Dagoberto Buim Arena - Departamento de Didática
- UNESP, Marília - Programa de Pós-Graduação
em Educação da UNESP.
1. INTRODUÇÃO
Os manuais escolares elaborados para ensinar a ler às
crianças no início da escolarização trazem
tipos diferenciados de orientações para alunos e professores.
Além dos equívocos de conceituação, entre
os quais destaca-se o de que aprender a ler é aprender a pronunciar,
há um outro pouco destacado nos estudos que vêm sendo realizados
sobre leitura. Trata-se do conceito de identificação de
letras, sílabas ou palavras como substituto do conceito do ler.
Aprender a identificar letras, sílabas ou palavras e dar-lhes um
nome, independente da sua sonorização, pode constituir-se
como mediação para a leitura, mas não é leitura.
Em sentido rigoroso, ler é estabelecer uma relação
significativa entre o que está atrás dos olhos com as marcas
gráficas que estão diante dos olhos (SMITH, 1999), ou escapar
do mundo do oral para penetrar no mundo da razão gráfica,
como afirma Foucambert (1996).
Ano após ano, porém, comissões de professores organizadas
pelo MEC analisam os livros didáticos com o objetivo de recomendar
ou não sua compra pelos órgãos educacionais. Na área
do ensino da língua escrita materna para as crianças no
início da escolaridade, as cartilhas ou os primeiros livros, além
de orientar professores e propor exercícios para o aprender a escrever,
também trazem orientações sobre o aprender a ler.
A identificação de letras, de sílabas, de palavras
e de frases tem substituído o processo de identificação
de sentido, este sim, vinculado à compreensão que é
a base da leitura. Esta pesquisa, em andamento, a partir dessa hipótese,
analisará manuais representativos das décadas de 50, 60,
70, 80 e 90 do século XX, e da primeira década do século
XXI. Para este evento, contudo, serão apresentados dados de dois
livros didáticos dos anos de 1955 e 1956.
2. A IDENTIFICAÇÃO E A COMPREENSÃO
EM BAKHTIN
No quarto capítulo de Marxismo e Filosofia da Linguagem
(1998), Bakhtin discute o que considera as orientações do
pensamento filosófico-lingüístico, o objeto, sua natureza
e a metodologia da filosofia da linguagem. Sua preocupação
estende-se ao que considera o “lugar proporcionalmente exagerado”
ocupado pelo aspecto sonoro do signo lingüístico. Para ele,
a linguagem, para ganhar alma, deve inserir-se em “relação
social organizada”, porque são as relações
sociais que criam as condições para que o “complexo
físico-psíquico-fisiológico” possa tornar-se
linguagem. E é com base nesse pressuposto que Bakhtin organiza
o seu pensamento a respeito do papel da linguagem humana, e comenta duas
tendências, na época em que pesquisava (a década de
30, no século XX), presentes nos estudos sobre a filosofia da linguagem:
o subjetivismo idealista, baseado na criação individual
dos atos de fala, e o objetivismo abstrato, com base em um sistema das
formas fonéticas, gramaticais e lexicais da língua, funcionando
como centro organizador de todos os fatos.
Para Bakhtin, contudo, a língua tem sua história como produto
de uma criação coletiva e é isso que a torna complexa,
além das fronteiras do fonético, do gramatical e do individual,
além, portanto, das teses do subjetivismo idealista e do objetivismo
abstrato. De acordo com seu pensamento, os defensores da segunda tendência
(embora também não concorde com a primeira) entendem a língua
como sistema de formas normativas, e entre eles, situa-se Saussure que
compreende a linguagem como “multiforme e heteróclita; participando
de diversos domínios, tanto do físico, quanto do fisiológico
e do psíquico” e a língua como um aspecto da linguagem,
como um princípio de classificação (BAKHTIN 1988,
P. 86).
Entende o lingüista russo que o sistema lingüístico não
deriva da consciência do falante da língua, mas é
resultado de reflexão sobre a língua. Deste modo, para o
falante o que importa é a utilização adequada de
um signo em uma dada situação concreta e não a sua
forma como sinal estável, mas, ao contrário, como sinal
variável e flexível.
É exatamente com base nesse pressuposto que Bakhtin afirma que
O essencial na tarefa de descodificação
não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la
num contexto preciso, compreender sua significação numa
enunciação particular [...] em outros termos, o processo
de descodificação (compreensão) não deve,
em nenhum caso, ser confundido com o processo de identificação.
Trata-se de dois processos profundamente distintos. O signo é descodificado;
só o sinal é identificado. O sinal é uma entidade
de conteúdo imutável: ele não pode substituir, nem
refletir, nem refratar nada; constitui apenas um instrumento técnico
para designar este ou aquele objeto (preciso e imutável) (BAKHTIN,
1988, p. 93).
