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  MITOS GREGOS NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS: OLIMPO E MERCADO EDITORIAL

Maria das Dores Soares Maziero

A partir da década de 90 verifica-se um aumento na publicação de adaptações de mitos gregos destinados ao público infantil e juvenil, principalmente dentro daquelas editoras voltadas para o universo escolar. Essa publicação, que ganhou destaque com Monteiro Lobato, se mantém atual graças às diferentes obras e coleções lançadas pelas editoras, que baseadas numa imagem de leitor infantil e juvenil criam estratégias comerciais e editoriais para transformar o livro em um produto cultural sedutor. O objetivo deste trabalho, parte de dissertação de mestrado em andamento, é apresentar as obras sobre mitos gregos destinadas a crianças e jovens, publicadas no período de 1990 a 2004 por cinco editoras: Ática, Cia. das Letras, Cia. das Letrinhas, FTD e Scipione, bem como algumas estratégias utilizadas pelo pólo da produção para atualizar e conformar os clássicos do cânone universal ao público escolar.

Mito: considerações iniciais

Buscar uma explicação para o surgimento da vida e de si próprio tem sido, talvez, uma das questões primordiais a inquietarem o espírito humano. A resposta a essa indagação já foi procurada nos mitos, na religião, na filosofia e, modernamente, também na ciência.
Analisando a mais antiga dessas fontes, a mitológica, podemos ver que os mitos estão presentes em todas as culturas, pois criar narrativas míticas foi uma primeira forma encontrada pelos seres humanos de compreenderem melhor o mundo e a essência da vida, tornando-se uma maneira original de responder à necessidade que temos de encontrar explicações para o que nos cerca, seja o firmamento com todas as suas estrelas, seja o mistério de nossa última viagem.
Definir mito não é tarefa fácil; pode-se buscar tal definição pela perspectiva da Filosofia, da Antropologia, da Psicologia e da Teologia, mas neste trabalho mito tem o sentido de gênero narrativo, constituindo-se no relato das histórias de deuses e heróis da antiguidade clássica grega, ligando-se à esfera da literatura, mais especificamente àquela destinada a crianças e jovens.
As mais antigas narrativas desse gênero são a Odisséia e a Ilíada, de autoria atribuída a Homero, que teriam surgido por volta de 500 a.C. como narrativas orais, constituindo-se na base da literatura ocidental. Este fato torna a mitologia grega referência para a cultura européia e, conseqüentemente, para a nossa, uma vez que personagens como Odisseu, Narciso e Hércules, além de deuses e deusas como Zeus, Afrodite e Atena, passaram a fazer parte do universo artístico da humanidade, através da escultura, da pintura, da literatura e, modernamente, do cinema e até da publicidade.
Como afirma Lajolo (2001),

A cultura grega sobrevive, e não só nos objetos e textos que nos legou. Sobrevive também na herança cultural que permeia nosso hoje e, de forma talvez mais viva, nas sucessivas re-interpretações que seu modo de vida inspirou, e parece continuar inspirando. ( p. 50)

Narrativas pertencentes ao universo da oralidade, nas sociedades arcaicas, inclusive a grega, os mitos estavam ligados a uma dimensão religiosa, sendo segundo Brandão (1997, p. 35) “o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais.”
Da oralidade, quando eram transmitidos por rapsodos e aedos, porém, os mitos foram fixados em uma forma escrita e, através de adaptações diversas, o que era considerado literatura para adultos acabou chegando ao universo infanto-juvenil na Europa e também no Brasil.

