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MITOS
GREGOS NA LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS: OLIMPO E MERCADO EDITORIAL
Maria das Dores Soares Maziero
A partir da década de 90 verifica-se um aumento
na publicação de adaptações de mitos gregos
destinados ao público infantil e juvenil, principalmente dentro
daquelas editoras voltadas para o universo escolar. Essa publicação,
que ganhou destaque com Monteiro Lobato, se mantém atual graças
às diferentes obras e coleções lançadas pelas
editoras, que baseadas numa imagem de leitor infantil e juvenil criam
estratégias comerciais e editoriais para transformar o livro em
um produto cultural sedutor. O objetivo deste trabalho, parte de dissertação
de mestrado em andamento, é apresentar as obras sobre mitos gregos
destinadas a crianças e jovens, publicadas no período de
1990 a 2004 por cinco editoras: Ática, Cia. das Letras, Cia. das
Letrinhas, FTD e Scipione, bem como algumas estratégias utilizadas
pelo pólo da produção para atualizar e conformar
os clássicos do cânone universal ao público escolar.
Mito: considerações iniciais
Buscar uma explicação para o surgimento
da vida e de si próprio tem sido, talvez, uma das questões
primordiais a inquietarem o espírito humano. A resposta a essa
indagação já foi procurada nos mitos, na religião,
na filosofia e, modernamente, também na ciência.
Analisando a mais antiga dessas fontes, a mitológica, podemos ver
que os mitos estão presentes em todas as culturas, pois criar narrativas
míticas foi uma primeira forma encontrada pelos seres humanos de
compreenderem melhor o mundo e a essência da vida, tornando-se uma
maneira original de responder à necessidade que temos de encontrar
explicações para o que nos cerca, seja o firmamento com
todas as suas estrelas, seja o mistério de nossa última
viagem.
Definir mito não é tarefa fácil; pode-se buscar tal
definição pela perspectiva da Filosofia, da Antropologia,
da Psicologia e da Teologia, mas neste trabalho mito tem o sentido de
gênero narrativo, constituindo-se no relato das histórias
de deuses e heróis da antiguidade clássica grega, ligando-se
à esfera da literatura, mais especificamente àquela destinada
a crianças e jovens.
As mais antigas narrativas desse gênero são a Odisséia
e a Ilíada, de autoria atribuída a Homero, que teriam surgido
por volta de 500 a.C. como narrativas orais, constituindo-se na base da
literatura ocidental. Este fato torna a mitologia grega referência
para a cultura européia e, conseqüentemente, para a nossa,
uma vez que personagens como Odisseu, Narciso e Hércules, além
de deuses e deusas como Zeus, Afrodite e Atena, passaram a fazer parte
do universo artístico da humanidade, através da escultura,
da pintura, da literatura e, modernamente, do cinema e até da publicidade.
Como afirma Lajolo (2001),
A cultura grega sobrevive, e não só nos objetos e textos
que nos legou. Sobrevive também na herança cultural que
permeia nosso hoje e, de forma talvez mais viva, nas sucessivas re-interpretações
que seu modo de vida inspirou, e parece continuar inspirando. ( p. 50)
Narrativas pertencentes ao universo da oralidade, nas
sociedades arcaicas, inclusive a grega, os mitos estavam ligados a uma
dimensão religiosa, sendo segundo Brandão (1997, p. 35)
“o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante
a intervenção de entes sobrenaturais.”
Da oralidade, quando eram transmitidos por rapsodos e aedos, porém,
os mitos foram fixados em uma forma escrita e, através de adaptações
diversas, o que era considerado literatura para adultos acabou chegando
ao universo infanto-juvenil na Europa e também no Brasil.
Publicações de mitos gregos para crianças
no Brasil
1. As aventuras de Telêmaco
No Brasil, uma das referências mais antigas que
se tem sobre a leitura de uma obra baseada na mitologia grega é
o livro do prelado francês François de Salignac de La Mothe-Fénelon
(1651-1715), Les Aventures de Télémaque, lançado
postumamente, em 1717 (Lajolo e Zilberman, 1987, p. 14). Segundo Márcia
Abreu , essa obra liderava a lista de livros cuja entrada no Brasil era
solicitada por livreiros do Rio de Janeiro na época colonial, o
que demonstra o enorme sucesso alcançado junto ao público
leitor.
