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  A EDUCAÇÃO LINGÜÍSTICA NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Elisabete Francisco Abud
Júlia Maria Correa Lino dos Santos
Luiz Percival Leme Britto

Refletir língua não é ensinar Língua Padrão

A chamada Gramática Tradicional apresenta uma norma “canônica que serve de refe-rência de correção para textos e falas de pessoas cultas. Isto faz com que se confunda norma culta com padrão de escrita”, o que leva muitos a concluírem que é preciso ensinar norma culta na escola (Britto, 2000, p. 13).
Este autor posiciona-se contrariamente à concepção de ensino que delega como objeti-vo da escola ensinar o português padrão, assumindo que a questão do ponto de vista de uma política lingüística é de “redefinição do objeto mesmo do ensino”.
O ensino de língua, inclusive no que diz respeito à reflexão metalin-güística e aos conhecimentos da língua enquanto fenômeno, não se confunde com a apresentação formal de uma teoria gramatical nem se limita ao nível da frase; e, considerando equivocada e ideológica a associação entre norma culta e escrita e a inexistência de uma moda-lidade unificadora das variedades faladas do português padrão. O pa-pel da escola deve ser o de garantir ao aluno o acesso à escrita e aos discursos que se organizam a partir dela; ao concluirmos é necessário delimitar o que se entende por português padrão e que aplicações esse conceito pode ter. (Britto, 1997, p. 14 e 2003, p. 18)
Travaglia (2001, p. 41) afirma que devemos usar a língua de modos variados e que ao realizar as atividades de ensino e aprendizagem da língua materna não devemos utilizar ape-nas a norma culta, abandonando outras formas e que o aluno apague a variedade usada em seu grupo.
Se tomarmos português padrão como a concepção de língua transmitida pela escola e descrita em dicionários e gramáticas (norma gramatical) ou a chamada norma canônica, cer-tamente essa não é a função da escola.
Partimos do pressuposto que ensinar Língua Portuguesa não é ensinar a língua padrão. Ensinar Língua Portuguesa é refletir sobre seu funcionamento, seus valores, considerados em todas as suas variedades. Para isso, apresentamos alguns conceitos básicos nos quais nos a-poiamos para, na prática, fazer um trabalho de construção de consciência lingüística, buscan-do uma mudança no conteúdo da disciplina, já que como é não está dando conta de oferecer habilidades de leitura e escrita satisfatórias.
O que pretendemos é um trabalho voltado para a reflexão lingüística e como efetiva-mente pode ser realizado na prática de sala de aula, com alunos do ensino fundamental e mé-dio. É impossível pensar a língua sem perceber (ou fazer perceber) o quanto o preconceito lingüístico é presente, forte, e na maioria das vezes não percebido pelos usuários da língua. Cabe aqui citar Gnerre (1985, p. 4) que diz que a língua, dependendo da variedade empregada pelo falante na sociedade “vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas rela-ções econômicas e sociais”. Faz-se necessário mostrar aos alunos que as variedades são usos da língua, não línguas diferentes. Portanto, todas as variedades devem ser reconhecidas, mes-mo aquelas que fogem às normas da Gramática Tradicional, aliás, mesmo estas estão subme-tidas a uma norma.
Se considerarmos que a língua é um elemento fundamental da condição humana, pen-sar a língua, conhecer a lógica do seu funcionamento, a organização, os usos, e saber refletir sobre isso, não como um dado absoluto, mas como um objeto em aberto que se dá à reflexão, parece ser um objeto importante. Esta coisa de olhar para a língua é o que estamos chamando de reflexão lingüística.
Em outras palavras, reflexão lingüística é fazer perguntas, buscar respostas, questionar valores, usos, funcionamentos da língua, na sua totalidade e nas suas particularidades. É per-guntar por que algo é como é, ou como funciona. Na escola, deveria significar tomar a língua não como algo que se ensina a usar, mas como algo sobre o qual se reflete; portanto, o objeto de ensino é a reflexão lingüística, e não a apresentação e o treino de regras de como usar uma modalidade lingüística..
Segundo Geraldi (2002, p.36) “mais do que encontrar uma resposta, o que vale na re-flexão sobre a língua é o processo de tomá-la como objeto. As tentativas, os acertos e os erros ensinam muito mais sobre a língua do que o estudo do produto de uma reflexão feita por ou-tro, sem que se atine com as razões que levaram à reflexão que se estuda”.
É certo que a língua é um fenômeno humano fundamental que merece ser estudado e que qualquer pessoa deve estudar a língua de muitas maneiras. A reflexão, o pensar sobre a língua é um aspecto apresentado em todos os programas e currículos escolares.
O estudante contemporâneo encontra uma sociedade com mudanças rápidas, desen-volvimento tecnológico e científico em áreas antes não exploradas. Uma sociedade em mu-danças exige tomada de novas posições. A escola deverá ser capaz de articulando ciência, trabalho e cultura exercer um projeto político-pedagógico “que permita o enfrentamento das limitações” (Kuenzer, 2001, p.53). “No mundo contemporâneo marcado por um apelo infor-mativo imediato, a reflexão sobre a linguagem e seus sintomas, que se mostram articulados por múltiplos códigos e sobre os processos e procedimentos comunicativos, é mais do que uma necessidade, uma garantia de participação ativa na vida social” (Brasil, Ensino Médio, p. 33). Como vemos, busca-se um ser reflexivo e transformador.
Deveria existir uma especificidade de pensar a língua e refletir a linguagem cientifi-camente nas suas diferentes formas, desenvolvendo a capacidade de raciocínio, a investigação e as habilidades cognitivas. Segundo Ilari (1998, p. 34) devemos dar à escrita, à linguagem e à literatura caráter de vivência, tomar como partida alunos reais e necessidades de expressão, reais, tornando o ensino de Português algo gratificante, oferecendo um ensino onde professo-res e os alunos e os alunos entre si compartilhem as experiências lingüísticas vividas.