Publicações de mitos gregos para crianças no Brasil

1. As aventuras de Telêmaco

No Brasil, uma das referências mais antigas que se tem sobre a leitura de uma obra baseada na mitologia grega é o livro do prelado francês François de Salignac de La Mothe-Fénelon (1651-1715), Les Aventures de Télémaque, lançado postumamente, em 1717 (Lajolo e Zilberman, 1987, p. 14). Segundo Márcia Abreu , essa obra liderava a lista de livros cuja entrada no Brasil era solicitada por livreiros do Rio de Janeiro na época colonial, o que demonstra o enorme sucesso alcançado junto ao público leitor.
Fénelon, centenas de anos depois de Homero, escreveu o livro como parte da educação do neto de Luís XIV, rei da França. Trata-se das aventuras vividas pelo jovem Telêmaco, filho de Odisseu, em busca de notícias sobre o pai desaparecido após o fim da guerra de Tróia. No século XIX, segundo Arroyo (l988), esta obra recebe, em Portugal, uma tradução feita por José da Fonseca, continuando a ser muito apreciada por crianças e jovens de lá e daqui do Brasil.
Trata-se, nesse caso, da leitura da tradução de uma obra estrangeira, que não adapta propriamente um mito grego, mas que se utiliza de personagens e enredo consagrados, no caso as aventuras vividas por Odisseu, rei de Ítaca, ponto de partida para a criação de uma série de outras peripécias inéditas, que não fazem parte da obra de Homero. Desse ponto de vista, portanto, Fénelon é autor e não simples adaptador ou tradutor da obra homérica.

2. O Velocino de ouro

A pesquisa que fizemos sobre a publicação de obras contendo mitos gregos nas primeiras manifestações literárias voltadas para o público infantil brasileiro, nos levou a apenas uma referência sobre o assunto, em 1915. Nesta época e mesmo antes, porém, é importante registrar a existência de um procedimento muito em voga no campo das obras destinadas às nossas crianças: a adaptação e tradução de obras estrangeiras, principalmente européias, situação em que se incluem os mitos. Segundo Lajolo e Zilberman (1987, p. 29),

Carlos Jansen e Figueiredo Pimentel são os que se encarregam, respectivamente, da tradução e adaptação de obras estrangeiras para crianças. Graças a eles, circulam, no Brasil, Contos seletos das mil e uma noites (1882), Robinson Crusoé (1885), Viagens de Gulliver (1888), As aventuras do celebérrimo Barão de Munchhausen (1891), Contos para filhos e netos (1894) e D. Quixote de la Mancha (1901), todos vertidos para língua portuguesa por Jansen. Enquanto isso, os clássicos de Grimm, Perrault e Andersen são divulgados nos Contos da Carochinha (1894), nas Histórias da avozinha (1896) e nas Histórias da baratinha (1896), assinadas por Figueiredo Pimentel e editadas pela Livraria Quaresma.

A única referência que encontramos sobre a publicação de mitos gregos está, de certo modo, ligada às adaptações publicadas pela Livraria Quaresma. Em 1915, o educador paulista Arnaldo de Oliveira Barreto, numa retomada atualizada da idéia levada a cabo por Fidelino Figueiredo, coordena um projeto da editora Melhoramentos, a Biblioteca Infantil, cuja primeira publicação foi O Patinho feio, de Hans Christian Andersen, com ilustrações de Francisco Richter. Eram projetos editoriais semelhantes, que visavam principalmente o público escolar, numa “linha regular de publicações para jovens, sustentada por uma prática editorial moderna”, nas palavras de Lajolo e Zilberman (p. 31).
De acordo com Arroyo (1988, p. 186), o significado revolucionário da iniciativa de Arnaldo de Oliveira Barreto está mais ligado à apresentação gráfica dos volumes e não tanto ao conteúdo. Cabe lembrar que as crianças brasileiras já estavam familiarizadas com os contos clássicos de Perrault, Grimm e Andersen, traduzidos e adaptados, inclusive, pelo próprio Fidelino Figueiredo, mas acontece que O Patinho Feio é o primeiro livro no Brasil a ser editado a quatro cores, para um público que até então só conhecia as impressões em preto e branco.
A respeito dessas inovações gráficas, o aspecto que mais se destaca no projeto editorial da coleção Biblioteca Infantil Melhoramentos e que parece continuar a ser parte importante dos livros voltados para a infância ainda nos dias atuais, Arroyo explica que