Bakhtin considerava a descodificação –
ou decodificação – como um ato de compreensão,
embora nos tempos atuais exista a preocupação de estabelecer
oposição clara entre uma e outra, como se uma fosse a negação
da outra. Entretanto, entendendo com Bakhtin que descodificação
é compreensão e que se opõe à identificação,
é possível entender que durante o ato de ler, a letra, a
sílaba, a palavra ou até mesmo a frase, são sinais
estáveis se o ato praticado pelo outro for o de identificação,
isto é, o de reconhecimento e não o de compreensão
que, como afirmou de modo inequívoco, é distinto desse outro
processo.
Ao aprofundar a discussão, o estudioso russo afirma que a forma
lingüística identificada apenas como um sinal, isto é,
como um elemento técnico, não ganha valor lingüístico;
em outras palavras, a palavra não pode existir apenas como sinal,
porque se for apenas sinal, não é palavra: a “pura
sinalidade não existe, mesmo nas primeiras fases de aquisição
da linguagem” (Bakhtin 1988, p. 94) É possível entender
que a pura sinalidade não deveria existir também nas primeiras
fases de aquisição da linguagem escrita ou do aprender a
ler!
Para Bakhtin (1988), o que constitui a compreensão não é
o reconhecimento do sinal, mas a “apreensão da orientação
que é conferida à palavra por um contexto e uma situação
precisos, uma orientação no sentido da evolução
e não do imobilismo.” (Bakhtin, 1988, p. 94) Deste modo,
na língua materna, sinalidade e compreensão podem estar
fundidos, mas na aprendizagem de língua estrangeira dá-se
freqüentemente o reconhecimento do sinal, mas não a sua compreensão.
Durante o processo de aprender a ler, as orientações dos
manuais parecem tomar como pressuposto o ensino da leitura como um processo
de reconhecimento do sinal, como se reconhecer fosse efetivamente ler,
como se fosse compreensão. Se esta hipótese se confirmar,
a escola poderá ter se enredado historicamente em um grande equívoco,
porque elegeu como referência uma tendência da lingüística
que entendia o sinal lingüístico individual como pleno de
significação, especialmente sua marca sonora ou gramatical.
Deste mergulho, ainda que rápido, pelas páginas de Bakhtin,
uma afirmação passa a reforçar a tese inicial deste
projeto: identificar não é compreender, portanto, aprender
a identificar não é saber ler.
3. IDENTIFICAÇÃO E COMPREENSÃO EM
SMITH
Smith (1989) dedica quatro capítulos, de um total
de 12, para discutir a identificação. No sexto trata do
processo de identificação de letras; no sétimo, da
identificação de palavras; no oitavo, da mediação
da fonética na identificação de palavras, e no nono,
a identificação do sentido. Nas páginas iniciais
desse conjunto de quatro capítulos, estabelece a distinção
entre identificação e reconhecimento, conceitos fundamentais
para a compreensão de seu pensamento. Parta ele,
identificação envolve uma decisão de que um objeto
com o que se confronta deve ser colocado em uma determinada categoria.
Não existe uma implicação de que o objeto que está
sendo identificado deveria ter sido visto antes. Reconhecimento, por outro
lado, significa, literalmente, que o objeto com o qual nos confrontamos
já foi visto antes, embora a identificação possa
não estar envolvida. Reconhecemos pessoas quando sabemos que já
as vimos anteriormente, quer possamos dar-lhes os nomes ou não.
Identificamos pessoas quando podemos lhes dar os nomes, tenhamos ou não
as encontrado antes (SMITH, 1989, P.128).
Smith entende identificação e reconhecimento
como processos distintos, mas não os coloca em oposição
como identificação e compreensão. Apenas aponta que
o primeiro tem como preocupação categorizar o objeto, como
por exemplo dar um nome a uma palavra, identificada pela primeira vez,
e o segundo apenas reconhece um objeto já categorizado, no caso
da leitura, uma palavra já anteriormente identificada. Entretanto,
identificação e reconhecimento não se constituem
como atos de compreensão do objeto.
Com respeito ao processo de identificação de letras, Smith
estabelece dois aspectos: um que atribui nomes de categorias às
letras (A, B, D); outro que procura definir as características
distintivas entre essas categorias, portanto, as características
distintivas das letras, ou o conjunto de características que as
torna umas diferentes das outras. Deste modo, entre as dificuldades na
identificação estão as de descobrir os conjuntos
de critérios de características para a definição
da categoria. O problema, para uma criança que está aprendendo
a ler não reside no “esquecimento“ do nome da letra,
isto, de sua categoria, mas em descobrir o conjunto de características
que fazem uma letra receber um nome e não outro. Portanto, mesmo
a identificação de letras, embora não se constitua
processo de leitura, configura-se como um processo inteligente de organização
de características em uma determinada categoria.
