Márcia Soares de Alvarenga –UERJ/FFP
Michelle dos Santos-(bolsista)UERJ/FFP
O presente trabalho integra parte da pesquisa realizada
através do Programa Institucional de Iniciação Científica
(Pibic), ao longo do ano de 2004. O problema da pesquisa situa-se dentro
do debate e das produções que analisam os efeitos das políticas
educacionais desenvolvidas pelos sistemas públicos municipais e
suas repercussões sobre o direito à educação
de crianças, jovens e adultos.
A pesquisa vem sendo realizada na cidade de São Gonçalo,
município localizado na região metropolitana do Estado do
Rio de Janeiro. Retratado como o terceiro município mais populoso
do Estado, 889.828 habitantes (IBGE, 2000). Os dados sobre a escolarização
do município exibem uma taxa impactante de 36,9% de analfabetismo
(IBGE, INEP, 2000) entre a população com mais de 15 anos,
contabilizando 126.364 pessoas excluídas do direito à educação.
Em relação ao direito à educação das
crianças de 0 a 6 anos, constatamos que apenas 33 escolas públicas
da rede municipal oferecem ensino pré-escolar, em brutal contraste
com a rede de ensino privada que, além de contabilizar a oferta
de 234 escolas nesta modalidade de ensino, supera o poder público
municipal em número de escolas de ensino fundamental, respectivamente,
230 escolas contra 61 escolas.
Os dados acima apresentados nos falam que um longo caminho há de
ser percorrido no que se refere ao direito à educação
pública e gratuita de crianças, jovens e adultos, historicamente
excluídos do direito à educação em São
Gonçalo.
Se, por um lado, estes dados exibem um processo inverso de acesso ao direito
à educação pela via do privatismo, por outro lado,
nos perguntamos sobre a existência de fontes documentais orais e
escritos capazes de registrar a intensa luta desencadeada pelos segmentos
sociais populares, organizados neste município, em ações
de responsabilização dos poderes públicos face ao
atendimento da demanda pelo direito à educação pública
e gratuita.
Em relação a este questionamento, Oliveira (2002) assinala
sobre as dificuldades em se obter dados, relatos e documentos escritos
que possam contar as lutas pelo direito à educação
engendradas pelas comunidades gonçalenses. Diante destas dificuldades,
buscou “na voz do passado” , através dos relatos orais,
construir a historiografia dos movimentos sociais comunitários
nas lutas pelos direitos de cidadania.
No percurso teórico-metodológico da presente pesquisa, concordamos
que, ao optarmos pelas fontes documentais, sejam estas de forma oral e/ou
escrita, podemos estar contribuindo para construção da memória
dos movimentos sociais pelo direito è educação no
município de São Gonçalo, considerando que a dispersão
e/ou o não registro destas memórias podem levar ao silenciamento
e apagamento das lutas populares pelo direito a se viver uma vida digna,
destituindo os movimentos populares do seu papel como protagonistas da
própria História de São Gonçalo.
Inspirados em Queiroz (1976), consideramos ser o uso das fontes documentais
material qualitativo para a obtenção de informação
e expressões que nos permitem captar situações, comportamentos,
opiniões e valores de uma realidade social.
Desse modo, vimos construindo instrumentos de coleta e análise
de dados que têm nos permitido avaliar e analisar a universalização
do direito à educação, expansão da oferta
de matrículas para os jovens e adultos gonçalense, evasão
e repetência, analfabetismo, políticas de currículo,
de formação de professores, financiamento, dentre outros.
Em nossas buscas por fontes escritas documentais, privilegiamos o levantamento
de materiais impressos sobre a luta pelo direito à educação,
com um olhar voltado para a década de 1980, do século XX,
e o movimento em torno da elaboração do Plano Municipal
de São Gonçalo laborado entre o período de 2003-2004,
do presente século.
Os motivos relacionados a escolha destes períodos e contextos,
devem-se ao fato de , primeiramente, observamos ter sido a década
de 1980 um dos mais férteis períodos vividos pelos movimentos
sociais comunitários, não somente em São Gonçalo,
mas também, em outros municípios brasileiros na luta pelo
direito à educação, considerando que este direito,
responsabilizado como dever do Estado, será legitimado na Constituição
Federal de 1988.