Os livros da série inovavam a leitura para a infância pelo seu aspecto gráfico. Fisicamente já representavam um divórcio dos moldes escolares. Não eram volumes pesados, com aquela seriedade doutoral dos lançamentos do século XIX. Pelo contrário, desde seu aspecto externo eram uma festa para os olhos dos meninos pelo seu rosto colorido e a figura simpática da vovozinha cercada de netos. Eram volumes de poucas páginas entremeadas de gravuras também coloridas, estórias compostas em tipo grande, com um equilíbrio de texto em cada página que se constituía em verdadeira atração para a leitura. (ARROYO, 1968, p. 187)

Coelho (1995, p. 31) também considera que esta série editorial representa um marco na história da literatura infantil em São Paulo, informando que esta permaneceu sob a direção do Prof. Arnaldo Barreto até 1925, ano de seu falecimento. O último catálogo organizado pelo professor,

registrava a publicação de 28 títulos: O Patinho Feio, O Soldadinho de Chumbo, O Velocino de Ouro (2 vols), O Isqueiro Encantado, Os Cisnes Selvagens, Viagens Maravilhosas de simbdab, o Marinheiro (2vls), A rosa Mágica, O Califa Stork, As Três cabeças de Ouro, Memórias de um Burro, O Filho do Pescador, O Gato de Botas, Os Três Príncipes Coroados, O Sargento Verde, A Serpente Negra, O Lago das Pedras Preciosas, A Festa das lanternas, flor encarnada, Aladino ou a Lâmpada Maravilhosa, A borboleta Amarela, A Galinha dos Ovos de Ouro, A Gata borralheira, ali Babá e os quarenta Ladrões, A Veadinha Cor de Neve, a Pétala de Rosa, O gigante de Cabelos de Ouro, O Cavaleiro do Cisne. (grifo nosso)

Analisando os títulos citados, percebe-se que dentre os contos de fadas e contos populares, consagrados universalmente como literatura adequada para a infância, encontramos uma referência à adaptação de uma obra pertencente ao universo mitológico da Grécia antiga. O Velocino de Ouro nos remete à história de um dos heróis das narrativas gregas: o jovem Jasão, líder dos argonautas, encarregado de trazer para o rei Pélias o tosão, ou velo, de um animal fantástico: um carneiro com o pêlo inteiramente de ouro, capaz de falar e de voar pelo espaço. Além de tudo isso, o velo dava poder e prosperidade a quem o possuísse, o que justificava a expedição de Jasão e dos argonautas.
Em comum com os demais títulos citados, este mito tem a origem popular, da oralidade, além de ser um exemplo de narrativa de aventura, assim como Simbad, Aladim, Ali Babá e outros heróis encontrados nas demais narrativas constantes do catálogo organizado por Arnaldo de Oliveira Barreto.
O Centro de Referência Mário Covas, entidade ligada à Secretaria de Estado da Educação, sediada no bairro do Brás, em São Paulo, possui os dois volumes de O Velocino de Ouro, identificados como 1a. parte e 2a. parte, numa edição sem data. Os dois volumes fazem parte do acervo do Colégio Caetano de Campos e foram recebidos como doação de um ex-aluno. Um dos volumes traz uma dedicatória datada de 1o. de fevereiro de 1940, portanto podemos calcular que a obra recebeu sucessivas reedições, já que o primeiro volume da coleção Biblioteca Infantil Melhoramentos, da qual faz parte, foi lançado em outubro de 1915. A capa do exemplar, como todos os outros da coleção, traz a mesma figura da avozinha contadora de histórias, cercada de netos, retomando a origem e a forma de transmissão oral dos contos e mitos.
Trata-se, como já foi dito, de uma adaptação do mito de Jasão e dos Argonautas. Em dois volumes pequenos, medindo 15,5 cm de altura por 11 cm de largura, com 64 páginas (1a. parte) e 59 páginas a 2a. parte, são contadas as aventuras de Jasão e dos argonautas, em busca do velo de ouro, que é conquistado por Jasão graças à ajuda de Medéia, uma poderosa feiticeira que por ele se apaixona.