Em relação à identificação de palavras,
Smith aponta três abordagens tradicionais: a identificação
de toda a palavra; letra por letra, ou por agrupamento de letras, que
seriam as organizações silábicas. As duas últimas
não trazem argumentação sólida para sua credibilidade,
porque as palavras não são identificadas somando-se letra
a letra ou sílaba a sílaba. A primeira, que trata da identificação
global da palavra, teria como suporte o processo de identificação
da forma. O argumento de Smith é o que seria impossível
o leitor fluente armazenar 50.000 palavras diferentes para aplicar no
seu reconhecimento Assim, a conclusão de Smith é que a identificação
de palavras obedece aos mesmos procedimentos de identificação
de letra, isto é, por conjunto de características. Nas palavras
de Smith,
basicamente, o modelo analítico de características
propõe que a única diferença entre a maneira pela
qual as letras e palavras são identificadas repousa nas categorias
e listas de características que o perceptor emprega na análise
da informação visual. A diferença depende de se o
leitor está procurando por palavras ou por letras: o processo de
olhar e decidir é o mesmo (SMITH, 1989, p. 149).
Quando uma palavra é identificada diretamente, pela análise
de suas características trata-se uma identificação
que Smith considerada imediata; quando se dá o processo de descoberta
do nome da palavra, é possível entender que há uma
identificação mediada da palavra. A identificação,
de qualquer modo, não se dá por lista de regras a serem
cumpridas, mas por elaboração interna e própria de
cada criança no processo de aprender.
No processo de identificação mediada de palavras, a fonética
pode ser uma das estratégias, mas, para Smith, ineficiente, porque
um leitor não identificará uma palavra se não atribuir
sentido utilizando a compreensão, mas pode identificá-la,
por analogia porque “toda, ou parte da palavra desconhecida, é
comparada com todas as palavras ou parte destas, que são conhecidas.”
(SMITH, 1989, p. 174) Mas a mais eficiente identificação
é a que se dá pelo significado: “onde uma criança
puder entender um relacionamento, também aprenderá este
relacionamento, seja entre um nome e uma palavra, entre um significado
e uma palavra, ou entre uma correspondência de ortografia-sons”
(SMITH, 1989, 178).
No capítulo que trata da identificação de sentido,
Smith admite que, neste caso, identificação e compreensão
são categorias equivalentes, porque a compreensão não
se baseia na identificação prévia da palavra, isto
é, não haveria uma etapa de identificação
anterior à compreensão. Ou,
em outras palavras, estou afirmando que a identificação
imediata do sentido é tão independente da identificação
das palavras individuais quanto a identificação imediata
de palavras é independente da identificação de letras
individuais (SMITH, 1989, 180).
A identificação de sentido mediada , isto
é, a que ocorre quando o leitor não consegue atribuir diretamente
sentido ao texto, pode dar-se por uma seqüência de palavras
ou por significado de palavras individuais. Os dois processos apontam
dificuldades: o primeiro porque não é a soma de palavras
individuais que pode desencadear a mediação; o segundo porque,
individualmente, as palavras são ambíguas. O modo praticado
é o de debruçar-se sobre um trecho de sentido em que uma
palavra não seja compreendida de modo que o significado do todo
possa dar um significado possível para uma palavra individual.
É a partir do contexto que os leitores fluentes conseguem estabelecer
a identificação de sentido e encontrarem o caminho para
o aprendizado e para a compreensão.
4. A IDENTIFICAÇÃO E A COMPREENSÃO
PARA FOUCAMBERT (1998)
Foucambert (1998) também discute os processos de identificação
e compreensão e o faz com base nas orientações dadas
ao Ministério de Educação da França por um
psicólogo chamado J. Alegria. Para Alegria há primeiro,
no ato de ler, a identificação das palavras, depois a compreensão
das frases e finalmente a compreensão do discurso em sua totalidade.
Esse modo de entender o processo de ler considera a identificação
das palavras como condição básica para a leitura.
Uma outra posição semelhante é encontrada em Sprenger-Charolles
(FOUCAMBERT 1998, p. 99) ao afirmar que “lê-se para compreender
o texto, mas ler não é compreender o texto. Ler é
identificar palavras escritas.” Em oposição a ele,
Foucambert argumenta que a identificação é conseqüência
da compreensão e não uma condição prévia
a ela.
Para Foucambert (1998), a identificação pode ser entendida
como a própria compreensão se estiver preocupada com o significado
dentro de um contexto, mas jamais a identificação de significantes
isolados pode ser considerada um ato de leitura,
pois é possível sustentar com a mesma firmeza
que a identificação e a compreensão não são
dois momentos sucessivos, já que ler é compreender; neste
caso, se há identificação é porque há
compreensão” (FOUCAMBERT, 1998, p. 96).