Em relação ao período compreendido entre 2003-2004,
por entendermos que as lutas contemporâneas pelo direito à
educação vêm sendo dinamizadas, considerando que,
na última década do século passado, temos observado
uma progressiva municipalização do ensino fundamental em
função das diretrizes do governo federal quando este passa
assumir a descentralização como um dos princípios
das políticas educacionais, forjando outros espaços reivindicatórios
através de ações tensionadas entre o poder local
e instituições e /ou movimentos organizados da sociedade
civil.
Breves reflexões sobre os movimentos associativos
de moradores em São Gonçalo e a luta pelo direito à
educação.
É importante destacar que o (re)surgimento dos
movimentos associativos irão ser intensificados em decorrência
da criação de novos laços de solidariedade, entre
os quais se encontram as associações de moradores, como
locus de oposição e luta, impulsionados pelo autoritarismo
do governo militar, entre as décadas de 1960 a 1980, bem como pelo
agravamento das desigualdades existentes no cotidiano das grandes metrópoles
brasileiras.
Em início da década de 1980, Jacobi e Nunes (1983) assinalavam
que tais desigualdades desencadearam um quadro de reivindicações
populares que se alterava, cuja marca principal eram as manifestações
e ações diretas dos grupos organizados ou não, dirigindo
críticas ao uso clientelista da máquina estatal em relação
ao atendimento das demandas sociais.
Pode-se, então, inferir que os desdobramentos em torno da autonomia
e controle das ações do Estado dependeriam da capacidade
dos movimentos sociais de se organizarem e se mobilizarem, conferindo
a estes o controle das demandas realizadas, vindo a favorecer a ampliação
de outras políticas públicas sociais com vistas à
inserção das classes populares nas instâncias de deliberação
e orientação das reivindicações a serem atendidas.
Durante este período, as associações de moradores
tiveram um destacado e inovador papel político-social. Considerando
a sua heterogeneidade, nelas, pode-se dizer, que coexistem, co-participam
indivíduos de poder econômico diversos, jovens e idosos,
pessoas de diferentes religiões, etnias, gênero, orientações
sexuais, etc... Além da variada composição de seus
sujeitos, as associações de moradores assumem diferenciadas
frentes de reivindicações e lutas, desde que correspondam
às necessidades e à defesa de interesses dos moradores do
bairro.
Para Singer (1980:86), a importância das associações
de moradores de bairro é ainda maior, pois possuem dimensões
que “tendo por base, formas de coesão social que viabilizam
sua expressão ‘para fora’, no sentido de reivindicarem,
junto aos poderes públicos, a satisfação das demandas
que decorrem das próprias exigências da vida urbana”,
constituem-se, ao mesmo tempo, formas de solidariedade e coesão
comunal e de luta por melhores condições de vida da população.
Estes fatos corroboram para o entendimento das associações
de moradores como sendo, durante este período, uma das estratégias
organizativas e organizadas da sociedade civil que apresentam uma modalidade
de representatividade e diretividade reivindicatória mais imediata,
face às ações direcionadas às entidades governamentais,
principalmente, àquelas mais próximas como as do âmbito
municipal, como pode ser exemplificado em matéria publicada pelo
Jornal “O São Gonçalo”, em 21 de janeiro de
1982, sob o título “Anaia perde posto de saúde, escola
e área de lazer”:
A Associação de Moradores e Amigos do Anaia (...) está
fazendo um apelo a coordenação municipal de Defesa Civil,
no sentido de que faça uma visita no bairro para ver as condiçõies
daquele logradouro depois das últimas chuvas. Segundo os moradores,
apenas o posto médico vem funcionando precariamente,(...). A escola
da Associação, que funcionava em conjunto com o MOBRAL,
parou suas atividades(...). Com isto, 28 crianças da alfabetização
e 100 do pré-escolar estão sem assistir aulas(...)
A comunidade levou o problema ao conhecimento do Prefeito Jayme Campos(...).
Vale destacar que a própria luta pelo direito à
educação, em algumas comunidades de São Gonçalo,
e em particular no bairro de Anaia, resultaram na fundação
de associações de moradores, como bem destaca a matéria
publicada pelo Jornal “O Globo”, em 09/01/1983:
A própria consolidação de nossa associação
de moradores não pode ser dissociada da luta pela escola –
explica Herbene (...). Como aqui não havia escola, muitos pais
me procuravam para ensinar seus filhos na minha casa. Em julho de 80,
já eram 48 adultos e 54 crianças, quando então a
Comissão de Pais e Professores da Associação decidiu
por um convênio com o MOBRAL.
