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  LEITURA DE IMAGENS: PAIS ALCOÓLATRAS E SUAS CONSEQÜÊNCIAS PARA A APRENDIZAGEM DAS CRIANÇAS NA ESCOLA (1922)

Nailda Marinho da Costa Bonato - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

Estamos hoje no “império da imagem”, em nossas pesquisas na área de educação passamos a usar a imagem como fonte e não apenas como ilustração para se falar dos diversos espaços tempos da e na Escola. “Por muito tempo, em uma sociedade que foi formada em torno do sentido da visão e da perspectiva, não se teve clareza da importância da imagem para a compreensão e o conhecimento da realidade..” (Alves, 2001, p.7). Segundo Cardoso, na área de história, especificamente, a iconografia, em suas diversas representações, penetrou primeiramente na forma de ilustrações, depois como fonte para a história e até mesmo como objeto de estudo. É nesse direção, principalmente a partir da década de 90, que segue os historiadores da educação.
O presente trabalho traz uma “leitura” de duas imagens iconográficas que foram expostas no Museu da Infância, dentro da Exposição Comemorativa do Centenário da Independência, ocorrida em 1922, no Distrito Federal. Trata-se da análise de dois desenhos, reforçados por mensagens escritas, que são identificados em sua própria superfície como sendo produzidos por A. Marcello (ainda não conseguimos identificar o sobrenome grafado) e pertencentes à coleção do médico Moncorvo Filho. Para a leitura das imagens resgatamos preliminarmente a descrição fornecida pelos técnicos da instituição-memória, no caso o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e os dados encontrados na superfície da imagem produzidos pelo próprio fotógrafo e as indicações que as imagens-textos nos propiciam. Entendemos que apenas um tipo de fonte não nos possibilita uma análise mais significativa do fato estudado cruzamos as informações com outras fontes. Da mesma forma que a escrita, não nos basta para expressar as compreensões do conhecimento do mundo e da vida, a imagem também não.
Os desenhos foram fotografados, na Exposição, por Augusto Malta, propiciando que chegassem até nós através da obra imagética desse fotógrafo que, em sua materialidade, compõe parte do acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro; em negativos de vidros, podemos observar, na reprodução de uma delas (Imagem 1) algumas rachaduras. As imagens aqui trazidas foram encontradas quando realizávamos a nossa pesquisa para o Doutorado sobre a Escola Profissional Feminina no período da Primeira República, através da imagem fotográfica. Não sabemos, ainda, se os desenhos foram produzidos especificamente para a Exposição, encomendados para esse fim pelo médico. Perguntamos: quais os interesses do médico com essas imagens e quais os interesses do fotógrafo em registrá-las? Considerando que as imagens podem nos revelar “comportamentos, representações e ideologias” e que nelas há uma intencionalidade (Leite, 1993), frisamos que as fotografias no Arquivo estão identificadas como uma coleção dentro do acervo do Arquivo da Prefeitura do Distrito Federal, já que Malta foi fotógrafo oficial da Prefeitura no período de 1903-1936, portanto ao fotografar estava, como funcionário público, a serviço do governo municipal. Ao compor o acervo da Prefeitura, essas imagens nos remete a idéia da construção de uma memória escolar que se queria deixar às gerações futuras. Sabemos que ao selecionar essas e não outras imagens nossa leitura já suspeita. Outras leituras poderão ser feitas pois as imagens se abre à múltiplas possibilidades. A leitura que se segue é a que nos foi possível fazer até o momento, nos limites desse texto.
Vamos as imagens. Trata-se de dois desenhos que representam situações de ensino-aprendizagem na escola, reforçados por mensagens que culpam pais alcoólatras por “mazelas” que atingiam crianças em idade escolar na capital, a saber: o analfabetismo, a criminalidade e a epilepsia.

A imagem 1 apresenta duas situações:

Cena 1. “O álcool e o analphabetismo” - um delinqüente, supostamente um adolescente filho de pai alcoólatra, rendendo um transeunte, talvez um outro adolescente. Com as mãos para cima, com toda a razão, assustado o chapéu lhe cai da cabeça, sua expressão é de horror e medo considerando o que está lhe acontecendo. O assaltante também está de chapéu, na época os rapazes andavam com esse objeto sendo educado retirá-lo para cumprimentar as moças. Abaixo dessa ilustração lê-se: 80% dos adolescentes são filhos de Paes alcoolistas (Paul Garnier); e 80% dos criminosos nesta Capital são analphabetos (estatística sobre 13.890 indivíduos) (Hermes Lima). Conclui-se que existe uma relação direta entre alcoolismo, analfabetismo e criminalidade na Capital Federal.