Ao defender identificação e compreensão
como processos únicos, não etapas, e vinculados à
atribuição de significados, o estudioso francês, e
crítico das orientações do Ministério da Educação
em seu país, aponta que a própria palavra identificação
é ambígua por ser utilizada por tendências opostas
em relação aos estudos sobre leitura,
para aqueles que distinguem identificação
de compreensão, essa palavra remete decididamente à possibilidade
de fazer corresponder à forma escrita uma forma oral, que por sua
vez permite chagar à significação [...] Para os que
não distinguem identificação e compreensão,
não se trata de identificar uma forma a fim de encontrar para ela
um correspondente oral, mas de atribuir diretamente um significado a um
elemento com base no conjunto em que ela atua: a procura de índices
visuais se insere de antemão uma antecipação de sentido”
(FOUCAMBERT, 1998, p. 99).
Os três estudiosos aqui referenciados, Bakhtin,
Smith e Foucambert, por se situarem no mesmo campo de visão do
processo de aprender a ler, entendem que não há distância,
etapas, hierarquias entre o processo de identificação e
de compreensão. A identificação, ensinada e aprendida
nas salas de aulas, orientada por manuais, é a identificação
desvinculada de sentido, como se fosse a etapa necessária para
a compreensão. São estas preocupações com
o ensino histórica da leitura, na segunda metade do século
XX e na primeira década do século XXI que serão estudadas
nesta pesquisa. Os objetivos, circunscritos a esta etapa, seriam os de
analisar os exercícios de ensino de leitura em manuais da década
de 50, do Século XX, destinados ao ensino fundamental; verificar
o conceito de leitura que embasa as orientações metodológicas
e se os exercícios existentes nos manuais didáticos orientam
para a identificação de letras, sílabas, palavras
ou frases como atos de leitura, sem vínculos com a compreensão.
Como procedimento metodológico serão utilizados os estudos
de Smith (1989; 1999); Bakhtin (1989) e Foucambert (1998) sobre identificação
e compreensão, e com o intuito de analisar os manuais, destacando
a primeira lição; uma intermediária, e a última,
de cada manual.
5. RESULTADOS PRELIMINARES
Um dos objetivos desta pesquisa em andamento é
o de analisar textos para leitura organizados em livros didáticos
desde a década de 50 do último século até
a primeira década do atual. Conhecedores que somos do modo como
são organizados os livros atualmente, causa-nos surpresa a ausência
de questões sobre a compreensão do texto, o que praticamente
elimina a possibilidade do pesquisador verificar se as questões
são dirigidas para a identificação, para o reconhecimento
ou para a construção de sentidos. Os livros que serão
analisados adiante têm estruturas diferentes, mas pouco contemplam
em relação aos objetivos desta pesquisa. Se, de um lado,
os dados são escassos em relação a essa finalidade,
por outro indicam os critérios de seleção de textos
e a preocupação com o ensino de categorias de gramática
descritiva, nas quatro séries iniciais do ensino fundamental.
De acordo com a metodologia apontada no corpo deste trabalho, analiso
três lições de quatro livros: a primeira, uma intermediária,
próxima à metade, e a última.
Do livro 1: CARVALHO, Maria Luiza Britto. Brasil Unido. 4o. livro de leitura.
São Paulo, Editora do Brasil S.ª, 2a. edição,
1955, 121 p., exemplar no. 000999, 39 lições, serão
comentadas a 1a. lição de p. 9 a 12: Teu livro, tua terra,
tua gente, teu idioma (autor: Erasmo Braga); a lição intermediária
de p. 62 e 63: Querido Papai (autor: Silveira Bueno); e a última,
de p. 118 a 121: O Hino Nacional.
Para que o leitor compreenda melhor o universo das lições,
transcrevo 31 títulos entre os 40 que compõem todo o livro:
Teu livro, tua Terra, tua gente, teu idioma; A Bússola; O Papel;
A Imprensa; Gente do Nordeste; A Nossa Pátria; Crenças e
Superstições; As Vaquejadas; O Café; O Vento e o
Sol; Conselho Proveitoso; Padre Anchieta; Querido Papai; Os Bandeirantes;
Higiene e Trabalho; Uma carta de Felicitações; A cidade
de Manaus; Palmares; Carta de Agradecimento; O Rio Amazonas; Santos Dumont;
Ser mãe; Tiradentes; José Bonifácio; Escravo Coroado;
A Generosidade de Caxias; Carta de uma Mãe a seu filho Soldado;
O Cidadão e o Governo; Saudação à Bandeira;
O Hino Nacional: Hino Nacional Brasileiro. São 31 títulos
relacionados aos deveres do cidadão brasileiro, às personalidades
históricas e a produtos ou a espaços geográficos
do país. As demais lições são fábulas
ou poesias de conteúdo moral e patriótico.
A primeira lição – Teu Livro, Tua Terra, Tua Gente,
Teu Idioma pode ser caracterizada como mensagem ufano-patriótica
dirigida diretamente ao pequeno aprendiz de leitor, aluno da 4a. série.