Funcionando numa casa antiga do bairro que abrigava, também,
a sede da Associação de Moradores, a escola comunitária
do Bairro de Anaia ocupava uma sala de aula em precárias condições.
Após vários movimentos e manifestações públicas
dentro do município, a Associação atravessa a Baia
de Guanabara com cerca de 300 crianças acompanhadas por pais e
responsáveis e, portando faixas e cartazes, permanecem 4 horas
nos jardins do Palácio Guanabara à espera de uma audiência
com o Governador Chagas Freitas, a fim de ver atendida a promessa feita
pelo, então, Secretário de Educação Arnaldo
Niskier, de construção de uma escola pública naquela
comunidade .
Podemos afirmar, no entanto, que a trajetória histórica
das associações de moradores apresenta momentos cíclicos
motivados pelas condições objetivas e conjunturais dentro
das quais se desenvolve.
Sendo assim, estas próprias condições podem determinar
os períodos de maior impulsão desses movimentos como, também,
condicionar uma situação de aparente inércia ou refluxo.
Assim, assistimos na década de 1990 um refluxo no movimento associativo
comunitário, cujas análises apontam para muitas direções.
Alguns interlocutores do movimento associativo de moradores atribuem o
refluxo atual do movimento a partir de diferentes perspectivas, entre
as quais são destacadas: a opção das lideranças
em atuarem na militância político-partidária, redução
no investimento na formação de base política, impedindo
a renovação de lideranças e da reformulação
dos discursos relacionados ao seu papel (Porto, 1995), dispersão
do sujeito coletivo frente às políticas neoliberais que
levaram à privatização e flexibilização
dos direitos sociais, entre outros.
A despeito deste novo contexto, há que se observar a existência,
ainda expressiva, das associações de moradores em São
Gonçalo que, mesmo eivadas por contradições internas,
tentativas de cooptação pelo poder local e disputas pela
hegemonia da entidade representativa do movimento, a UNIBAIRROS, ainda
se constitui em um importante palco de aprendizado político e organizativo
das comunidades na luta pelos direitos à cidadania.
Podemos, também, afirmar que a existência de vários
veículos da imprensa local e municípios adjacentes, alguns
com mais de sete décadas de existência , têm nos fornecido
rico material de análise sobre os movimentos sociais pelas melhorias
das condições de vida da população gonçalense,
criando possibilidades, no exercício de nossa pesquisa, a levantar
dados sobre a proposição reivindicativa destes movimentos
em relação ao direito à educação.
Os novos movimentos sociais em torno da luta pelo direito
à educação em São Gonçalo: alguns sentidos
sobre o Plano Municipal de Educação.
O cenário construído pelas orientações
neoliberais, nas duas últimas décadas, irá favorecer
a produção de um novo papel que deverá ser protagonizado
pelos municípios, efetivando o seu desempenho na condição
de principal instância de administração local, cujo
dispositivo legal foi estabelecido pela Constituição de
1988 e referendada pela LDB em 1996. Estas bases vêm (re)configurando
o campo legal-institucional nas quais se sustentam as mudanças
na formulação das políticas públicas sociais,
a partir de uma nova agenda escrita pela reforma do Estado.
Este contexto tem suscitado reflexões sobre a problemática
da descentralização da educação no Brasil,
refletindo os diferentes processos e as experiências de municipalização
do ensino, considerando encontrar-se esta problemática dentro das
fronteiras político-institucionais dos poderes locais (Lesbaupin,
2001), cujas medidas, voltadas para se garantir o direito à educação,
seguem o curso dos interesses em disputa e expressam as condições
de produção e os conflitos dos grupos sociais que lutam
pela hegemonia de sua determinação.
A partir desta perspectiva, a descentralização
é considerada um instrumento de modernização gerencial
da gestão pública (Azevedo, 2002), pela crença nas
suas possibilidades de promover a eficiência e a eficácia
dos serviços públicos. Assim, é difundida como uma
poderosa diretriz para a correção das distorções
educacionais, por meio da otimização dos gastos públicos.
