 a 6 anos, constatamos que apenas 33 escolas públicas da rede municipal oferecem ensino pré-escolar, em brutal contraste com a rede de ensino privada que, além de contabilizar a oferta de 234 escolas nesta modalidade de ensino, supera o poder público municipal em número de escolas de ensino fundamental, respectivamente, 230 escolas contra 61 escolas.
Os dados acima apresentados nos falam que um longo caminho há de ser percorrido no que se refere ao direito à educação pública e gratuita de crianças, jovens e adultos, historicamente excluídos do direito à educação em São Gonçalo.
Se, por um lado, estes dados exibem um processo inverso de acesso ao direito à educação pela via do privatismo, por outro lado, nos perguntamos sobre a existência de fontes documentais orais e escritos capazes de registrar a intensa luta desencadeada pelos segmentos sociais populares, organizados neste município, em ações de responsabilização dos poderes públicos face ao atendimento da demanda pelo direito à educação pública e gratuita.
Em relação a este questionamento, Oliveira (2002) assinala sobre as dificuldades em se obter dados, relatos e documentos escritos que possam contar as lutas pelo direito à educação engendradas pelas comunidades gonçalenses. Diante destas dificuldades, buscou “na voz do passado” , através dos relatos orais, construir a historiografia dos movimentos sociais comunitários nas lutas pelos direitos de cidadania.
No percurso teórico-metodológico da presente pesquisa, concordamos que, ao optarmos pelas fontes documentais, sejam estas de forma oral e/ou escrita, podemos estar contribuindo para construção da memória dos movimentos sociais pelo direito è educação no município de São Gonçalo, considerando que a dispersão e/ou o não registro destas memórias podem levar ao silenciamento e apagamento das lutas populares pelo direito a se viver uma vida digna, destituindo os movimentos populares do seu papel como protagonistas da própria História de São Gonçalo.
Inspirados em Queiroz (1976), consideramos ser o uso das fontes documentais material qualitativo para a obtenção de informação e expressões que nos permitem captar situações, comportamentos, opiniões e valores de uma realidade social.
Desse modo, vimos construindo instrumentos de coleta e análise de dados que têm nos permitido avaliar e analisar a universalização do direito à educação, expansão da oferta de matrículas para os jovens e adultos gonçalense, evasão e repetência, analfabetismo, políticas de currículo, de formação de professores, financiamento, dentre outros.
Em nossas buscas por fontes escritas documentais, privilegiamos o levantamento de materiais impressos sobre a luta pelo direito à educação, com um olhar voltado para a década de 1980, do século XX, e o movimento em torno da elaboração do Plano Municipal de São Gonçalo laborado entre o período de 2003-2004, do presente século.
Os motivos relacionados a escolha destes períodos e contextos, devem-se ao fato de , primeiramente, observamos ter sido a década de 1980 um dos mais férteis períodos vividos pelos movimentos sociais comunitários, não somente em São Gonçalo, mas também, em outros municípios brasileiros na luta pelo direito à educação, considerando que este direito, responsabilizado como dever do Estado, será legitimado na Constituição Federal de 1988.
Em relação ao período compreendido entre 2003-2004, por entendermos que as lutas contemporâneas pelo direito à educação vêm sendo dinamizadas, considerando que, na última década do século passado, temos observado uma progressiva municipalização do ensino fundamental em função das diretrizes do governo federal quando este passa assumir a descentralização como um dos princípios das políticas educacionais, forjando outros espaços reivindicatórios através de ações tensionadas entre o poder local e instituições e /ou movimentos organizados da sociedade civil.

Breves reflexões sobre os movimentos associativos de moradores em São Gonçalo e a luta pelo direito à educação.