São três as seções após o texto: um
vocabulário com seis palavras e seus sinônimos; um subtítulo:
Gramática em que, em três curtos parágrafos, são
explicados os conceitos de palavra e de palavras homônimas; outro
subtítulo: Exercícios com três questões diretas
sobre os conceitos comunicados pouco antes. Como fecho, é apresentado
um curto texto, suponho complementar, sem título, com três
parágrafos sobre as grandes navegações dos portugueses.
As noções gramaticais e os exercícios não
guardam vínculo algum com os textos apresentados, nem há
questões ou orientações para atividades de leitura.
A apresentação de palavras e de seus sinônimos, na
seção Vocabulário, pode sugerir tentar o encaminhamento
do aluno à situação descrita por Smith, a de dar
pistas para a identificação individual de sentido da palavra,
que, contudo, não se revela como estratégia para a identificação
de sentidos ou de construção de sentidos.
A lição intermediária: Querido Papai, inventada por
Silveira Bueno, conhecido lingüista paulista, tinha a finalidade
de ensinar a formatação de uma carta do tipo familiar, cujos
personagens são o filho, estudante em colégio interno, e
o pai. Possivelmente, esses livros didáticos eram consumidos muito
mais pelos internatos que pelas escolas públicas, porque as preocupações
da criança e a linguagem utilizada pelo missivista são típicas
da classe média da década de 50, cujo objetivo principal
era o de internar os filhos em escolas católicas. Embora o livro
tenha sido editado em 1955, a carta, em respeito à autoria de Silveira
Bueno, trazia a data de 25 de junho de 1952. Não há, nesta
lição, vocabulário. A seção Gramática
cuida de substantivos masculinos e femininos e o conceito de substantivo
comum de dois gêneros. Na seção Exercícios,
há duas questões sobre substantivos e a orientação
para a escrita de uma carta que exprima alegria por um presente recebido
com um final que renove “os protestos de afeição e
reconhecimento e os votos que faz pela sua saúde e prosperidade”.
Tal como na lição anterior, não há orientações
a respeito do conteúdo da carta-texto. A última lição
é a própria letra do Hino Nacional, por isso optei pela
lição anterior que discorre sobre o Hino. Trata-se também
de um texto ufanista, com cinco curtos parágrafos enaltecendo o
Hino e seus compositores, como este: “O hino brasileiro, inspirada
e vibrante composição do insigne maestro Francisco Manuel,
instila em nossos corações o mais puro e o mais vivo amor
ao nosso querido Brasil.” Nada há além do texto exortativo,
portanto, nada que permita ao pesquisador inferir sobre a concepção
de leitura ou sobre as categorias identificação, reconhecimento
e compreensão.
O livro 2: ALVARENGA, Luci. Terra Querida. 2a. Série Primária.
São Paulo, Cia Editora Nacional. 1956, 205 p. exemplar no. 31373,
55a. edição, traz 45 lições. Foram selecionadas
para análise, conforme critérios previamente estabelecidos,
a lição 1 (p. 9 a 13) Sou seu amigo; a lição
23 (p.86 a 88) Domingo, de Olavo Bilac; e a lição 45 (164
a 165) Terra Querida. Após essa lição existem os
chamados, pela autora, Pontos de Geometria, Geografia, História,
Ciências Naturais e Higiene.
O texto tem as características de um depoimento com a finalidade
de apresentação do autor-personagem do livro didático.
Quem sou eu?
Este é o meu retrato.
Está bem parecido. Tenho olhos pretos e cabelos castanhos.
Chamo-me Luís Fernando.
Quer ser meu amigo? Eu gosto de todos os meninos.
Tenho sete anos e Mamãe diz que sou bem crescido. Vou fazer oito
em junho.
Em casa, chamam-me só Luís.
Tenho dois irmãos: o mais velho é o Augusto e o outro se
chama Gil.
Vitória é minha irmãzinha. É a caçula
da família e o encanto de nossa casa.
Papai e Mamãe gostam de todos os filhos e nós também
os amamos muito.
Não há nada melhor que papai, mamãe, os maninhos
e a nossa casa.
São períodos curtos, distribuídos
em 11 parágrafos, dos quais 7 são constituídos por
um período, e 4 por 2 períodos. A concepção
de leitura não é explicitada pela autora. Os exercícios
e demais informações são organizados em dois blocos.
No primeiro há 7 exercícios com propostas de escrita, mas
não de leitura, e 1 exigindo resposta de natureza pessoal, sem
vínculo com o texto. Apenas 2 questões referem-se à
leitura do texto: 1. Quantos anos tem Luís? 2. É da sua
idade? A 1a. questão objetiva a identificação de
um dado, necessário para a formulação da 2a. Embora
haja vínculo entre as idades do autor-personagem e do leitor, a
questão não exige processo intelectual de construção
de sentidos porque tem por intenção apenas identificar o
dado em um texto destituído de elementos coesivos. A 2a. questão
tenta estabelecer o vínculo entre leitor e texto, sem no entanto,
preocupar-se com a atribuição de sentidos com base em conhecimentos
prévios.