3. Monteiro Lobato: um Olimpo diferente

O universo mitológico, no entanto, só vai ser de fato apresentado às crianças brasileiras de forma mais dirigida e ampliada no século XX, através da obra de Monteiro Lobato, o responsável pela popularização dos mitos gregos entre o público infantil, com obras como O Minotauro (1939) e Os doze trabalhos de Hércules (l944), em que as personagens do Sítio do Picapau Amarelo interagem diretamente com os deuses e heróis do mundo grego.
Diferente de uma mera tradução ou adaptação dos mitos gregos, Monteiro Lobato coloca as personagens do Sítio tomando parte nas aventuras mitológicas. Em O Minotauro, por exemplo, Tia Nastácia é raptada pelo monstro e, ao invés de ser devorada, é aprisionada no Labirinto para fazer bolinhos para a fera. Em Os doze trabalhos de Hércules, sem a ajuda dos picapauzinhos seria impossível o herói obter sucesso na realização de suas difíceis tarefas.
Assim, o que Lobato faz não é a tradução nem mesmo a mera adaptação, isto é, contar com palavras mais simples uma história já conhecida. Ele cria uma obra nova, mantendo os elementos mais importantes da narrativa mítica, porém incluindo aventuras e acontecimentos alheios a ela, introduzindo até mesmo elementos de humor e adequando os fatos narrados às características e personalidade de cada personagem do Sítio.
Desse modo, em Os doze trabalhos de Hércules, por exemplo, cada um dos trabalhos é recontado como está no texto clássico, só que as personagens do sítio têm papel fundamental no sucesso obtido pelo herói. Hércules é batizado por Emília de Lelé, que passa a andar sobre o ombro do fortão, fazendo o papel de cérebro, de quem toma as decisões, já que Lobato deixa claro que o herói tem apenas músculos e força bruta, mas pouco intelecto.

Mitos gregos: publicações das editoras pesquisadas no período de 1990 a 2004

No período compreendido entre 1915, ano provável da publicação de O Velocino de Ouro até os anos 90, encontramos apenas 13 obras sobre mitos gregos, incluindo-se aí Monteiro Lobato, Orígenes Lessa, Elenice Machado e Luiz Galdino, mas esse número se amplia significativamente no período estudado – 1990 a 2004.
A pesquisa em catálogos impressos de 2004 das cinco editoras escolhidas revelou um total de 37 obras sobre mitos gregos, dispostas em diferentes coleções e destinadas ao público infantil e juvenil, sendo vinte e cinco delas classificadas pelas editoras como infantis (quatro primeiras séries do ensino fundamental) e doze destinadas ao público juvenil (quatro séries finais do ensino fundamental).
A seguir, um quadro demonstrativo com o título, autor e data da publicação das obras levantadas pela pesquisa:

PUBLICAÇÕES NA ÁREA DE MITOLOGIA GREGA, NO PERÍODO DE 1990 A 2004, NAS CINCO EDITORAS PESQUISADAS, SEGUNDO OS CATÁLOGOS :

Ano de publicação

Editora

Título            

Autor/adaptador

1990

 

FTD

1. As duas vidas de Adônis  (J) [6]

Mustafá Yazbek

FTD

2. Deméter, a senhora dos trigais (J)

José Arrabal

 

1 9 9 2

 

Ática

 

3 . A Grécia       (J)

Alain Quesnel (Trad. Ana Maria Machado)

1 9 9 3

Scipione

4. Odisséia          (J)

Roberto Lacerda

 

1

9

9

6

 

FTD

5. A caixa de Pandora    

Adriana Bernardino

FTD

6. O destino de Pan

Adriana Bernardino

FTD

7. A beleza de Narciso

Adriana Bernardino

FTD

8.0 O tear das Moiras

Adriana Bernardino

FTD

9. O ouro de Midas

Adriana Bernardino

FTD

10. O sonho de Ícaro

Adriana Bernardino

 