É importante destacar que o (re)surgimento dos movimentos associativos irão ser intensificados em decorrência da criação de novos laços de solidariedade, entre os quais se encontram as associações de moradores, como locus de oposição e luta, impulsionados pelo autoritarismo do governo militar, entre as décadas de 1960 a 1980, bem como pelo agravamento das desigualdades existentes no cotidiano das grandes metrópoles brasileiras.
Em início da década de 1980, Jacobi e Nunes (1983) assinalavam que tais desigualdades desencadearam um quadro de reivindicações populares que se alterava, cuja marca principal eram as manifestações e ações diretas dos grupos organizados ou não, dirigindo críticas ao uso clientelista da máquina estatal em relação ao atendimento das demandas sociais.
Pode-se, então, inferir que os desdobramentos em torno da autonomia e controle das ações do Estado dependeriam da capacidade dos movimentos sociais de se organizarem e se mobilizarem, conferindo a estes o controle das demandas realizadas, vindo a favorecer a ampliação de outras políticas públicas sociais com vistas à inserção das classes populares nas instâncias de deliberação e orientação das reivindicações a serem atendidas.
Durante este período, as associações de moradores tiveram um destacado e inovador papel político-social. Considerando a sua heterogeneidade, nelas, pode-se dizer, que coexistem, co-participam indivíduos de poder econômico diversos, jovens e idosos, pessoas de diferentes religiões, etnias, gênero, orientações sexuais, etc... Além da variada composição de seus sujeitos, as associações de moradores assumem diferenciadas frentes de reivindicações e lutas, desde que correspondam às necessidades e à defesa de interesses dos moradores do bairro.
Para Singer (1980:86), a importância das associações de moradores de bairro é ainda maior, pois possuem dimensões que “tendo por base, formas de coesão social que viabilizam sua expressão ‘para fora’, no sentido de reivindicarem, junto aos poderes públicos, a satisfação das demandas que decorrem das próprias exigências da vida urbana”, constituem-se, ao mesmo tempo, formas de solidariedade e coesão comunal e de luta por melhores condições de vida da população.
Estes fatos corroboram para o entendimento das associações de moradores como sendo, durante este período, uma das estratégias organizativas e organizadas da sociedade civil que apresentam uma modalidade de representatividade e diretividade reivindicatória mais imediata, face às ações direcionadas às entidades governamentais, principalmente, àquelas mais próximas como as do âmbito municipal, como pode ser exemplificado em matéria publicada pelo Jornal “O São Gonçalo”, em 21 de janeiro de 1982, sob o título “Anaia perde posto de saúde, escola e área de lazer”:
A Associação de Moradores e Amigos do Anaia (...) está fazendo um apelo a coordenação municipal de Defesa Civil, no sentido de que faça uma visita no bairro para ver as condiçõies daquele logradouro depois das últimas chuvas. Segundo os moradores, apenas o posto médico vem funcionando precariamente,(...). A escola da Associação, que funcionava em conjunto com o MOBRAL, parou suas atividades(...). Com isto, 28 crianças da alfabetização e 100 do pré-escolar estão sem assistir aulas(...)
A comunidade levou o problema ao conhecimento do Prefeito Jayme Campos(...).

Vale destacar que a própria luta pelo direito à educação, em algumas comunidades de São Gonçalo, e em particular no bairro de Anaia, resultaram na fundação de associações de moradores, como bem destaca a matéria publicada pelo Jornal “O Globo”, em 09/01/1983:
A própria consolidação de nossa associação de moradores não pode ser dissociada da luta pela escola – explica Herbene (...). Como aqui não havia escola, muitos pais me procuravam para ensinar seus filhos na minha casa. Em julho de 80, já eram 48 adultos e 54 crianças, quando então a Comissão de Pais e Professores da Associação decidiu por um convênio com o MOBRAL.