No segundo bloco, a autora apresenta o alfabeto, com 23 letras, categorizando-as
como vogais e consoantes. São três as questões que,
objetivando orientar o leitor, destacam a identificação
das letras: 1. Risque as vogais de BRASIL; 2. Qual letra aparece depois
do R? (no alfabeto) É uma vogal ou uma consoante?; 3. Que letras
há aí (três figuras com forma semelhante a letras)?
Os demais exercícios referem-se à escrita (Ditado) e à
pronúncia (rimas). A 1a e a 2a lidam com o reconhecimento de categorias
(vogais ou consoantes) identificadas e apontadas pela autora. A 3a. busca
o reconhecimento da categoria (nome da letra) vinculada às características
visuais.
Nesta lição, as questões pós-texto não
se preocupam com a compreensão porque tem o texto apenas como ponto
de partida para veicular informações de natureza gramatical
ou para treinar ortografia de palavras, em sua maioria não presentes
no texto. As questões que podem aproximar-se de indicativos para
leitura (entendida como atribuição de sentidos), são,
creio, exercícios de identificação, o que corresponde
à hipótese de que a identificação e o reconhecimento
de signos verbais isolados ou em seqüência são tomados
como atos de leitura e, portanto, como estratégia para construir
o leitor. A lição 23, intermediária, é um
poema de Bilac – Domingo – que descreve, em seis estrofes,
com quatro versos, o silêncio dos instrumentos de trabalho e das
escolas sem crianças, mas, em contrapartida, conta sobre as ruas
alegres com as pessoas dirigindo-se à Igreja atendendo ao repicar
dos sinos.
Não há exercícios orientadores para a leitura do
poema. São quatro recomendações apenas, todas com
a intenção de informar categorias gramaticais; exercitar
escritas com ditado; preencher lacunas e redigir frases tendo como referência
o texto poético apresentado. Não há nenhuma sugestão
que indique preocupações com a leitura do poema. Todos os
exercícios remetem ao trabalho com a escrita, mas com a leitura.
A última lição (45), Terra Querida merece transcrição,
pelo exagero:
Este Brasil imenso, que vai do Amazonas ao Rio Grande
do Sul, é a nossa “Terra Querida”.
Mais de 52.000.000 de brasileiros nela vivem, livres e felizes.
Pensam que sou muito pequeno ainda para trabalhar nela, pois Mamãe
e D. Maria me disseram que todas as crianças podem fazer isto.
Estão admirados? Sim, senhores: estudando.
O estudo é o nosso trabalho, o nosso dever. Mais tarde, seremos
homens e mulheres que trabalharão para o seu progresso.
Como podemos mostrar que somos e queremos ser bons brasileiros?
Papai, outro dia, falava ao Augusto:
- Você será digno desta terra abençoada, estudando,
trabalhando por ela; honrando a memória de seus grandes homens;
respeitando seus símbolos e as outras pátrias, como quer
que respeitem a nossa; estudando sua formosa língua; procurando
manter suas tradições; contribuindo para a “Ordem
e Progresso”.
O texto pode ser caracterizado como um chamamento patriótico,
destituído de elementos textuais coesivos que lhe possam dar coerência.
Os exercícios pós-textos são direcionados para ditados
de frases vinculadas ao texto e identificação de vogais,
consoantes, sílabas, acentos, categorias gramaticais, sinonímia,
graus, número, pessoa e tempos verbais. Não há indicações
para compreensão do texto, portanto, nada que pudesse encontrar-se
com o que se considerasse como tentativa de ensinar leitura.
O terceiro e quarto volumes dos livros analisados são da década
de 60. O terceiro é de autoria de Manoel Bergstrom Lourenço
Filho. Trata-se de Aventuras de Pedrinho, 3o. livro, série graduada
Edições Melhoramentos, São Paulo, 7a. edição,
1961, com ilustrações de Oswaldo Storni. O quarto é
de autoria de Theobaldo Miranda Santos destinado à primeira série
primária, editado pela Companhia Editoria Nacional, São
Paulo, 32a. edição, 1960, exemplar n. 26384.
Para entrar em circulação, Aventuras de Pedrinho recebeu
parecer de uma Comissão Especial de Leitura, no Rio de Janeiro,
assinado por Theobaldo Miranda Santos, conhecido autor de manuais para
a educação básica quanto para normalistas, e por
Ismael Lima Coutinho, destacado estudiosos da literatura na primeira metade
do século XX. A data do parecer – 1955 – possivelmente
indica o ano de seu lançamento no mercado editorial brasileiro.
A manifestação, registrada na segunda capa, poderia ter
a finalidade de dar credibilidade ao manual, por ter sido analisada por
figuras de prestígio e funcionar como estratégia de marketing.
Assim estava redigido o parecer:
Parecer no. 519/55. Comissão Especial de Leitura.