Para muitos estudiosos deste processo (Melo, 1997 e Azevedo, 2002), a
descentralização adotada pode ser categorizada como economicista-instrumental,
cuja legitimidade ideológica se assenta “sobre uma dupla
equação: quanto mais descentralização mais
proximidade; quanto mais proximidade mais democracia e eficácia”
(Charlot in Azevedo, 2002: 55).
Tal perspectiva entra em confronto com uma outra de caráter democrático-participativo,
tomando a descentralização administrativa e, por extensão,
a municipalização dos serviços públicos, como
um dos meios de alargamento do espaço público, principalmente
quando este se fundamenta no estabelecimento de relações
sociais e políticas substancialmente democráticas. Nesta
segunda perspectiva, os segmentos locais participam da concepção
e da formulação das políticas a serem implantadas,
não se restringindo, apenas, a colocar em ação os
processos decisórios oriundos do poder central.
A descentralização, nesta perspectiva, além do fortalecimento
do poder local exige, concomitantemente, o estabelecimento de outras relações
entre o Estado e a sociedade, de modo que os canais de participação
e decisão, por parte da população, se alarguem, proporcionando
uma maior fluidez das suas demandas, e efetivando uma maior participação
dos setores locais na gestão dos serviços públicos
(Cunha, 1991; Lesbaupin, 2001; Azevedo, 2002; Souza e Faria, 2003).
Com efeito, a descentralização tem como pressuposto básico
uma sociedade civil com alto grau de organização, capaz
de controlar os serviços através de sua participação
na esfera pública. No que se refere ao setor educacional, quando
se trata, sobretudo, do planejamento e da gestão do ensino fundamental,
a descentralização e a participação vêm
sendo tomadas como referências para as medidas políticas
em implementação.
Além disso, as convocações feitas para a participação
das comunidades locais têm se explicitado na sugestão e/ou
obrigatoriedade de formação de Conselhos Municipais (escolar,
da merenda, do Fundef e tantos outros). Na mesma direção,
situam-se as medidas que visam propiciar a autonomia escolar, a exemplo
do projeto político-pedagógico, tal como prescreve a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9394/96), bem como
a transferência de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE) para serem gerenciados pelas escolas
e a criação, no seu interior, de unidades executoras.
É nesta conjuntura que o Plano Municipal de Educação
de São Gonçalo está sendo gestado, por indicativo
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96),
em seu artigo 9º, ao facultar aos sistemas municipais elaborarem
suas diretrizes e metas para a próxima década.
Sem dúvida, por tratar-se de uma política pública,
o PME deve ser entendido como um instrumento de ação do
poder local, cujo objeto da política educacional deve ser analisado,
considerando os impactos objetivos de sua implementação,
bem como as perspectivas político-filosóficas que nele estão
presentes (Belloni (2000). Vale dizer, que problematizar o PME pode significar,
em um só tempo, atualizar, no cotidiano político local,
as discussões e os esforços engendrados pelo Fórum
Nacional em Defesa da Escola Pública•).
Nesta direção, a Secretaria Municipal de Educação
de São Gonçalo, buscando dar materialidade ao Plano Municipal
de Educação instituiu, no período entre setembro
de 2003 a abril de 2004, um cronograma para a realização
de vários fóruns organizados e coordenados por modalidades
de ensino, tendo sido dois deles dedicados à discussão da
EJA, objetivando traçar as metas educacionais para esta modalidade
de ensino para os próximos dez anos.
Estes fóruns foram constituídos junto aos setores públicos
e da sociedade civil, tais como o Conselho Municipal de Educação,
sindicatos de professores (SEPE), associações de pais de
alunos, associações de moradores, contaram, ainda, com uma
ampla participação da rede escolar, da comunidade acadêmica
universitária pública e privada e de grupos organizados
da sociedade civil gonçalense, gerando uma vasta documentação
que tem sido pesquisada, sistematizada e socializada, tendo em vista os
complexos desafios colocados pela educação municipal.