Algumas propostas para o Ensino de Língua Portuguesa

A educação lingüística tem por objetivo o desenvolvimento de atividades e idéias vol-tadas para o conhecimento da língua e sua utilização. Com relação à escrita deve-se criar con-dições para que o aluno tenha melhor domínio da escrita para elaborar textos comuns à sua prática, passando naturalmente pela leitura de vários gêneros textuais. Deve-se estimular a linguagem falada, usar e valorizar a sua forma de expressão, defendendo-se de preconceitos lingüísticos. A educação lingüística, portanto, tem como objetivo ampliar as habilidades de fala, escuta, leitura e escrita sem desprezar o que o aluno já sabe (Britto 2002).
Neste sentido, a educação lingüística deve aumentar a capacidade de uso da língua es-crita e falada dos alunos, tendo a língua como um instrumento para compreender o outro e de se fazer entender. Deve contribuir para minimizar preconceitos, especialmente os que se refe-rem à língua.
O especialista preocupado com o ensino voltado para a educação lingüística deve ter claro seu objetivo em cada aula, sem lançar mão do improviso e da criatividade. O professor deve usar a fala e a escrita dos jovens para o estudo que pretende desenvolver. Ensinar língua nessa perspectiva é tomá-la como objeto de reflexão.
Dentre as propostas para o ensino de língua materna, a concepção interacionista da linguagem, defendida por Geraldi (1996) é de suma importância. A língua é constitutiva na medida em que ao internalizar as palavras das pessoas com as quais interagimos, estas pala-vras deixam de ser do outro e passam a ser nossas. Daí a importância de atividades que exijam oralidade, leitura e escrita de uso significativo para o aluno. Nesta visão interacionista os me-canismos lingüísticos são construídos por meio das relações interpessoais, intertextuais etc. O que existe é uma preocupação para que a leitura seja um processo de produção de sentidos para os estudantes.
Mudar o conteúdo de Língua Portuguesa implica de(com)frontar-se com uma escola ainda tradicionalista, implica encontrar professores dispostos (diante de todas as dificuldades que sabemos que eles enfrentam) a pesquisar, planejar, confrontar dados, refletir sua prática (num processo de ação-reflexão-ação), mudar metodologias e imbuir-se de um novo conceito de avaliar seu aluno.
Usamos atividades epilingüísticas como ponto de partida para reflexões mais aprofun-dadas, atividades que levem ao conhecimento sobre o funcionamento da língua: comparar expressões, transformá-las, movimentos de escrita e reescrita (canônicos ou não), brincar com a linguagem. A atividade epilingüística ocorre quando o sujeito modifica seu texto conscien-temente, buscando na ressignificação e na reconstrução da linguagem o sentido que deseja expressar (Franchi, 1987).
De forma a ilustrar a tese, apresentamos algumas atividades práticas desenvolvidas por duas professoras-pesquisadoras. Pensamos que a análise destas práticas é uma forma mais dinâmica de fundamentar nossa proposta.