Fénelon, centenas de anos depois de Homero, escreveu o livro como
parte da educação do neto de Luís XIV, rei da França.
Trata-se das aventuras vividas pelo jovem Telêmaco, filho de Odisseu,
em busca de notícias sobre o pai desaparecido após o fim
da guerra de Tróia. No século XIX, segundo Arroyo (l988),
esta obra recebe, em Portugal, uma tradução feita por José
da Fonseca, continuando a ser muito apreciada por crianças e jovens
de lá e daqui do Brasil.
Trata-se, nesse caso, da leitura da tradução de uma obra
estrangeira, que não adapta propriamente um mito grego, mas que
se utiliza de personagens e enredo consagrados, no caso as aventuras vividas
por Odisseu, rei de Ítaca, ponto de partida para a criação
de uma série de outras peripécias inéditas, que não
fazem parte da obra de Homero. Desse ponto de vista, portanto, Fénelon
é autor e não simples adaptador ou tradutor da obra homérica.
2. O Velocino de ouro
A pesquisa que fizemos sobre a publicação
de obras contendo mitos gregos nas primeiras manifestações
literárias voltadas para o público infantil brasileiro,
nos levou a apenas uma referência sobre o assunto, em 1915. Nesta
época e mesmo antes, porém, é importante registrar
a existência de um procedimento muito em voga no campo das obras
destinadas às nossas crianças: a adaptação
e tradução de obras estrangeiras, principalmente européias,
situação em que se incluem os mitos. Segundo Lajolo e Zilberman
(1987, p. 29),
Carlos Jansen e Figueiredo Pimentel são os que
se encarregam, respectivamente, da tradução e adaptação
de obras estrangeiras para crianças. Graças a eles, circulam,
no Brasil, Contos seletos das mil e uma noites (1882), Robinson Crusoé
(1885), Viagens de Gulliver (1888), As aventuras do celebérrimo
Barão de Munchhausen (1891), Contos para filhos e netos (1894)
e D. Quixote de la Mancha (1901), todos vertidos para língua portuguesa
por Jansen. Enquanto isso, os clássicos de Grimm, Perrault e Andersen
são divulgados nos Contos da Carochinha (1894), nas Histórias
da avozinha (1896) e nas Histórias da baratinha (1896), assinadas
por Figueiredo Pimentel e editadas pela Livraria Quaresma.
A única referência que encontramos sobre
a publicação de mitos gregos está, de certo modo,
ligada às adaptações publicadas pela Livraria Quaresma.
Em 1915, o educador paulista Arnaldo de Oliveira Barreto, numa retomada
atualizada da idéia levada a cabo por Fidelino Figueiredo, coordena
um projeto da editora Melhoramentos, a Biblioteca Infantil, cuja primeira
publicação foi O Patinho feio, de Hans Christian Andersen,
com ilustrações de Francisco Richter. Eram projetos editoriais
semelhantes, que visavam principalmente o público escolar, numa
“linha regular de publicações para jovens, sustentada
por uma prática editorial moderna”, nas palavras de Lajolo
e Zilberman (p. 31).
De acordo com Arroyo (1988, p. 186), o significado revolucionário
da iniciativa de Arnaldo de Oliveira Barreto está mais ligado à
apresentação gráfica dos volumes e não tanto
ao conteúdo. Cabe lembrar que as crianças brasileiras já
estavam familiarizadas com os contos clássicos de Perrault, Grimm
e Andersen, traduzidos e adaptados, inclusive, pelo próprio Fidelino
Figueiredo, mas acontece que O Patinho Feio é o primeiro livro
no Brasil a ser editado a quatro cores, para um público que até
então só conhecia as impressões em preto e branco.