Cena 2. O contraponto. Seguindo a lógica oficial da divisão dos sexos entre escolares na época, observamos agora uma turma de meninos. Estamos numa sala de aula onde a distribuição espacial aparece demarcada por uma linha divisória invisível: de um lado, se acham os alunos sentados em carteiras enfileiradas lado a lado, numa distribuição eqüitativa; em frente e do outro lado, sobre o tablado, numa mesa com uma cadeira, o professor. Essa posição privilegia sua visão em relação à turma. Na lateral direita, um aluno escrevendo na lousa, sob o olhar atento do professor. Na parece, um quadro com a representação do mapa-mundi e um outro com uma menininha oferecendo leite ao seu gato, o que estamos ainda a investigar. Sabemos que o leite era um alimento propiciador de sujeitos sadios, fortes.... Abaixo de todo o cenário escolar representado lê-se: Cada uma creança a quem se ensina a ler é um homem de bem que se consegue obter (Victor Hugo) (Tradução de Guilherme Martins). Assim, a relação era direta: dominar o código escrito representava ser um homem de bem, já o analfabeto, esse não.

Imagem 1
Collecção Moncorvo Filho
Acervo: AGCRJ, NV0811 - Autor Augusto Malta - Data: [1922]

Imagem 2. Cena intitulada “O álcool: tremendo flagelo – a creança na escola.” O cenário é uma sala de aula com seus apetrechos próprios à natureza da cultura escolar, relógio e mapa-mundi na parede, quadro de giz, carteiras duplas de madeira. Seus personagens: a professora e alunas – observamos que é uma escola primária para o sexo feminino, conforme o sistema educativo da época. Embora, naquele momento, já encontrávamos meninos matriculados em escolas de meninas. Voltemos a descrição: as alunas se encontram em uma situação que poderíamos chamar, se não fosse o motivo, de total em indisciplina. Estão em pé, ou voltadas para trás. A professora com uma das mãos na cabeça está na lateral e não em posição frontal às alunas, embora não verificamos na imagem a existência de uma mesa e de uma cadeira para a mestra. Todas, a professora e as alunas estão em total desespero. Caída ao chão, no final da fileira de carteiras, uma das alunas, sendo esse o motivo do desespero. Deduzimos pelo texto que acompanha a imagem que está tendo um ataque epilético. Assim, pais alcoólatras, filhos epiléticos. Devido a esse entendimento, a epilepsia, conhecida como o “mal de gota” que a doença acometia a criança por volta dos 7 anos de idade. Abaixo da ilustração lê-se: “ A epilepsia (mal de gotta) que surge n´um escolar na edade de 7 annos” e “a epilepsia é uma das mais graves conseqüências da herança alcoólica dos Paes”. Reforça-se a culpa dos pais. Continuando as mensagens: “Trabalho escolar – observações sobre 500 alumnos de uma escola de Vienna (Bayer) A nota Bôa que entre as creanças que nada bebiam (sic) orçava em 41.80% ia baixando até zero quanto maior era entre ellas o uso do álcool.”. Assim, eram trazidos exemplos de pesquisas que confirmavam essa triste realidade.

Imagem 2
Acervo: AGCRJ, NV0812
Autor Augusto Malta - Data: [1922]