A Prática no Ensino Fundamental

Para que as aulas de Língua Portuguesa tenham significado para o aluno e para atingi-rem o objetivo proposto que é a reflexão lingüística “coerência e consistência de valores e atitudes” são essenciais na prática da professora (Franchi, 2002, p. 140), bem como dar ao ensino da língua caráter significativo e interativo.
Optou-se pelo uso do livro didático porque o interessante seria mostrar o que é possí-vel uma professora fazer objetivamente dentro dos referenciais que construiu sobre o ensino da língua. Trata-se de uma pesquisa-participante em que a professora é agente da ação e ao mesmo tempo investigadora de si mesma e de suas ações. As turmas escolhidas para o desen-volvimento da pesquisa foram 7as. Séries de uma escola pública estadual de Sorocaba. As au-las não eram propriamente de reflexão lingüística, mas deveriam estar voltadas para isso.
Fez parte deste trabalho não apenas demonstrar a possibilidade de outro modelo de ensino de língua, mas relatar como ocorre o processo de mudança de uma professora formada nos moldes tradicionais e a tentativa de rompimento com esse modelo tradicionalista de ensi-no na professora e em seus alunos.
Num primeiro momento quem determina o conteúdo a ser ensinado é a professora, mas ao observar a querência do aprender dos alunos também eles determinam o conteúdo de ensino.
A atividade desenvolvida ocorreu a partir do texto Passaredo , de Francis Hime e Chi-co Buarque,transcrito a seguir:


Ei, pintassilgo
Oi, pintarroxo
Melro, uirapuru
Ai, chega-e-vira
Engole- vento
Saíra, inhambu
Foge, asa-branca
Vai, patativa
Tordo, tuju, tuim
Xô, tié-sangue
Xô, tié-fogo
Xô, rouxinol sem
fim
Some, coleiro
Anda, trigueiro
Te esconde, colibri
Voa, macuco
Voa, viúva
Utiariti
Bico calado
Toma cuidado
Que o homem vem aí
O homem vem aí
O homem vem aí
Ei, quero-quero
Oi, tico-tico
Anum, pardal, chapim
Xô, cotovia
Xô, ave-fria
Xô, pescador-martim
Some, rolinha
Anda, andorinha
Te esconde, bem-te-vi
Voa, bicudo
Voa, sanhaço
Vai, juriti
Bico calado
Muito cuidado
Que o homem vem aí
O homem vem aí
O homem vem aí



Atividades que não eram propostas pelo livro didático foram acrescentadas pela professora:

a) Quem são os autores?
b) O que significa “passaredo”? Quais palavras poderiam substituir “passaredo?
Ouviu-se passarada, passarinhada e pôde-se discutir o significado do sufixo –ada. Matéria teoricamente de 8a. Série, mas aqui considerada apropriada para ser trabalhada com a 7a. série. A outra questão foi apresentada pelo livro e apenas modificada pela profes-sora no seu último item:
c) Separar as palavras em 3 grupos:
- nomes dos pássaros;
- ordens dadas aos pássaros
- explicação para as ordens dadas.