A respeito dessas inovações gráficas, o aspecto que
mais se destaca no projeto editorial da coleção Biblioteca
Infantil Melhoramentos e que parece continuar a ser parte importante dos
livros voltados para a infância ainda nos dias atuais, Arroyo explica
que
Os livros da série inovavam a leitura para a infância pelo
seu aspecto gráfico. Fisicamente já representavam um divórcio
dos moldes escolares. Não eram volumes pesados, com aquela seriedade
doutoral dos lançamentos do século XIX. Pelo contrário,
desde seu aspecto externo eram uma festa para os olhos dos meninos pelo
seu rosto colorido e a figura simpática da vovozinha cercada de
netos. Eram volumes de poucas páginas entremeadas de gravuras também
coloridas, estórias compostas em tipo grande, com um equilíbrio
de texto em cada página que se constituía em verdadeira
atração para a leitura. (ARROYO, 1968, p. 187)
Coelho (1995, p. 31) também considera que esta
série editorial representa um marco na história da literatura
infantil em São Paulo, informando que esta permaneceu sob a direção
do Prof. Arnaldo Barreto até 1925, ano de seu falecimento. O último
catálogo organizado pelo professor,
registrava a publicação de 28 títulos: O Patinho
Feio, O Soldadinho de Chumbo, O Velocino de Ouro (2 vols), O Isqueiro
Encantado, Os Cisnes Selvagens, Viagens Maravilhosas de simbdab, o Marinheiro
(2vls), A rosa Mágica, O Califa Stork, As Três cabeças
de Ouro, Memórias de um Burro, O Filho do Pescador, O Gato de Botas,
Os Três Príncipes Coroados, O Sargento Verde, A Serpente
Negra, O Lago das Pedras Preciosas, A Festa das lanternas, flor encarnada,
Aladino ou a Lâmpada Maravilhosa, A borboleta Amarela, A Galinha
dos Ovos de Ouro, A Gata borralheira, ali Babá e os quarenta Ladrões,
A Veadinha Cor de Neve, a Pétala de Rosa, O gigante de Cabelos
de Ouro, O Cavaleiro do Cisne. (grifo nosso)
Analisando os títulos citados, percebe-se que dentre os contos
de fadas e contos populares, consagrados universalmente como literatura
adequada para a infância, encontramos uma referência à
adaptação de uma obra pertencente ao universo mitológico
da Grécia antiga. O Velocino de Ouro nos remete à história
de um dos heróis das narrativas gregas: o jovem Jasão, líder
dos argonautas, encarregado de trazer para o rei Pélias o tosão,
ou velo, de um animal fantástico: um carneiro com o pêlo
inteiramente de ouro, capaz de falar e de voar pelo espaço. Além
de tudo isso, o velo dava poder e prosperidade a quem o possuísse,
o que justificava a expedição de Jasão e dos argonautas.
Em comum com os demais títulos citados, este mito tem a origem
popular, da oralidade, além de ser um exemplo de narrativa de aventura,
assim como Simbad, Aladim, Ali Babá e outros heróis encontrados
nas demais narrativas constantes do catálogo organizado por Arnaldo
de Oliveira Barreto.
O Centro de Referência Mário Covas, entidade ligada à
Secretaria de Estado da Educação, sediada no bairro do Brás,
em São Paulo, possui os dois volumes de O Velocino de Ouro, identificados
como 1a. parte e 2a. parte, numa edição sem data. Os dois
volumes fazem parte do acervo do Colégio Caetano de Campos e foram
recebidos como doação de um ex-aluno. Um dos volumes traz
uma dedicatória datada de 1o. de fevereiro de 1940, portanto podemos
calcular que a obra recebeu sucessivas reedições, já
que o primeiro volume da coleção Biblioteca Infantil Melhoramentos,
da qual faz parte, foi lançado em outubro de 1915. A capa do exemplar,
como todos os outros da coleção, traz a mesma figura da
avozinha contadora de histórias, cercada de netos, retomando a
origem e a forma de transmissão oral dos contos e mitos.
Trata-se, como já foi dito, de uma adaptação do mito
de Jasão e dos Argonautas. Em dois volumes pequenos, medindo 15,5
cm de altura por 11 cm de largura, com 64 páginas (1a. parte) e
59 páginas a 2a. parte, são contadas as aventuras de Jasão
e dos argonautas, em busca do velo de ouro, que é conquistado por
Jasão graças à ajuda de Medéia, uma poderosa
feiticeira que por ele se apaixona.