Funcionando numa casa antiga do bairro que abrigava, também, a sede da Associação de Moradores, a escola comunitária do Bairro de Anaia ocupava uma sala de aula em precárias condições. Após vários movimentos e manifestações públicas dentro do município, a Associação atravessa a Baia de Guanabara com cerca de 300 crianças acompanhadas por pais e responsáveis e, portando faixas e cartazes, permanecem 4 horas nos jardins do Palácio Guanabara à espera de uma audiência com o Governador Chagas Freitas, a fim de ver atendida a promessa feita pelo, então, Secretário de Educação Arnaldo Niskier, de construção de uma escola pública naquela comunidade .
Podemos afirmar, no entanto, que a trajetória histórica das associações de moradores apresenta momentos cíclicos motivados pelas condições objetivas e conjunturais dentro das quais se desenvolve.
Sendo assim, estas próprias condições podem determinar os períodos de maior impulsão desses movimentos como, também, condicionar uma situação de aparente inércia ou refluxo. Assim, assistimos na década de 1990 um refluxo no movimento associativo comunitário, cujas análises apontam para muitas direções.
Alguns interlocutores do movimento associativo de moradores atribuem o refluxo atual do movimento a partir de diferentes perspectivas, entre as quais são destacadas: a opção das lideranças em atuarem na militância político-partidária, redução no investimento na formação de base política, impedindo a renovação de lideranças e da reformulação dos discursos relacionados ao seu papel (Porto, 1995), dispersão do sujeito coletivo frente às políticas neoliberais que levaram à privatização e flexibilização dos direitos sociais, entre outros.
A despeito deste novo contexto, há que se observar a existência, ainda expressiva, das associações de moradores em São Gonçalo que, mesmo eivadas por contradições internas, tentativas de cooptação pelo poder local e disputas pela hegemonia da entidade representativa do movimento, a UNIBAIRROS, ainda se constitui em um importante palco de aprendizado político e organizativo das comunidades na luta pelos direitos à cidadania.
Podemos, também, afirmar que a existência de vários veículos da imprensa local e municípios adjacentes, alguns com mais de sete décadas de existência , têm nos fornecido rico material de análise sobre os movimentos sociais pelas melhorias das condições de vida da população gonçalense, criando possibilidades, no exercício de nossa pesquisa, a levantar dados sobre a proposição reivindicativa destes movimentos em relação ao direito à educação.

Os novos movimentos sociais em torno da luta pelo direito à educação em São Gonçalo: alguns sentidos sobre o Plano Municipal de Educação.

O cenário construído pelas orientações neoliberais, nas duas últimas décadas, irá favorecer a produção de um novo papel que deverá ser protagonizado pelos municípios, efetivando o seu desempenho na condição de principal instância de administração local, cujo dispositivo legal foi estabelecido pela Constituição de 1988 e referendada pela LDB em 1996. Estas bases vêm (re)configurando o campo legal-institucional nas quais se sustentam as mudanças na formulação das políticas públicas sociais, a partir de uma nova agenda escrita pela reforma do Estado.
Este contexto tem suscitado reflexões sobre a problemática da descentralização da educação no Brasil, refletindo os diferentes processos e as experiências de municipalização do ensino, considerando encontrar-se esta problemática dentro das fronteiras político-institucionais dos poderes locais (Lesbaupin, 2001), cujas medidas, voltadas para se garantir o direito à educação, seguem o curso dos interesses em disputa e expressam as condições de produção e os conflitos dos grupos sociais que lutam pela hegemonia de sua determinação.