Assim, através dessas imagens expostas no Museu da Infância dentro de um evento tão importante para o poder público e para a cidade - a Exposição Comemorativa do Centenário da Independência, apontava-se os culpados – os pais alcoólatras, para esses “fantasmas” que perturbavam e atravancavam o progresso da cidade, como já dissemos: o analfabetismo, a criminalidade e doenças do tipo epilepsia. A Exposição recebia visitantes de outros estados e capitais, assim como de países entendidos como civilizados.
Na pesquisa que estamos desenvolvendo referente as concepções da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino sobre a educação da mulher, encontramos no arquivo da Federação contido no acervo do Arquivo Nacional algumas fontes sobre a primeira Conferência pelo Progresso Feminino, ocorrida em 1922. O evento foi organizado pela Federação e teve como presidente a bióloga Bertha Lutz. Na oportunidade, o médico higienista Moncorvo Filho, proferiu palestra sobre um dos temas discutidos: a proteção à infância. Na palestra intitulada “Breves considerações sobre um programa de proteção a infância: nota apresentada pelo Dr. Moncorvo Filho”, diz o médico para uma platéia majoritariamente feminina.
O Brasil chegou tarde a cuidar com carinho de seus filhos, mas chegou finalmente e nest’hora já se pode contar com o interesse dos homens que nos governam.” (...) De todos os ramos da Assistência Pública em qualquer paiz a protecção á infância é, sem duvida, dos mais importantes. Problema eminentemente social entrou nestes últimos annos em uma nova phase, particularmente depois que o globo foi convulsionado pela nefanda guerra que ensangüentou a Europa e prejuízos incalculáveis acarretou ao resto do mundo. Neste período por que passa a humanidade, Governos, Homens do Estado, Philantropos, Médicos, Hygienistas e Senhoras de coração, todos convergem seus piedosos olhares para a infância, na qual reconhecem existir a salvação da collectividade e o desenvolvimento econômico das nações. Da multiplicidade dos problemas que surgem em torno do palpitante assumpto não há que deixar de reconhecer o prisma pelo qual se encaram hoje variadas questões attinentes a salvaguarda da vida e do moral das creanças, bastando seja lembrado que, enquanto antigamente o escopo residia em tratar as creancinha doentes, hoje todo o empenho esta em corrigir os malefícios de hereditariedades funestas e procurar cercar os entesinhos frágeis dos cuidados imprescindíveis para que não adoeçam, assim reduzindo-se ao mínimo o dizimo da mortandade, propagando-se por outro lado, interessadamente as vantagens da boa procreação....”
Para Moncorvo Filho a questão da proteção a infância se caracteriza de duas formas: proteção direta e indireta. Em sua fala chama atenção sobre a falta de instrução do povo e consequentemente sobre o número exagerado de analfabetos. Em suas palavras:
Antes que se entre propriamente a discutir tão interessante questão não se pode de modo algum olvidar o quanto influe, no estado em que nos encontramos no tocante a matéria, da falta de instrucção do povo, o que nos colloca n’uma triste condição com uma pauta exageradissima de analphabetos...
A falta de instrução do povo é a grande mazela social vivida pela cidade. Mas, o fantasma da “hereditariedade maléfica” é a grande questão trazida por ele. Depois de falar da importância de cursos de puericultura e higiene infantil nas escolas públicas, escolas normais, até mesmo nas Faculdades de Medicina, embora facultativo aos discentes, principalmente as meninas, o médico higienista toca num ponto que nos ajuda a entender e fazer uma leitura das imagens, que é segundo ele, o “fantasma da hereditariedade maléfica”.
Ressalta como primeiro ponto a transmissão de males hediondos dos pais para os filhos, o que a ciência aliada a filantropia, segundo ele, pode evitar. Mas, quais são esses males? A sífilis, a tuberculose e o alcoolismo, três grandes males da degeneração humana e social. São três mazelas que atingem o tecido social da cidade e do país. Neste sentido, como proteção direta, acredita que muito se tem a fazer e que as ações já em andamento do Departamento Nacional de Saúde Pública em relação a sífilis e a tuberculose em muito pode ajudar a resolver os problemas provocados por essas doenças, problemas que são negativos para o nosso progresso.
A sífilis e a tuberculose são doenças maléficas e degenerativas, porém na fala do médico o alcoolismo aparece como o mais nefasto, pois além da degeneração individual do sujeito, provoca mais diretamente a degeneração não apenas do indivíduo e de seus descendentes, mas o pior a degeneração do tecido social. Ora, a sífilis é uma doença desastrosa na época, pois causava a “esterilização da prole” ou a sua “estigmatização” individual e social por provocar as “mais deploráveis deformidades”. Já a tuberculose, que como todo o mundo sabe, faz depredações enormes ao seio da infância, insidiosamente “acometendo as crianças na mais tenra idade, quase ao desabrochar da vida”. Mas o alcoolismo, é o pior dos males por sua “devastadora ação”, por isso, como proteção indireta, contra esse mal conclama uma enorme cruzada se pelo menos não se conseguir exterminá-lo de vez que pelo menos atenue-se os seus “extensos prejuízos á sociedade”. Pois esse mal vem concorrendo para a constituição dessa legião de “degenerados, de loucos, de idiotas, de surdos-mudos, de epilépticos e de criminosos que enchem os manicômios e povoam as prisões... “ Não é apenas um problema do indivíduo, mas um problema que contamina toda cidade inteira. O médico reconhece que há problemas sociais pois conclui que a sífilis, o alcoolismo e em menor proporção a tuberculose não estão sozinhos como problemas a ser combatidos pelas autoridades e a sociedade, mas ao lado dessas doenças estão também a miséria e os trabalhos forçados. Possivelmente esses são algumas das causas do triste mal do alcoolismo que é preciso combater com todas as energias. E aí a escola é um espaço privilegiado para isso.
Em 1922, no período de realização da Exposição, estava a frente da Prefeitura do Distrito Federal, Carlos César de Oliveira Sampaio, compreendendo sua gestão o período de 8 de junho de 1920 até 15 de novembro de 1922. E na Diretoria de Instrução Pública o médico Ernesto do Nascimento e Silva. De 1920 até 1922, o ensino primário foi ministrado em cinco anos. Sendo os três primeiros constituindo o ensino fundamental, e os dois últimos o complementar. (Carneiro Leão, 1926, p.10). Conforme esse diretor o ensino carecia de verbas, faltavam prédios escolares para abrigar as crianças adequadamente e havia a necessidade de aquisição de material.

ALVES, Nilda, SGARBI, Paulo (org.) Espaços e imagens na Escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
BONATO, Nailda Marinho da Costa. A Escola Profissional para o sexo Feminino através da imagem fotográfica. Campinas: Unicamp. Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-graduação em Educação, em 06 de agosto de 2003.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. Iconografia e história. In. Resgate: revista interdisciplinar de cultura do Centro de Memória Unicamp. Campinas, SP: Papirus, 1990.
CARNEIRO LEÃO, Antonio. O ensino na capital do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comercio, 1926.
NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo, EPU; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Material Escolar, 1974, 1976 reimpressão.

 
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