Nesta questão, trabalha-se intencionalmente com a noção abstrata de categoria. Impor-tante os alunos perceberem que nem todas as palavras que indicavam ordem eram verbos: xô, bico calado, muito cuidado.
Para não ensinar acentuação gráfica apresentando-lhes as regras de forma sistemática, a professora selecionou grupos de palavras para que observassem a acentuação

a) juriti – colibri – aí – saíra
b) bicudo – uirapuru – tuju – viúva
c) tié-sangue – ave-fria

Aos poucos foram chegando à conclusão do porquê do acento no i do aí e saíra e não no í de colibri e juriti e outras palavras eram apresentadas por eles como Tatuí, Itu, anel e ia-se pensando se tinham ou não acento, conforme os exemplos que o texto oferecia.
As produções escritas de texto são momentos especiais para a reflexão porque é, na maioria das vezes, um momento individual, o sujeito e a língua / o sujeito pensando em seu interlocutor. Por isso, a necessidade de mostrarmos algumas atividades de produção de textos, que não foram propostos pelo livro didático, mas surgiram dos momentos de leitura e discus-são do texto.
A primeira surgiu da necessidade de que conhecessem a realidade perto de sua casa, sua rua, seu bairro. Consistia em uma pequena pesquisa elaborada por eles em sala de aula. As perguntas eram anotadas na lousa, reelaboradas coletivamente e assim selecionaram-se quatro delas para fazer parte da entrevista que cada um faria perto de sua casa

a) Quem tem pássaros em gaiolas e por quê?
b) Qual a sensação de manter os pássaros presos?
c) Quais os pássaros em extinção? Onde vivem?
d) Apresentar soluções para que pessoas não comercializem animais silvestres.


A segunda atividade de produção de texto implicou dividir a classe em grupos. Cada grupo apresentaria alguns tipos de pássaros que constassem no texto. Para a apresentação des-se trabalho algumas orientações foram necessárias para que as habilidades, supostas pela pro-fessora importantes para o ensino da língua, fossem adquiridas:

1. Durante a apresentação todos os integrantes do grupo deveriam participar;
2. alguns cuidados deveriam ser tomados antes e durante as apresentações:
- selecionar e preparar o material de apoio (anotações, cartazes, transparências etc.);
- dividir a fala de cada componente do grupo, para que todos participem;
- ensaiar a fala ( tom de voz, ritmo, postura );
- procurar fazer-se entender;
- utilizar anotações para ajudar na hora da apresentação.


Com estas atividades a professora procurou colocá-los em campo e instigá-los a buscar alternativas e soluções, por meio da pesquisa lingüística, na escola e fora dela. Quando o alu-no está diante dos outros alunos, na situação de apresentador, sua fala não é a mesma de quando está na carteira conversando com o colega. Deve pensar na sua fala, elaborar sínteses ou outros recursos visuais e/ou escritos como apoios para orientar sua fala.
Como uma terceira atividade de produção de texto, a professora optou por pedir um texto individual que deveria ser de apreciação coletiva para quem se dispusesse ver seu texto melhorado pela classe. Mas, foi combinado que só haveria alteração se o dono do texto con-cordasse. O tema seria com base nos versos Bico calado/ toma cuidado/que o homem vem aí.
O texto da Aline, que optou por fazer um texto bastante parecido com original, foi analisado pela classe



O homem vem aí
Floresta e animais
Aves
Sumam, sumam
Tomem cuidado
Macacos e animais sil-
vestres
Aves e pássaros
Tomem cuidado
Que o homem vem aí
Vem pra matar
Vem pra caçar
Todos os animais

Sumam da mata
Se não ele vai te pegar
Cuidado
Que voem os pássaros exóticos
Para longe daqui
E que vocês tenham sorte
de fugirem
Então com atenção
Fujam
O homem vem aí
O homem vem aí
O homem vem aí