Processo no. 9.991/55.
Aventuras de Pedrinho destina-se à aprendizagem de leitura na 3ª.
Série do curso primário. Trata-se de um livro de classe,
vivo e interessante, em que a prática de leitura se acha associada,
de maneira harmoniosa, no estudo dos conhecimentos gerais. Escrito por
eminente professor de psicologia educacional, a referida obra recomenda-se
por sua segura orientação pedagógica, devendo, por
isso, ser aprovada e seu uso autorizado nas escolas primárias do
país. Quanto ao preço do livro, sou de parecer que está
dentro dos limites normais das obras didáticas do mesmo nível
de ensino. Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1955. a) Theobaldo Miranda
Santos. b) Ismael de Lima Coutinho.
Superficial e generosa nos adjetivos, a manifestação mais
procura agradar ao autor e alavancar as vendas da editora, do que propriamente
emitir análise específica sobre o manual, organizado em
quatro partes para contar as aventuras de um garoto, Pedrinho, desde o
sítio onde morava até um giro aéreo pelo país.
Vinculado ao espírito dos anos 50 e 60, a intenção
era a de enaltecer a pátria como faziam outros manuais, com poesias,
biografias e comentários ufanistas. Neste caso, Lourenço
Filho opta por colocar um personagem, no estilo de narrativas, convivendo
com outros personagens que variavam conforme o lugar em que se passavam
as ações, desde o matuto do sítio ao piloto de avião.
Utiliza, ainda, poesias sobre os temas das aventuras. Ao ter a intenção
de divulgar o país utilizou um esquema de narrativas, em que cada
lição era uma aventura, com o personagem principal deslocando-se
por lugares representativos da fauna, da cultura, da economia e sobretudo
da natureza brasileiras. O intuito era ensinar Português, História,
Ciências e Geografia. Os títulos e número de lições
por partes, estão assim distribuídos:
Parte I. Aventura na Floresta. A Floresta (poesia). 1.
Haverá onças. 2 Chico Tião. 3. O acampamento. 4.
Primeira entrada na mata. 5. A clareira dos serelepes. 6. O feijão
de tropeiro. 7. Compadre pra lá e compadre pra cá. 87. Parecenças
e diferenças. 9. Animais roedores. 10. Variedade de bichos. 11.
Animais “com duas vidas”. 12. Visita ao acampamento. 13. O
mundo maravilhoso dos insetos. 14. A coleção de folhas.
15. A raiz (poesia). 16. Perdidos na mata. 17. Usando da inteligência.
18. O instrumento mágico. 19. A Grota Funda. 20. A região
de enormes florestas. 21. Jantar ao pé do fogo. 22. Pau-Brasil
(poesia) (L. FILHO, 1961, p. 3).
Há, de certo modo, semelhanças com a produção
literária de Lobato (1882-1948), uma vez que Pedrinho é
o nome do personagem, que mora em um sítio e participa de aventuras
múltiplas pelas quais o autor insere os conhecimentos que julga
importantes para a formação cultural das crianças
e adolescentes.
A metodologia anunciada no início deste trabalho objetivava analisar
a lição primeira, a última e uma intermediária
de cada manual. Neste caso, porém, a sua organização
obriga o pesquisador a rever os procedimentos. Serão comentadas
as primeiras lições numeradas, porque a Parte sempre é
introduzida por uma poesia, e as partes I, II e IV, também são
concluídas por esse gênero.
A primeira lição – Haverá onças –
conta os preparativos para uma excursão à floresta próxima
ao sítio. No final do texto ilustrado por uma onça em um
galho, o autor apenas orienta professores e alunos para a compreensão
e não coloca nenhum espaço para escrever repostas - prática
que aconteceria na década de 70 -, nem questões ou ensinamentos
de natureza gramatical. São duas as orientações:
Aventuras. Você gostará de ler este livro,
porque ele conta histórias acontecidas com meninos e meninas de
sua idade. Muitas passagens dessas histórias foram inesperadas,
ou verdadeiramente arriscadas. A acontecimentos dessa espécie é
que se dá o nome de aventuras. Aventurar-se significa enfrentar
a boa e a má sorte, expor-se a incertezas (L. FILHO, 1961, p.3).
A esta nota explicativa sobre a organização
do manual, segue uma outra sobre o conceito do que é ler e questões
provocativas para o debate. Trata-se de uma conduta adequada para a época,
embora as perguntas ainda sejam as que remetem para o que aqui chamamos
como de identificação, confundida como compreensão.
Ler e entender. Lemos para entender o que está escrito. Ler sem
compreender de nada vale.Acostume-se a pensar sobre cada frase, que leia.
Para mostrar sobre o trecho que você acabou de ler, responda a estas
perguntas: 1. Quem é Pedrinho. 2. Por que ele estava muito contente?