 

1

 

 

9

 

 

9

 

 

7

Cia. Letrinhas

11. Divinas Aventuras

Heloísa Prieto

FTD

12. Adônis

Adriana Bernardino

FTD

13. Píramo e Tisbe

Adriana Bernardino

FTD

14. Aracne

Adriana Bernardino

FTD

15. Hermafrodito

Adriana Bernardino

FTD

16. Tifão

Adriana Bernardino

FTD

17.  Hércules e os doze trabalhos

Adriana Bernardino

FTD

18. Teseu e o Minotauro

Adriana Bernardino

FTD

19. Belerofonte e a Quimera

Adriana Bernardino

FTD

20. Jasão e o Velocino de Ouro

Adriana Bernardino

FTD

21. Ulisses e a Fúria de Posídon

Adriana Bernardino

FTD

22. Perseu e as Górgonas

Adriana Bernardino

1998

FTD

23. A maldição de Édipo     (J)

Luiz Galdino

FTD

24. A vingança de Electra   (J)

Luiz Galdino

 

2000

 

CIA. Letrinhas

25. Ruth Rocha conta a Odisséia

Ruth Rocha

SCIPIONE

26. Odisséia

Adapt. por Leonardo Chianca

FTD

27. Os doze trabalhos de Hércules (J)

Luiz Galdino

 

 

 

2001

FTD

28. O rapto de Helena        (J)

Luiz Galdino

ÁTICA

29. Asas!

 

Jane Yolen, tradução Marcos Bagno

SCIPIONE

30. Ilíada

Adapt. por Leonardo Chianca

CIA. DAS

LETRAS

31. Contos e Lendas da Mitologia Grega        (J)

Claude Pouzadoux

 

2002

SCIPIONE

32. Os doze trabalhos de Hércules

Adapt. por Leonardo Chianca

 

 

2003

SCIPIONE

33. Ilíada          (J)

Adaptado por José

ÁTICA

34.Odisséia (Apresentação de Ana Maria Machado)     (J)

Adapt. de Geraldine McCaughrean

CIA. DAS

LETRAS

35. Os doze trabalhos de Hércules (J)

Christian Grenier  (trad.  Eduardo Brandão)

2004

 