A partir desta perspectiva, a descentralização é considerada um instrumento de modernização gerencial da gestão pública (Azevedo, 2002), pela crença nas suas possibilidades de promover a eficiência e a eficácia dos serviços públicos. Assim, é difundida como uma poderosa diretriz para a correção das distorções educacionais, por meio da otimização dos gastos públicos.
Para muitos estudiosos deste processo (Melo, 1997 e Azevedo, 2002), a descentralização adotada pode ser categorizada como economicista-instrumental, cuja legitimidade ideológica se assenta “sobre uma dupla equação: quanto mais descentralização mais proximidade; quanto mais proximidade mais democracia e eficácia” (Charlot in Azevedo, 2002: 55).
Tal perspectiva entra em confronto com uma outra de caráter democrático-participativo, tomando a descentralização administrativa e, por extensão, a municipalização dos serviços públicos, como um dos meios de alargamento do espaço público, principalmente quando este se fundamenta no estabelecimento de relações sociais e políticas substancialmente democráticas. Nesta segunda perspectiva, os segmentos locais participam da concepção e da formulação das políticas a serem implantadas, não se restringindo, apenas, a colocar em ação os processos decisórios oriundos do poder central.
A descentralização, nesta perspectiva, além do fortalecimento do poder local exige, concomitantemente, o estabelecimento de outras relações entre o Estado e a sociedade, de modo que os canais de participação e decisão, por parte da população, se alarguem, proporcionando uma maior fluidez das suas demandas, e efetivando uma maior participação dos setores locais na gestão dos serviços públicos (Cunha, 1991; Lesbaupin, 2001; Azevedo, 2002; Souza e Faria, 2003).
Com efeito, a descentralização tem como pressuposto básico uma sociedade civil com alto grau de organização, capaz de controlar os serviços através de sua participação na esfera pública. No que se refere ao setor educacional, quando se trata, sobretudo, do planejamento e da gestão do ensino fundamental, a descentralização e a participação vêm sendo tomadas como referências para as medidas políticas em implementação.
Além disso, as convocações feitas para a participação das comunidades locais têm se explicitado na sugestão e/ou obrigatoriedade de formação de Conselhos Municipais (escolar, da merenda, do Fundef e tantos outros). Na mesma direção, situam-se as medidas que visam propiciar a autonomia escolar, a exemplo do projeto político-pedagógico, tal como prescreve a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9394/96), bem como a transferência de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para serem gerenciados pelas escolas e a criação, no seu interior, de unidades executoras.
É nesta conjuntura que o Plano Municipal de Educação de São Gonçalo está sendo gestado, por indicativo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96), em seu artigo 9º, ao facultar aos sistemas municipais elaborarem suas diretrizes e metas para a próxima década.
Sem dúvida, por tratar-se de uma política pública, o PME deve ser entendido como um instrumento de ação do poder local, cujo objeto da política educacional deve ser analisado, considerando os impactos objetivos de sua implementação, bem como as perspectivas político-filosóficas que nele estão presentes (Belloni (2000). Vale dizer, que problematizar o PME pode significar, em um só tempo, atualizar, no cotidiano político local, as discussões e os esforços engendrados pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública•).
Nesta direção, a Secretaria Municipal de Educação de São Gonçalo, buscando dar materialidade ao Plano Municipal de Educação instituiu, no período entre setembro de 2003 a abril de 2004, um cronograma para a realização de vários fóruns organizados e coordenados por modalidades de ensino, tendo sido dois deles dedicados à discussão da EJA, objetivando traçar as metas educacionais para esta modalidade de ensino para os próximos dez anos.
Estes fóruns foram constituídos junto aos setores públicos e da sociedade civil, tais como o Conselho Municipal de Educação, sindicatos de professores (SEPE), associações de pais de alunos, associações de moradores, contaram, ainda, com uma ampla participação da rede escolar, da comunidade acadêmica universitária pública e privada e de grupos organizados da sociedade civil gonçalense, gerando uma vasta documentação que tem sido pesquisada, sistematizada e socializada, tendo em vista os complexos desafios colocados pela educação municipal.
Uma das características marcantes dos fóruns constituídos e realizados foi a heterogeneidade dos interlocutores do Plano Municipal de Educação de São Gonçalo. Esta heterogeneidade fez do PME um território de lutas e disputas em torno do seu sentido político e ideológico, expressando diferentes relações de força, ora de confronto entre diferentes grupos sociais e de interesses particulares, ora de cooperação em busca da construção de um consenso para a sua elaboração final.
As fontes documentais originadas dos fóruns constituídos para a discussão e elaboração do PME e as entrevistas realizadas junto aos diferentes sujeitos sociais que vêm participando deste processo, tais como, as organizações da sociedade civil (Sindicatos dos profissionais da educação, Associações de Moradores, Associações de Pais, entre outros) e instâncias governamentais (Secretaria Municipal de Educação e Conselho Municipal de Educação), têm contribuído para a composição do mosaico de nossas reflexões.
Nesta etapa da pesquisa, privilegiamos trazer para as discussões do GT - Educação de Pessoas Jovens e Adultas – algumas análises reflexivas sobre os dados levantados a partir de fontes documentais. As fontes documentais compreendem as sínteses das metas discutidas, elaboradas e aprovadas nos dois Fóruns da EJA no município de São Gonçalo . O primeiro fórum da EJA foi realizado em 06/11/2003 e o segundo em 012/04/2004. O texto final do PME foi, então, encaminhado ao Conselho Municipal de Educação , deste mesmo município, com o propósito de serem inseridas e consolidadas, no PME, as metas das diferentes modalidades de ensino municipal.
Assim, apoiados em Bakhtin (1992 e 2000) entendemos que há uma inexorável relação entre discurso e ideologia, posto que é através da linguagem que são manifestadas as diversas perspectivas e atribuições de sentidos dos diferentes sujeitos sociais sobre o PME. Também trazemos a companhia de Gramsci (1999, 2000), em especial a noção por este pensador italiano sobre a noção de hegemonia, para quem esta noção, desenvolvida de diversos modos por este autor, significaria direção política, cultural de um grupo social sobre a sociedade, forjando um consenso em torno de um projeto político-cultural.
Ao embasarmos nossa pesquisa, também, nestes documentos, procuramos mostrar a necessidade de registrar o processo coletivo vivenciado na elaboração do PME, as disputas em torno da conquista da hegemonia de sentidos sobre o mesmo e, em particular, sobre as políticas para a EJA no município.
Destacamos que o documento produzido pelo primeiro fórum foi marcado por denúncias e confrontos entre representantes da sociedade civil e representantes do poder local. A perspectiva gramsciana sobre hegemonia nos ajuda a entender que o fato de haver confrontos não implica em um resultado no qual um grupo social deva se subordinar ao outro. Ao contrário, o confronto é uma das formas de “paixão política”.
Fazendo entrar um jogo de sentimentos e aspirações em cuja atmosfera incandescente o próprio cálculo da vida humana individual obedece a leis diversas daquelas do interesse individual (2000: 281).