À medida que colocava o texto na lousa os alunos iam sugerindo modificações e a professora ia perguntando à autora se a alteração sugerida era pertinente. Isso dava a ela uma autoridade que não estava habituada, sentindo-se visivelmente importante. Faz parte do papel da professora mostrar o quanto a língua nos dá poder e de quantas maneiras pode-se dizer a mesma coisa. O poder de decisão leva o aluno-autor a tomar consciência daquilo que ele quer dizer e esse processo acaba por levá-lo à reflexão sobre a língua.
Destacamos alguns elementos da semântica que foram discutidos pela classe e a opini-ão da aluna-autora. Em Aves e pássaros, os alunos queriam que ficasse ou aves ou pássaros, mas a Aline não autorizou a mudança alegando que aves podem ser animais de grande porte, enquanto pássaros são animais pequenos e mais frágeis. Que voem os pássaros a turma acres-centou exóticos, pois são esses os alvos dos caçadores. Com relação a toma cuidado, no texto do livro e tomem cuidado, no texto da Aline, foi a professora que os levou a prestarem aten-ção à concordância verbal.

A Prática no Ensino Médio

A insatisfação com a forma de propor o ensino de Língua Portuguesa no Brasil é mui-to antiga. Felizmente, encontramos vários educadores buscando práticas mais criativas e pe-dagógicas que levam seus alunos a refletir, questionar, refazer seus conhecimentos, pensar a língua como ela é, não como deveria ser.
Abordamos aqui a prática de uma educadora em uma escola particular do Ensino Mé-dio, com um sistema apostilado, cujos conteúdos são distribuídos em frentes. O ensino de Língua Portuguesa subdivide-se em Gramática, literatura e Técnica de Redação.
Ao estudar com seus alunos de 1º ano os processos de formação de palavras e os dife-rentes significados dos vocábulos, surgiu o interesse da classe de conhecer as formas outrora utilizadas e que hoje estão em desuso, e refletem um aspecto da língua mais antigo; são os chamados arcaísmos.
A professora não pretendia apresentar modelos ou fixar conceitos, delinear normas, e sim motivar para a busca de diferentes formas de estudo, de levar os alunos à reflexão e à cri-ticidade ao vivenciarem seus conhecimentos. Segundo Geraldi (2002, p. 63-64) devemos transformar a sala de aula “em um tempo de reflexão sobre o já conhecido para aprender o desconhecido e produzir o novo”.
Para conseguir o seu objetivo a professora tomou como referência as práticas sugeri-das por Rodolfo Ilari, lingüista da UNICAMP, que em seu livro “Introdução ao Léxico – brincando com as palavras”, trabalha o Arcaísmo .
Apresentou à classe os escritos do poeta Carlos Drummond de Andrade Antigamente. Os textos Antigamente e Antigamente II foram escritos antes de 1970, como crônicas e apre-senta muitos vocábulos e frases feitas que não são do nosso vocabulário atual.
Pediu aos alunos, como sugere Ilari, que buscassem os sentidos semânticos e explica-ções para as frases que fossem incompreensíveis, e ainda, que comentassem a representação que o poeta traz da vida de antigamente.
Antigamente, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e prendadas. Não faziam anos: completavam primave-ras, em geral dezoito. Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé-de-alferes, arrastando a asa, mas ficavam longos meses debai-xo do balaio. E se levavam tábua, o remédio era tirar o cavalo da chu-va e ir pregar em outra freguesia (...) Os mais idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar a fresca; e também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses iam ao animatógrafo, e mais tarde ao cinematógrafo, chupando balas de alteia. Ou sonhavam em andar de aeroplano; os quais, de pouco siso, se metiam em camisas de onze varas, e até em calças pardas; não admira que dessem com os burros n’água.
(...) Embora sem saber da missa a metade, os presunço-sos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso punham a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe fa-ziam quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram mesmo encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não: verda-deiros cromos, umas tetéias.
(...) Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meni-nos, lombrigas; asthma os gatos, os homens portavam ceroulas, boti-nas e capa de goma (...). Não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam: descansavam.
Mas tudo isso era antigamente, isto é, outrora.

Concomitantemente, trouxe o famoso soneto de Olavo Bilac (Via Láctea XIII) em sua ortografia original para que lessem em voz alta, sem cometer erros, transcrevendo-o para a ortografia atual; visava que percebessem que a ortografia original de um texto denuncia a sua antigüidade.
Via Láctea
Ora (direis) ouvir estrellas! Certo
Perdeste o senso! – E eu vos direi, no emtanto,
Que, para ouvil-as, muita vez desperto
E abro as janellas, pallido de espanto...