Cia das Letrinhas

36. Ruth Rocha conta a Ilíada

Ruth Rocha

ÁTICA

37. A Ilíada e a Odisséia

Márcia Williams

Uma análise das obras constantes do quadro nos aponta algumas pistas a respeito das estratégias utilizadas pelas editoras em livros sobre mitos gregos. Em primeiro lugar, há uma preferência por mitos cujo enredo envolva ação, aventura e monstros, enfrentados por um herói forte, destemido e, em muitos casos, jovem, o que já estava presente em O Velocino de Ouro, de Arnaldo Barreto e em Os doze trabalhos de Hércules e O Minotauro, de Monteiro Lobato.
Aliás, estes enredos e personagens ainda estão presentes nos catálogos das editoras: temos quatro obras sobre os doze trabalhos de Hércules nas editoras FTD, Scipione e Cia. das Letras. Na FTD, inclusive, há uma adaptação para crianças e outra para o público juvenil. Teseu também continua a enfrentar o Minotauro e Jasão a buscar o velocino de ouro, em duas obras da mesma FTD.
Tendo em vista o número elevado de títulos, faremos um recorte sobre o corpus da pesquisa, passando a nos referir apenas às obras infantis, até mesmo porque o tratamento editorial dado a elas também se aplica às obras juvenis. Sobre a classificação infantil e juvenil, nos ativemos à identificação feita pelas próprias editoras, que separam os livros nos catálogos de acordo com o grau de dificuldade que julgam que a obra apresenta, tendo em vista a idade determinada pela seriação estabelecida pelo sistema educacional vigente.
O primeiro aspecto a ser comentado é a forma encontrada para recontar os mitos, que em sua versão primitiva se encontram em obras destinadas a adultos, escritas em uma linguagem difícil, em gêneros textuais ligados ao mundo da literatura clássica e em obras de autores como Homero e Hesíodo. A tradução/adaptação para o público infantil, afastado de tal universo pela idade e pelas vivências culturais, exige um novo formato e uma nova linguagem.
Assim, algumas obras são adaptações feitas por autores que recontam os mitos gregos em linguagem de hoje, adequada ao público infantil. É o caso, por exemplo, de Leonardo Chianca, da Ed. Ática, que adapta a Odisséia, a Ilíada e Os doze trabalhos de Hércules.
Outras obras, como Asas da editora Ática, são a tradução de uma adaptação feita em outra língua. Seria o equivalente à tradução de As aventuras de Telêmaco, feitas por José da Fonseca no século XIX: alguém, nos Estados Unidos, escreveu a história de Dédalo e Ícaro para as crianças de lá e a editora brasileira compra o direito de publicar a obra, que é traduzida por um autor escolhido pela própria editora. No caso de Asas, Marcos Bagno é doutor em Língua Portuguesa pela USP e autor de quase outras vinte obras infanto-juvenis, portanto não se trata de um tradutor desconhecido; a escolha de seu nome agrega um valor ao livro traduzido, emprestando-lhe credibilidade.
Dentre as vinte e cinco obras infantis, encontramos cinco adaptações dos clássicos gregos Ilíada e Odisséia, por isso escolhemos esses títulos para discutir um aspecto importante quando se fala em adaptações dos clássicos: a questão da autoria. Há uma diferença na forma como esta questão é tratada, na capa e nos créditos, entre as obras assinadas por Ruth Rocha e aquelas feitas por Leonardo Chianca: no caso das obras da editora Scipione, os livros são apresentados como sendo de Homero, com adaptação de Leonardo Chianca. No caso das obras da Companhia das Letrinhas, já está posto no título o fato de serem uma adaptação, só que não aparece esse termo: o título apesar de ser Odisséia e Ilíada, é precedido por um Ruth Rocha conta, aparecendo referência a Homero apenas na última página do livro, onde é mencionado que não se sabe se esse poeta realmente existiu e que é atribuída a ele a autoria de duas obras, a Odisséia e a Ilíada.
De todas as obras analisadas, esse é o único caso em que tal fato acontece, o que nos leva a questionar o porquê de sua ocorrência. Mário Feijó Borges Monteiro, pesquisador da PUC-Rio que estuda as adaptações de clássicos brasileiros, explica que o contrato entre editoras e adaptadores é da mesma natureza daquele estabelecido com os tradutores: a editora contrata esse profissional por uma quantia previamente estabelecida, o que significa que se o livro vender poucos exemplares ele não terá prejuízo algum, do mesmo modo, se for um grande sucesso de vendas, que exija até mesmo sucessivas reedições, ele também não receberá a mais por isso. Em outras palavras: ele não é dono dos direitos autorais da adaptação que fez, porque é o autor, apenas parafraseou, isto é, recontou a história criada por outra pessoa.
No caso de Ruth Rocha, uma escritora consagrada, nome de referência no cenário da literatura infantil brasileira, cuja adaptação da Odisséia foi escolhida para fazer parte do Programa “Literatura em minha casa”, idealizado pelo MEC, ela assume a autoria da obra de um autor que nem se sabe se realmente existiu, como o livro faz questão de dizer, tornando-se, portanto, detentora dos direitos autorais e podendo participar integralmente dos lucros advindos da venda dos livros, garantida pela inclusão do mesmo na já citada campanha oficial de leitura. Este livro tem o selo FNLIJ altamente recomendável, o que atesta o reconhecimento de sua qualidade pelos especialistas em literatura infanto-juvenil e a validação da autoria a Ruth Rocha.
Quanto às obras editadas pela Ática, são ambas traduções: a de Jane Yolen, já citada, é da editora norte-americana Hardcourt; a outra, uma edição bastante interessante, por ser em quadrinhos, de Márcia Williams, vai recontar a Ilíada e a Odisséia em uma linguagem bem-humorada, com o auxílio de desenhos primorosos, da mesma autora. Nesse caso, o fato de os livros serem uma tradução, nos mostra que essa tradição de adaptar textos clássicos, adultos, para o público infantil, é prática corrente também em outros países.
A Scipione tem três obras, todas pertencentes à coleção Reencontro Infantil: Os doze trabalhos de Hércules, A Odisséia e a Ilíada, todas de Leonardo Chianca. As obras são classificadas como adaptação. Ele reconta as histórias, adaptando-as ao universo infantil. Em todos os livros há informações sobre a cultura grega e seus deuses e sobre Homero. Há suplementos indicando atividades para serem trabalhadas a partir dos livros. Na capa dos livros há a indicação da faixa etária à qual se destinam: a partir de nove anos.
Sobre essa preocupação com a utilidade da obra de literatura infantil, Zilberman e Lajolo (l987), afirmam:

Por outro lado, (a literatura infantil) depende também da escolarização da criança, e isso a coloca numa posição subsidiária em relação à educação. Por conseqüência, adota posturas às vezes nitidamente pedagógicas, a fim de, se necessário, tornar patente sua utilidade. (LAJOLO E ZILBERMAN, 1987, p. 18).

No caso da Companhia das Letrinhas/Cia. das Letras, são três obras, sendo uma delas Divinas Aventuras – Histórias da Mitologia Grega, escrita por Heloisa Prieto, que não adapta particularmente nenhuma obra grega, mas antes faz um apanhado geral dos fatos míticos e características próprias dos principais deuses gregos, utilizando um recurso narrativo bastante interessante: dar voz a cada deus, organizando a narrativa em primeira pessoa. A autora ousa, inclusive, a relação com o mundo contemporâneo: na última página aparece uma cena de rua, ilustrada, onde vemos um relógio com a legenda Crono (o deus do tempo para os gregos), uma faculdade Atena (a deusa da sabedoria), entre outros.
Finalmente, é marcante o domínio da editora FTD se considerarmos o total de obras publicadas - esta editora responde por 18 das 25 obras infantis pesquisadas. As obras encontram-se distribuídas em três séries distintas: Heróis da Mitologia, Contos da Mitologia e Lendas da Mitologia e abrangem desde a história de heróis tradicionais, como Jasão, Ulisses e Hércules, até mitos como os de Adônis, Hermafrodito e Aracne, que fogem do modelo das aventuras heróicas de ação. Foram todos publicados nos anos de 1996 e 1997, mas a maioria dos títulos encontra-se fora de catálogo. São obras de texto simples e reduzido, voltadas para o público infantil de até a 4a. série do ensino fundamental, com muitas ilustrações e enredo que conta apenas os fatos principais de cada história.

Considerações finais

Vários aspectos podem ser analisados se olharmos para as obras infantis como um corpus de pesquisa, principalmente o fato de todas elas terem sido publicadas entre 1997 e 2004. Talvez uma primeira explicação para esse fato seja o lançamento dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1998, que propõem o trabalho por temas transversais, sendo um deles a pluralidade cultural. A confirmar essa suposição, alguns catálogos trazem a indicação de que as obras sobre mitologia grega podem ser trabalhadas dentro dos PCNs, como parte do estudo de ética e pluralidade cultural.
Dentro da perspectiva da História Cultural, na qual nosso estudo se baseia, apesar de às vezes os títulos serem os mesmos, como no caso da Odisséia e da Ilíada, a forma como a editora opera a edição das obras as fazem diferentes. As modificações ocorridas na produção dessas obras vão influenciar diferentes formas de recepção e apropriação pelos leitores, e, além disso, permitiriam traçar um perfil desses leitores buscados pelas editoras, uma vez que, segundo Chartier:

... é preciso considerar que as formas produzem sentido e que um texto se reveste de uma significação e de um estatuto inéditos quando mudam os suportes que o propõem à leitura. Toda história das práticas de leitura é, portanto, necessariamente uma história dos objetos escritos e das palavras leitoras. (CHARTIER, 1998, p. 7)

Há, atualmente, um número significativo de obras sobre mitos gregos destinadas a crianças e jovens publicadas pelas editoras pesquisadas. Que modificações sociais levaram o público leitor escolar a se interessar particularmente por mitos gregos, levando-se em conta que as editoras só publicam se há um público desejoso de consumir essa produção cultural?
De Monteiro Lobato aos nossos dias o fascínio despertado pelos deuses e heróis gregos parece permanecer vivo, mas há que se observar as transformações sofridas pela sociedade, pela escola e pelo mercado editorial responsável pela divulgação da literatura infantil; não se pode ignorar o fato de o livro infantil ser um produto cultural, produzido segundo as leis de mercado, com um público-alvo específico e normas internas que regulam a lei da procura e da oferta.
Assim como Lajolo e Zilberman (1987), cremos que

(a literatura infantil) tem características peculiares à produção industrial, a começar pelo fato de que todo livro é, de certa maneira, o modelo em miniatura da produção em série. E configura-se desde sua denominação – trata-se de uma literatura para – como criação visando a um mercado específico, cujas características precisa respeitar e mesmo motivar, sob pena de congestionar suas possibilidades de circulação e consumo. (p. 18)

Quanto aos mitos gregos, pensamos que sobreviveram à transposição da oralidade para a escrita porque trabalham com imagens e situações presentes no imaginário de todos nós, crianças e adultos, que gostamos mesmo é de ouvir ou ler uma boa história. O fascínio exercido pela aventura humana, esta é, no fundo, a fórmula imortal para o sucesso de qualquer tipo de produção literária.

BIBLIOGRAFIA

ARROYO, Leonardo. Literatura Infantil Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, l988.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, Vol. 1. Petrópolis/RJ: Vozes, 1997, v.1.

CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, Roger. História da Leitura no Mundo Ocidental – Vol. 1 - São Paulo: Editora Ática, l998.

CHIANCA, Leonardo (adapt). Odisséia. São Paulo: Scipione, 2000.

________________________ Ilíada. São Paulo: Scipione, 2001

________________________ Os doze trabalhos de Hércules. São Paulo: Scipione, 2002

COELHO, Nelly Novaes. Dicionário Crítico de Literatura Infantil e Juvenil Brasileira: Séculos XIX e XX. São Paulo: Editora da Universidade de são Paulo, 1995.

LAJOLO, Marisa. Literatura: Leitores & Leitura. São Paulo: Moderna, 2001.

LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira – História & Histórias. São Paulo: Ática, 1987.

LOBATO, Monteiro. Os doze trabalhos de Hércules, Vol. I e II. São Paulo: Círculo do Livro, 1995.

__________________ O Minotauro. São Paulo: Círculo do Livro, 1995.

PRIETO, Heloisa. Divinas Aventuras. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1997

ROCHA, Ruth. Odisséia. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2000.

___________ Ilíada. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2004.

YOLEN, Jane. Asas. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Ática, 2002.

Catálogos impressos consultados:

Literatura Juvenil Ática 2004

Literatura Infantil editora Ática – 2004

Literatura apoio didático – Juvenis 2004 – Editora Scipione

Paradidáticos Infantis – 2004 – Editora Scipione

Catálogo Biblioteca Viva – FTD editora

Literatura Juvenil FTD – catálogo 2004

Companhia das Letras – Catálogo 2003

Companhia das Letrinhas – Catálogo 2003

Catálogos virtuais consultados nos seguintes endereços eletrônicos:

http://www.ftd.com.br

http://www.scipione.com.br

http://www.atica.com.br

http://www.ciadasletras.com.br

 
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