Tais denúncias “apaixonadas” evidenciaram o descaso com que o poder público local, em diferentes gestões, e “ao longo de várias décadas vêm negligenciando o direito à educação de jovens e adultos”.
O fórum resgatou a discussão de que o atendimento do direito à educação de jovens e adultos vem sendo realizado de forma descontínua e, cada vez mais, fora do sistema regular de ensino, “como bem demonstra a rápida adesão do governo aos programas de natureza compensatória e de campanha na alfabetização de jovens e adultos”. Tal sentido da EJA parece se contrapor ao do Parecer CEB nº 11/2000 , ao afirmar que a
tarefa de propiciar a todos a atualização de conhecimentos por toda a vida é a função permanente da EJA que pode se chamar de qualificadora . Mais do que uma função, ela é o próprio sentido da EJA (...). Este sentido da EJA é uma promessa a ser realizada na conquista de conhecimentos até então obstaculizados por uma sociedade onde o imperativo do sobreviver comprime os espaços da estética, da igualdade, da liberdade.

Os participantes deste primeiro fórum, neste documento, assinalam que uma das principais lutas da EJA no município é a da “legitimação da EJA no interior das escolas municipais”, considerando que a existência de atendimento de alfabetização de jovens e adultos vem ocorrendo em locais, cujas “condições materiais são obstáculos para o trabalho dos educadores e aprendizagem dos alunos e alunas”, além de não garantir a continuidade no processo de atualização e escolarização para este segmento.
Esta reivindicação veio acompanhada de um levantamento com o número de escolas municipais que oferecem a modalidade de EJA:
Das 65 (sessenta e cinco) escolas da rede pública municipal, apenas 11 (onze) escolas oferecem o primeiro e o segundo segmento do Ensino Fundamental; 07 (sete) escolas oferecem somente as quatro séries iniciais do Ensino Fundamental.
As pesquisas feitas por Di Pierro (2000), a respeito do decréscimo de investimentos direcionados para a área da educação de jovens e adultos nos últimos 15 anos, corroboram para a análise reflexiva sobre a negação do direito à educação de jovens e adultos no Brasil e, em particular, no município de São Gonçalo.
Entendemos, assim, que a questão do financiamento para a EJA tem sido a pedra de toque para se garantir a expansão do processo de escolarização e, conseqüentemente, o direito à educação de jovens e adultos.
A réplica dos interlocutores, ou seja, dos representantes do governo municipal, no entanto, veio em tom defensivo, e como toda réplica, esclarece Bakhtin (op. cit, 2000: 298) visa a resposta do outro (dos outros), uma compreensão responsiva ativa, e para tanto adota todas as espécies de formas: busca exercer uma influência didática (...), convencê-lo(...).
Desse modo, os interlocutores do governo, explicaram que “a Constituição Federal de 1988 definiu um percentual mínimo de 25%, e não 35%, cumprindo, assim,“rigorosamente” o percentual estabelecido pela Constituição Federal.
Esta resposta não convenceu os segmentos da sociedade civil, pois apoiados em estudo feito por Davies (1997), sobre os gastos da Prefeitura de São Gonçalo com a educação, afirmaram ser sistemático descumprimento à exigência legal da Lei Orgânica na aplicação da receita de impostos em manutenção e desenvolvimento do ensino, nas suas diferentes modalidades. Neste mesmo estudo, Davies denuncia terem sido os maiores gastos da Prefeitura com bolsas em escolas particulares do que com a construção e reforma de escolas municipais.
A forma como essa relação entre público e privado vem se efetivando no município de São Gonçalo parece estar em sintonia entre as teses neoliberais e a aceleração do processo de controle privado da educação pública. Com efeito, as recomendações do Banco Mundial enfatizam a redução da ação direta do Estado na educação, em proveito das instituições privadas, acentuada descentralização dos sistemas de ensino que, pelo menos em São Gonçalo, parece contribuir para maior controle privado, corroborando para se desconstruir o sentido público do direito à educação, sentido este tão caro aos movimentos sociais que lutam pela educação pública, gratuita e de qualidade.