3. Monteiro Lobato: um Olimpo diferente
O universo mitológico, no entanto, só vai
ser de fato apresentado às crianças brasileiras de forma
mais dirigida e ampliada no século XX, através da obra de
Monteiro Lobato, o responsável pela popularização
dos mitos gregos entre o público infantil, com obras como O Minotauro
(1939) e Os doze trabalhos de Hércules (l944), em que as personagens
do Sítio do Picapau Amarelo interagem diretamente com os deuses
e heróis do mundo grego.
Diferente de uma mera tradução ou adaptação
dos mitos gregos, Monteiro Lobato coloca as personagens do Sítio
tomando parte nas aventuras mitológicas. Em O Minotauro, por exemplo,
Tia Nastácia é raptada pelo monstro e, ao invés de
ser devorada, é aprisionada no Labirinto para fazer bolinhos para
a fera. Em Os doze trabalhos de Hércules, sem a ajuda dos picapauzinhos
seria impossível o herói obter sucesso na realização
de suas difíceis tarefas.
Assim, o que Lobato faz não é a tradução nem
mesmo a mera adaptação, isto é, contar com palavras
mais simples uma história já conhecida. Ele cria uma obra
nova, mantendo os elementos mais importantes da narrativa mítica,
porém incluindo aventuras e acontecimentos alheios a ela, introduzindo
até mesmo elementos de humor e adequando os fatos narrados às
características e personalidade de cada personagem do Sítio.
Desse modo, em Os doze trabalhos de Hércules, por exemplo, cada
um dos trabalhos é recontado como está no texto clássico,
só que as personagens do sítio têm papel fundamental
no sucesso obtido pelo herói. Hércules é batizado
por Emília de Lelé, que passa a andar sobre o ombro do fortão,
fazendo o papel de cérebro, de quem toma as decisões, já
que Lobato deixa claro que o herói tem apenas músculos e
força bruta, mas pouco intelecto.
Mitos gregos: publicações das editoras pesquisadas
no período de 1990 a 2004
No período compreendido entre 1915, ano provável
da publicação de O Velocino de Ouro até os anos 90,
encontramos apenas 13 obras sobre mitos gregos, incluindo-se aí
Monteiro Lobato, Orígenes Lessa, Elenice Machado e Luiz Galdino,
mas esse número se amplia significativamente no período
estudado – 1990 a 2004.
A pesquisa em catálogos impressos de 2004 das cinco editoras escolhidas
revelou um total de 37 obras sobre mitos gregos, dispostas em diferentes
coleções e destinadas ao público infantil e juvenil,
sendo vinte e cinco delas classificadas pelas editoras como infantis (quatro
primeiras séries do ensino fundamental) e doze destinadas ao público
juvenil (quatro séries finais do ensino fundamental).
A seguir, um quadro demonstrativo com o título, autor e data da
publicação das obras levantadas pela pesquisa:
PUBLICAÇÕES
NA ÁREA DE MITOLOGIA GREGA, NO PERÍODO DE 1990 A 2004, NAS
CINCO EDITORAS PESQUISADAS, SEGUNDO OS CATÁLOGOS :
Ano de
publicação |
Editora |
Título |
Autor/adaptador |
1990
|
FTD |
1. As duas
vidas de Adônis (J) |
Mustafá
Yazbek |
FTD |
2. Deméter,
a senhora dos trigais (J) |
José Arrabal |
1 9 9 2 |
Ática |
3 . A Grécia
(J) |
Alain Quesnel (Trad. Ana Maria Machado) |
1 9 9 3 |
Scipione |
4.