E conversamos toda a noite, emquanto
A via Láctea, como um pallio aberto,
Scintilla. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céo deserto.

Direis agora: - Tresloucado amigo!
Que conversas com ellas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão comtigo?

E eu vos direi: amae para entendel-as!
Pois só quem ama póde ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrellas

A professora ofereceu ainda textos selecionados por Rodolfo Ilari que são anún-cios extraídos de jornais brasileiros do século XIX, que trazem palavras que já não se usam ou que são consideradas arcaicas.


ATTENÇÃO!!
AO NOVO ARMAZÉM DE MOLHADOS
Participa-se ao respeitavel publico desta capital, que acaba de abrir se um completo e variado sortimento de molhados, bem como ferragens, drogas, louça e miudezas de armarinho, calçados e muitos outros ob-jectos que se venderão por commodos preços no largo do Chafariz nº 4, esquina da rua Fechada; esta casa estará aberta desde as 7 horas da manha até as 9 da noite. (O 19 de dezembro, 12.8.1854)

ANTIGA LOJA DO QUEIMA
Lino de Sousa Ferreira, chegado ultimamente do Rio de Janeiro com um dos melhores sortimentos e ultima moda, sendo ricos cortes de calça de casimira, manteletes, toucados, colletes, mangas, e camisi-nhas bordadas, calçado, e todo mais pertencente ao seo estabeleci-mento que venderá por todo preço; assim mais transferiu seu estabe-lecimento do largo da matriz nº 42 para a rua das Flores nº 12. (O 19 de dezembro, 12.8.1854)

A classe foi dividida em grupos que, com a ajuda da educadora, pesquisaram no dicio-nário, gramáticas, descobriram novos mundos. O grupo dos anúncios antigos trabalhou orto-grafia, semântica, o sentido de “secos e molhados”. Os estudiosos do soneto de Bilac, compa-raram com outros poetas e poesias. Os alunos de “Antigamente” pesquisaram com as pessoas mais idosas palavras em desusos, trouxeram gírias e expressões regionais mais antigas e rou-pas da época.
Os grupos apresentaram suas conclusões, trocaram experiências de maneira lúdica, refletiram sobre a língua, confirmando o que Ilari sustenta: que aprendemos língua à medida que refletimos sobre ela.
Através da pesquisa foi possível observar como os anúncios, as poesias, os textos e-xemplificam o que mudou na língua, na ortografia e na concepção de propaganda.
Foi um trabalho realizado em conjunto que gerou trocas de experiências e enriqueci-mento de todos. Perceberam que as línguas não são imutáveis, mudam as palavras, as grafias, as significações e que há uma variação histórica gerada pelo uso e pelo correr do tempo.

CONCLUSÃO

O ensino convencional apostilado e o livro didático trazem poucas contribuições à reflexão lingüística, ainda que ofereçam grande quantidade de informação à linguagem. É possível que, utilizados de uma forma diferente pelo professor, venham a contribuir para a reflexão lingüística. Neste caso, é preciso destacar que a contribuição é antes da ação docente do que do próprio material. O professor consciente do objetivo do ensino da língua sabe que quem direciona o que deve ser ensinado é ele, que percebe as necessidades lingüísticas de seus alunos, e não o livro didático.
Portanto, cabe ao professor selecionar o conteúdo do livro e adequá-lo à especificida-de da disciplina de Língua Portuguesa.
Ensinar língua sem ensinar a gramática tradicional é possível quando há um enfren-tamento e persistência do professor para mudar o conteúdo, já que, a ação cotidiana é comple-xa e eivada de idas e vindas.
Dentre os objetivos da pesquisa, certamente combater o preconceito lingüístico, lutar para que os alunos discriminados tenham as mesmas condições de aprendizagem, valorizar a língua dos alunos e todas as variedades lingüísticas foram e continuam sendo grandes desafi-os.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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