Considerações finais
O diálogo entre passado e presente tem nos levado a analisar a efetivação do direito à educação e dos mecanismos que possam assegurar este direito em toda a sua plenitude para a população de São Gonçalo. Vale dizer, que as medidas político-pedagógicas pensadas e sistematizadas pelos movimentos sociais em ações dirigidas aos poderes públicos, precisam convergir para o atendimento deste direito tanto do ponto de vista da sua universalização quanto do ponto de vista da qualidade com que este direito está e será usufruído pela população.
Considerando a diversidade de interlocutores e sujeitos sociais envolvidos nas lutas pelo direito à educação, nos diferentes contextos histórico-político-sociais, compreendidos pela pesquisa, percebemos que estávamos diante de realidades sociais que, como nos ensina Fernandes (1967), são inexauríveis, apresentando várias possibilidades de olhá-las e escutá-las de diferentes modos.
Assim, ao nos lançarmos no movimento de pesquisa, procuramos ler e escutar os sentidos produzidos por estes interlocutores sobre o direito à educação.
Neste sentido, vimos procurando identificar/analisar, à luz das fontes documentais do passado e do presente, pistas que aludem ao processo de democratização do acesso à escola pública e gratuita em São Gonçalo, a consolidação do direito à educação de crianças, jovens e adultos, as ações articuladas entre sociedade civil e sociedade político, germinadas pelo adubo do conflito e da contradição.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Parecer CEB nº. 11/2000.

BRASIL. Presidência da República. Lei 9.394 de 20 de Dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília: 23, dez., 1996.

___________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.

BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Senado Federal, 1988.
BRASIL. Presidência da República. Lei 10.172 de 9 de janeiro de 2001. Aprova o Plano Nacional de Educação. Diário Oficial da União, Brasília, 10 de jan. 2001.

CUNHA, L. A. Educação, Estado e Democracia no Brasil. São Paulo: Editora Cortez, 1991.

FERNANDES, F. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Nacional, 1967.

FÓRUM NACIONAL EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA. Caderno do III Congresso Nacional de Educação. Brasília, nov. 2000.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Maquiavel: notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

___________. Cadernos do cárcere. Introdução ao estudo da filosofia de Benedetto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

LESBAUPIN, Y. Poder local e exclusão social: a experiência das prefeituras democráticas no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.

OLIVEIRA, R. M. Movimento Comunitário em São Gonçalo de 1978 a 1988: fluxo e refluxo. Monografia de Graduação (mimeo). FFP/UERJ, 2002.

QUEIROZ, M. I. P. Histórias de vida e depoimentos pessoais. In: QUEIROZ, M. I. P. Variações sobre a técnica do gravador no registro da informação viva. São Paulo: T.A. Queiroz, 1991.

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Plano Municipal de Educação de São Gonçalo, 2003.

 
Voltar