Odisséia (J) |
Roberto
Lacerda |
1
9
9
6
|
FTD |
5. A caixa
de Pandora |
Adriana
Bernardino |
FTD |
6. O destino
de Pan |
Adriana
Bernardino |
FTD |
7. A beleza
de Narciso |
Adriana
Bernardino |
FTD |
8.0 O tear
das Moiras |
Adriana
Bernardino |
FTD |
9. O ouro
de Midas |
Adriana
Bernardino |
FTD |
10. O sonho
de Ícaro |
Adriana
Bernardino |
1
9
9
7 |
Cia. Letrinhas |
11. Divinas
Aventuras |
Heloísa
Prieto |
FTD |
12. Adônis |
Adriana
Bernardino |
FTD |
13. Píramo
e Tisbe |
Adriana
Bernardino |
FTD |
14. Aracne |
Adriana
Bernardino |
FTD |
15. Hermafrodito |
Adriana
Bernardino |
FTD |
16. Tifão |
Adriana
Bernardino |
FTD |
17.
Hércules e os doze trabalhos |
Adriana
Bernardino |
FTD |
18. Teseu
e o Minotauro |
Adriana
Bernardino |
FTD |
19. Belerofonte
e a Quimera |
Adriana
Bernardino |
FTD |
20. Jasão
e o Velocino de Ouro |
Adriana
Bernardino |
FTD |
21. Ulisses
e a Fúria de Posídon |
Adriana
Bernardino |
FTD |
22. Perseu
e as Górgonas |
Adriana
Bernardino |
1998 |
FTD |
23. A maldição
de Édipo (J) |
Luiz Galdino |
FTD |
24. A vingança
de Electra (J) |
Luiz Galdino |
2000
|
CIA. Letrinhas |
25. Ruth
Rocha conta a Odisséia |
Ruth Rocha |
SCIPIONE |
26.
Odisséia |
Adapt.
por Leonardo Chianca |
FTD |
27. Os
doze trabalhos de Hércules (J) |
Luiz Galdino |
2001 |
FTD |
28. O rapto
de Helena (J) |
Luiz Galdino |
ÁTICA |
29. Asas!
|
Jane Yolen,
tradução Marcos Bagno |
SCIPIONE |
30.
Ilíada |
Adapt.
por Leonardo Chianca |
CIA. DAS
LETRAS |
31. Contos
e Lendas da Mitologia Grega (J) |
Claude
Pouzadoux
|
2002 |
SCIPIONE |
32.
Os doze trabalhos de Hércules |
Adapt.
por Leonardo Chianca |
2003 |
SCIPIONE |
33.
Ilíada (J) |
Adaptado
por José |
ÁTICA |
34.Odisséia
(Apresentação de Ana Maria Machado) (J) |
Adapt.
de Geraldine McCaughrean |
CIA. DAS
LETRAS |
|
Christian Grenier (trad. Eduardo
Brandão) |
2004
|
Cia das
Letrinhas |
36.
Ruth Rocha conta a Ilíada |
Ruth
Rocha |
ÁTICA |
37.
A Ilíada e a Odisséia |
Márcia
Williams |
Uma análise
das obras constantes do quadro nos aponta algumas pistas a respeito das
estratégias utilizadas pelas editoras em livros sobre mitos gregos.
Em primeiro lugar, há uma preferência por mitos cujo enredo
envolva ação, aventura e monstros, enfrentados por um herói
forte, destemido e, em muitos casos, jovem, o que já estava presente
em O Velocino de Ouro, de Arnaldo Barreto e em Os doze trabalhos de Hércules
e O Minotauro, de Monteiro Lobato.
Aliás, estes enredos e personagens ainda estão presentes
nos catálogos das editoras: temos quatro obras sobre os doze trabalhos
de Hércules nas editoras FTD, Scipione e Cia. das Letras. Na FTD,
inclusive, há uma adaptação para crianças
e outra para o público juvenil. Teseu também continua a
enfrentar o Minotauro e Jasão a buscar o velocino de ouro, em duas
obras da mesma FTD.
Tendo em vista o número elevado de títulos, faremos um recorte
sobre o corpus da pesquisa, passando a nos referir apenas às obras
infantis, até mesmo porque o tratamento editorial dado a elas também
se aplica às obras juvenis. Sobre a classificação
infantil e juvenil, nos ativemos à identificação
feita pelas próprias editoras, que separam os livros nos catálogos
de acordo com o grau de dificuldade que julgam que a obra apresenta, tendo
em vista a idade determinada pela seriação estabelecida
pelo sistema educacional vigente.