Uma das características marcantes dos fóruns constituídos
e realizados foi a heterogeneidade dos interlocutores do Plano Municipal
de Educação de São Gonçalo. Esta heterogeneidade
fez do PME um território de lutas e disputas em torno do seu sentido
político e ideológico, expressando diferentes relações
de força, ora de confronto entre diferentes grupos sociais e de
interesses particulares, ora de cooperação em busca da construção
de um consenso para a sua elaboração final.
As fontes documentais originadas dos fóruns constituídos
para a discussão e elaboração do PME e as entrevistas
realizadas junto aos diferentes sujeitos sociais que vêm participando
deste processo, tais como, as organizações da sociedade
civil (Sindicatos dos profissionais da educação, Associações
de Moradores, Associações de Pais, entre outros) e instâncias
governamentais (Secretaria Municipal de Educação e Conselho
Municipal de Educação), têm contribuído para
a composição do mosaico de nossas reflexões.
Nesta etapa da pesquisa, privilegiamos trazer para as discussões
do GT - Educação de Pessoas Jovens e Adultas – algumas
análises reflexivas sobre os dados levantados a partir de fontes
documentais. As fontes documentais compreendem as sínteses das
metas discutidas, elaboradas e aprovadas nos dois Fóruns da EJA
no município de São Gonçalo . O primeiro fórum
da EJA foi realizado em 06/11/2003 e o segundo em 012/04/2004. O texto
final do PME foi, então, encaminhado ao Conselho Municipal de Educação
, deste mesmo município, com o propósito de serem inseridas
e consolidadas, no PME, as metas das diferentes modalidades de ensino
municipal.
Assim, apoiados em Bakhtin (1992 e 2000) entendemos que há uma
inexorável relação entre discurso e ideologia, posto
que é através da linguagem que são manifestadas as
diversas perspectivas e atribuições de sentidos dos diferentes
sujeitos sociais sobre o PME. Também trazemos a companhia de Gramsci
(1999, 2000), em especial a noção por este pensador italiano
sobre a noção de hegemonia, para quem esta noção,
desenvolvida de diversos modos por este autor, significaria direção
política, cultural de um grupo social sobre a sociedade, forjando
um consenso em torno de um projeto político-cultural.
Ao embasarmos nossa pesquisa, também, nestes documentos, procuramos
mostrar a necessidade de registrar o processo coletivo vivenciado na elaboração
do PME, as disputas em torno da conquista da hegemonia de sentidos sobre
o mesmo e, em particular, sobre as políticas para a EJA no município.
Destacamos que o documento produzido pelo primeiro fórum foi marcado
por denúncias e confrontos entre representantes da sociedade civil
e representantes do poder local. A perspectiva gramsciana sobre hegemonia
nos ajuda a entender que o fato de haver confrontos não implica
em um resultado no qual um grupo social deva se subordinar ao outro. Ao
contrário, o confronto é uma das formas de “paixão
política”.
Fazendo entrar um jogo de sentimentos e aspirações em cuja
atmosfera incandescente o próprio cálculo da vida humana
individual obedece a leis diversas daquelas do interesse individual (2000:
281).
Tais denúncias “apaixonadas” evidenciaram
o descaso com que o poder público local, em diferentes gestões,
e “ao longo de várias décadas vêm negligenciando
o direito à educação de jovens e adultos”.
O fórum resgatou a discussão de que o atendimento do direito
à educação de jovens e adultos vem sendo realizado
de forma descontínua e, cada vez mais, fora do sistema regular
de ensino, “como bem demonstra a rápida adesão do
governo aos programas de natureza compensatória e de campanha na
alfabetização de jovens e adultos”. Tal sentido da
EJA parece se contrapor ao do Parecer CEB nº 11/2000 , ao afirmar
que a
tarefa de propiciar a todos a atualização de conhecimentos
por toda a vida é a função permanente da EJA que
pode se chamar de qualificadora . Mais do que uma função,
ela é o próprio sentido da EJA (...). Este sentido da EJA
é uma promessa a ser realizada na conquista de conhecimentos até
então obstaculizados por uma sociedade onde o imperativo do sobreviver
comprime os espaços da estética, da igualdade, da liberdade.
Os participantes deste primeiro fórum, neste documento,
assinalam que uma das principais lutas da EJA no município é
a da “legitimação da EJA no interior das escolas municipais”,
considerando que a existência de atendimento de alfabetização
de jovens e adultos vem ocorrendo em locais, cujas “condições
materiais são obstáculos para o trabalho dos educadores
e aprendizagem dos alunos e alunas”, além de não garantir
a continuidade no processo de atualização e escolarização
para este segmento.
Esta reivindicação veio acompanhada de um levantamento com
o número de escolas municipais que oferecem a modalidade de EJA:
Das 65 (sessenta e cinco) escolas da rede pública municipal, apenas
11 (onze) escolas oferecem o primeiro e o segundo segmento do Ensino Fundamental;
07 (sete) escolas oferecem somente as quatro séries iniciais do
Ensino Fundamental.
As pesquisas feitas por Di Pierro (2000), a respeito do decréscimo
de investimentos direcionados para a área da educação
de jovens e adultos nos últimos 15 anos, corroboram para a análise
reflexiva sobre a negação do direito à educação
de jovens e adultos no Brasil e, em particular, no município de
São Gonçalo.
Entendemos, assim, que a questão do financiamento para a EJA tem
sido a pedra de toque para se garantir a expansão do processo de
escolarização e, conseqüentemente, o direito à
educação de jovens e adultos.
A réplica dos interlocutores, ou seja, dos representantes do governo
municipal, no entanto, veio em tom defensivo, e como toda réplica,
esclarece Bakhtin (op. cit, 2000: 298) visa a resposta do outro (dos outros),
uma compreensão responsiva ativa, e para tanto adota todas as espécies
de formas: busca exercer uma influência didática (...), convencê-lo(...).
Desse modo, os interlocutores do governo, explicaram que “a Constituição
Federal de 1988 definiu um percentual mínimo de 25%, e não
35%, cumprindo, assim,“rigorosamente” o percentual estabelecido
pela Constituição Federal.
Esta resposta não convenceu os segmentos da sociedade civil, pois
apoiados em estudo feito por Davies (1997), sobre os gastos da Prefeitura
de São Gonçalo com a educação, afirmaram ser
sistemático descumprimento à exigência legal da Lei
Orgânica na aplicação da receita de impostos em manutenção
e desenvolvimento do ensino, nas suas diferentes modalidades. Neste mesmo
estudo, Davies denuncia terem sido os maiores gastos da Prefeitura com
bolsas em escolas particulares do que com a construção e
reforma de escolas municipais.
A forma como essa relação entre público e privado
vem se efetivando no município de São Gonçalo parece
estar em sintonia entre as teses neoliberais e a aceleração
do processo de controle privado da educação pública.
Com efeito, as recomendações do Banco Mundial enfatizam
a redução da ação direta do Estado na educação,
em proveito das instituições privadas, acentuada descentralização
dos sistemas de ensino que, pelo menos em São Gonçalo, parece
contribuir para maior controle privado, corroborando para se desconstruir
o sentido público do direito à educação, sentido
este tão caro aos movimentos sociais que lutam pela educação
pública, gratuita e de qualidade.
Considerações finais
O diálogo entre passado e presente tem nos levado a analisar a
efetivação do direito à educação e
dos mecanismos que possam assegurar este direito em toda a sua plenitude
para a população de São Gonçalo. Vale dizer,
que as medidas político-pedagógicas pensadas e sistematizadas
pelos movimentos sociais em ações dirigidas aos poderes
públicos, precisam convergir para o atendimento deste direito tanto
do ponto de vista da sua universalização quanto do ponto
de vista da qualidade com que este direito está e será usufruído
pela população.
Considerando a diversidade de interlocutores e sujeitos sociais envolvidos
nas lutas pelo direito à educação, nos diferentes
contextos histórico-político-sociais, compreendidos pela
pesquisa, percebemos que estávamos diante de realidades sociais
que, como nos ensina Fernandes (1967), são inexauríveis,
apresentando várias possibilidades de olhá-las e escutá-las
de diferentes modos.
Assim, ao nos lançarmos no movimento de pesquisa, procuramos ler
e escutar os sentidos produzidos por estes interlocutores sobre o direito
à educação.
Neste sentido, vimos procurando identificar/analisar, à luz das
fontes documentais do passado e do presente, pistas que aludem ao processo
de democratização do acesso à escola pública
e gratuita em São Gonçalo, a consolidação
do direito à educação de crianças, jovens
e adultos, as ações articuladas entre sociedade civil e
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