O primeiro aspecto a ser comentado é a forma encontrada para recontar
os mitos, que em sua versão primitiva se encontram em obras destinadas
a adultos, escritas em uma linguagem difícil, em gêneros
textuais ligados ao mundo da literatura clássica e em obras de
autores como Homero e Hesíodo. A tradução/adaptação
para o público infantil, afastado de tal universo pela idade e
pelas vivências culturais, exige um novo formato e uma nova linguagem.
Assim, algumas obras são adaptações feitas por autores
que recontam os mitos gregos em linguagem de hoje, adequada ao público
infantil. É o caso, por exemplo, de Leonardo Chianca, da Ed. Ática,
que adapta a Odisséia, a Ilíada e Os doze trabalhos de Hércules.
Outras obras, como Asas da editora Ática, são a tradução
de uma adaptação feita em outra língua. Seria o equivalente
à tradução de As aventuras de Telêmaco, feitas
por José da Fonseca no século XIX: alguém, nos Estados
Unidos, escreveu a história de Dédalo e Ícaro para
as crianças de lá e a editora brasileira compra o direito
de publicar a obra, que é traduzida por um autor escolhido pela
própria editora. No caso de Asas, Marcos Bagno é doutor
em Língua Portuguesa pela USP e autor de quase outras vinte obras
infanto-juvenis, portanto não se trata de um tradutor desconhecido;
a escolha de seu nome agrega um valor ao livro traduzido, emprestando-lhe
credibilidade.
Dentre as vinte e cinco obras infantis, encontramos cinco adaptações
dos clássicos gregos Ilíada e Odisséia, por isso
escolhemos esses títulos para discutir um aspecto importante quando
se fala em adaptações dos clássicos: a questão
da autoria. Há uma diferença na forma como esta questão
é tratada, na capa e nos créditos, entre as obras assinadas
por Ruth Rocha e aquelas feitas por Leonardo Chianca: no caso das obras
da editora Scipione, os livros são apresentados como sendo de Homero,
com adaptação de Leonardo Chianca. No caso das obras da
Companhia das Letrinhas, já está posto no título
o fato de serem uma adaptação, só que não
aparece esse termo: o título apesar de ser Odisséia e Ilíada,
é precedido por um Ruth Rocha conta, aparecendo referência
a Homero apenas na última página do livro, onde é
mencionado que não se sabe se esse poeta realmente existiu e que
é atribuída a ele a autoria de duas obras, a Odisséia
e a Ilíada.
De todas as obras analisadas, esse é o único caso em que
tal fato acontece, o que nos leva a questionar o porquê de sua ocorrência.
Mário Feijó Borges Monteiro, pesquisador da PUC-Rio que
estuda as adaptações de clássicos brasileiros, explica
que o contrato entre editoras e adaptadores é da mesma natureza
daquele estabelecido com os tradutores: a editora contrata esse profissional
por uma quantia previamente estabelecida, o que significa que se o livro
vender poucos exemplares ele não terá prejuízo algum,
do mesmo modo, se for um grande sucesso de vendas, que exija até
mesmo sucessivas reedições, ele também não
receberá a mais por isso. Em outras palavras: ele não é
dono dos direitos autorais da adaptação que fez, porque
é o autor, apenas parafraseou, isto é, recontou a história
criada por outra pessoa.
No caso de Ruth Rocha, uma escritora consagrada, nome de referência
no cenário da literatura infantil brasileira, cuja adaptação
da Odisséia foi escolhida para fazer parte do Programa “Literatura
em minha casa”, idealizado pelo MEC, ela assume a autoria da obra
de um autor que nem se sabe se realmente existiu, como o livro faz questão
de dizer, tornando-se, portanto, detentora dos direitos autorais e podendo
participar integralmente dos lucros advindos da venda dos livros, garantida
pela inclusão do mesmo na já citada campanha oficial de
leitura. Este livro tem o selo FNLIJ altamente recomendável, o
que atesta o reconhecimento de sua qualidade pelos especialistas em literatura
infanto-juvenil e a validação da autoria a Ruth Rocha.
Quanto às obras editadas pela Ática, são ambas traduções:
a de Jane Yolen, já citada, é da editora norte-americana
Hardcourt; a outra, uma edição bastante interessante, por
ser em quadrinhos, de Márcia Williams, vai recontar a Ilíada
e a Odisséia em uma linguagem bem-humorada, com o auxílio
de desenhos primorosos, da mesma autora. Nesse caso, o fato de os livros
serem uma tradução, nos mostra que essa tradição
de adaptar textos clássicos, adultos, para o público infantil,
é prática corrente também em outros países.
A Scipione tem três obras, todas pertencentes à coleção
Reencontro Infantil: Os doze trabalhos de Hércules, A Odisséia
e a Ilíada, todas de Leonardo Chianca. As obras são classificadas
como adaptação. Ele reconta as histórias, adaptando-as
ao universo infantil. Em todos os livros há informações
sobre a cultura grega e seus deuses e sobre Homero. Há suplementos
indicando atividades para serem trabalhadas a partir dos livros. Na capa
dos livros há a indicação da faixa etária
à qual se destinam: a partir de nove anos.
Sobre essa preocupação com a utilidade da obra de literatura
infantil, Zilberman e Lajolo (l987), afirmam:
Por outro
lado, (a literatura infantil) depende também da escolarização
da criança, e isso a coloca numa posição subsidiária
em relação à educação. Por conseqüência,
adota posturas às vezes nitidamente pedagógicas, a fim de,
se necessário, tornar patente sua utilidade. (LAJOLO E ZILBERMAN,
1987, p. 18).
No caso da
Companhia das Letrinhas/Cia. das Letras, são três obras,
sendo uma delas Divinas Aventuras – Histórias da Mitologia
Grega, escrita por Heloisa Prieto, que não adapta particularmente
nenhuma obra grega, mas antes faz um apanhado geral dos fatos míticos
e características próprias dos principais deuses gregos,
utilizando um recurso narrativo bastante interessante: dar voz a cada
deus, organizando a narrativa em primeira pessoa. A autora ousa, inclusive,
a relação com o mundo contemporâneo: na última
página aparece uma cena de rua, ilustrada, onde vemos um relógio
com a legenda Crono (o deus do tempo para os gregos), uma faculdade Atena
(a deusa da sabedoria), entre outros.
Finalmente, é marcante o domínio da editora FTD se considerarmos
o total de obras publicadas - esta editora responde por 18 das 25 obras
infantis pesquisadas. As obras encontram-se distribuídas em três
séries distintas: Heróis da Mitologia, Contos da Mitologia
e Lendas da Mitologia e abrangem desde a história de heróis
tradicionais, como Jasão, Ulisses e Hércules, até
mitos como os de Adônis, Hermafrodito e Aracne, que fogem do modelo
das aventuras heróicas de ação. Foram todos publicados
nos anos de 1996 e 1997, mas a maioria dos títulos encontra-se
fora de catálogo. São obras de texto simples e reduzido,
voltadas para o público infantil de até a 4a. série
do ensino fundamental, com muitas ilustrações e enredo que
conta apenas os fatos principais de cada história.
Considerações
finais
Vários
aspectos podem ser analisados se olharmos para as obras infantis como
um corpus de pesquisa, principalmente o fato de todas elas terem sido
publicadas entre 1997 e 2004. Talvez uma primeira explicação
para esse fato seja o lançamento dos Parâmetros Curriculares
Nacionais, em 1998, que propõem o trabalho por temas transversais,
sendo um deles a pluralidade cultural. A confirmar essa suposição,
alguns catálogos trazem a indicação de que as obras
sobre mitologia grega podem ser trabalhadas dentro dos PCNs, como parte
do estudo de ética e pluralidade cultural.
Dentro da perspectiva da História Cultural, na qual nosso estudo
se baseia, apesar de às vezes os títulos serem os mesmos,
como no caso da Odisséia e da Ilíada, a forma como a editora
opera a edição das obras as fazem diferentes. As modificações
ocorridas na produção dessas obras vão influenciar
diferentes formas de recepção e apropriação
pelos leitores, e, além disso, permitiriam traçar um perfil
desses leitores buscados pelas editoras, uma vez que, segundo Chartier:
... é
preciso considerar que as formas produzem sentido e que um texto se reveste
de uma significação e de um estatuto inéditos quando
mudam os suportes que o propõem à leitura. Toda história
das práticas de leitura é, portanto, necessariamente uma
história dos objetos escritos e das palavras leitoras. (CHARTIER,
1998, p. 7)
Há,
atualmente, um número significativo de obras sobre mitos gregos
destinadas a crianças e jovens publicadas pelas editoras pesquisadas.
Que modificações sociais levaram o público leitor
escolar a se interessar particularmente por mitos gregos, levando-se em
conta que as editoras só publicam se há um público
desejoso de consumir essa produção cultural?
De Monteiro Lobato aos nossos dias o fascínio despertado pelos
deuses e heróis gregos parece permanecer vivo, mas há que
se observar as transformações sofridas pela sociedade, pela
escola e pelo mercado editorial responsável pela divulgação
da literatura infantil; não se pode ignorar o fato de o livro infantil
ser um produto cultural, produzido segundo as leis de mercado, com um
público-alvo específico e normas internas que regulam a
lei da procura e da oferta.
Assim como Lajolo e Zilberman (1987), cremos que
(a literatura
infantil) tem características peculiares à produção
industrial, a começar pelo fato de que todo livro é, de
certa maneira, o modelo em miniatura da produção em série.
E configura-se desde sua denominação – trata-se de
uma literatura para – como criação visando a um mercado
específico, cujas características precisa respeitar e mesmo
motivar, sob pena de congestionar suas possibilidades de circulação
e consumo. (p. 18)
Quanto aos
mitos gregos, pensamos que sobreviveram à transposição
da oralidade para a escrita porque trabalham com imagens e situações
presentes no imaginário de todos nós, crianças e
adultos, que gostamos mesmo é de ouvir ou ler uma boa história.
O fascínio exercido pela aventura humana, esta é, no fundo,
a fórmula imortal para o sucesso de qualquer tipo de produção
literária.
BIBLIOGRAFIA
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Vozes, 1997, v.1.
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2000.
________________________ Ilíada. São Paulo: Scipione, 2001
________________________ Os doze trabalhos de Hércules. São
Paulo: Scipione, 2002
COELHO, Nelly Novaes. Dicionário Crítico de Literatura Infantil
e Juvenil Brasileira: Séculos XIX e XX. São Paulo: Editora
da Universidade de são Paulo, 1995.
LAJOLO, Marisa. Literatura: Leitores & Leitura. São Paulo:
Moderna, 2001.
LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira –
História & Histórias. São Paulo: Ática,
1987.
LOBATO, Monteiro. Os doze trabalhos de Hércules, Vol. I e II. São
Paulo: Círculo do Livro, 1995.
__________________ O Minotauro. São Paulo: Círculo do Livro,
1995.
PRIETO, Heloisa. Divinas Aventuras. São Paulo: Companhia das Letrinhas,
1997
ROCHA, Ruth. Odisséia. São Paulo: Companhia das Letrinhas,
2000.
___________ Ilíada. São Paulo: Companhia das Letrinhas,
2004.
YOLEN, Jane. Asas. Tradução de Marcos Bagno. São
Paulo: Ática, 2002.
Catálogos
impressos consultados:
Literatura
Juvenil Ática 2004
Literatura Infantil editora Ática – 2004
Literatura apoio didático – Juvenis 2004 – Editora
Scipione
Paradidáticos Infantis – 2004 – Editora Scipione
Catálogo Biblioteca Viva – FTD editora
Literatura Juvenil FTD – catálogo 2004
Companhia das Letras – Catálogo 2003
Companhia das Letrinhas – Catálogo 2003
Catálogos
virtuais consultados nos seguintes endereços eletrônicos:
http://www.ftd.com.br
http://www.scipione.com.br
http://www.atica.com.br
http://www.ciadasletras.com.br |
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