3. Como se chama o pai dele? 4. Como se chama sua mãe? 5. Como
se chamam seus irmãos? 6. Quem irá acompanhar Pedrinho na
excursão pela mata? 7. Que perguntou D. Clara? 8. Que respondeu
o menino? (L. FILHO, 1961, p. 8)
Ao responder às questões, sem debates,
os meninos e as meninas preocupar-se-iam apenas em identificar as poucas
palavras necessárias, principalmente os nomes dos personagens,
embora a intenção seria a de destacar os aspectos naturais
da terra brasileira. O conceito de ler, por outro lado, é dúbio:
afirma que ler é entender, mas em seguida atribui, ao ato de ler,
duas etapas: a primeira, a de ler, e a segunda, a de compreender.
Parte II. O Tesouro Escondido. Sonho de prata e de ouro
(poesia). 1. A carta misteriosa.2. Quem era Borba Gato. 3. O caso começa
a complicar-se. 4. O estranho mapa. 5. Que seria árvore-jéqui?
6. Procurando o tesouro. 7. Solo, subsolo e rochas duras. 8. Então,
há micróbios na terra? 9. Veios da terra e lençóis
d’ água. 10. Os três reinos da natureza. 11. Cavando
noutro lugar. 12. O arado. 13. Enfim, o tesouro. 14. O que estava dentro
da caixa. 15. Minas Gerais. 16. Belo Horizonte. 17. Mato Grosso e Goiás.
18. O valor do tesouro. 19. Bandeirantes (poesia). ( L. FILHO, 1961, p.
3)
A primeira lição – A carta misteriosa –, ilustrada
por um envelope subscrito e por um carteiro a cavalo, contava a respeito
de uma carta que anunciava um tesouro enterrado. A estrutura da lição
seguia o padrão do manual: questionário, orientações
sobre o gênero carta e exercício. As questões, quase
todas, remetiam para a identificação: Quem era o sr. Damião?
Outras, porém, provocavam a construção de sentido,
porque destacava a trama da narrativa: Esse fazendeiro acreditava na historia
do tesouro? As explicações sobre o gênero destacavam
que a carta é como que uma conversa que se faz por escrito.(L.
FILHO, p. 52) A recomendação era, por último, para
a escrita de uma carta a um amigo, utilizando o pronome você.
Parte III. A viagem inesperada. Minha Terra (poesia).
1. O começo da terceira aventura. 2. Em caminho para o Rio. 3.
A cidade Maravilhosa. 4. A fundação da cidade do Rio. 5.
A Praça da República. 6. Niterói. 7. O “Fortuna”.
8. A bordo do “Fortuna”. 9. Segredos da Navegação.
10. A Terra é redonda. 11. A Terra tem movimentos. 12. O porto
de Santos. 13. São Paulo. 14. Os colonos (poesia). 15. O Monumento
da Independência. 16. No reino da imaginação. 17.
O Paraná. 18. Curitiba. 19. Pinheiros (poesia). 20. Florianópolis.
21. Santa Catarina. 22. Entrando na Lagoa dos Patos. 23. O Rio Grande
do Sul., 24. Porto Alegre. (L. FILHO, 1961, p. 4)
Uma charrete, puxada com cavalo negro, por uma estrada
lamacenta, sob um céu escuro com nuvens, ilustrava a primeira lição
desta parte que anunciava um giro pelo sudeste e pelo sul do país,
por trem e por barco. São três os itens pós-texto:
o primeiro explica o que é uma companhia de negócios; o
segundo cuida do questionário e o terceiro recomenda construção
de frases com substantivos retirados do texto. As questões remetem-se
ora para a identificação - em que estação
do ano se passou a história desta lição; ora para
a compreensão - Como se deu a viagem? (L. FILHO, 1961, p. 92).
Parte IV. A aventura nas nuvens. Canto de Minha Terra
(poesia). 1. Nas nuvens? 2. A composição de Pedrinho. 3.
No avião. 4. Espírito Santo. 5. Você já foi
à Bahia? 6.Salvador. 7. Coqueirais do Sergipe.8. Voando sobre o
Nordeste. 9. A terra das Alagoas. 10. Pernambuco e os holandeses.11. O
Recife, cidade das pontes. 12. Paraíba, capital João Pessoa.
13. O Estado das Salinas. 14. A terra dos verdes mares. 15. Fortaleza,
cajuais e carnaubais. 16. Piauí, Capital Teresina. 17. São
Luís do Maranhão. 18. Nossa Terra (poesia) (L. FILHO, 1961,
p. 4).
Acompanhando um executivo de uma Companhia que mantinha
negócios com o pai, Pedrinho viaja de avião por todo o litoral,
desde Espírito Santo ao Maranhão. Na primeira lição,
o destaque é para as razões que levaram Pedrinho a viajar
de avião, seguidas de uma composição – nome
dado às redações – em que contava as experiências
realizadas pelos brasileiros com aparelhos aéreos, sempre anunciados
como heróis e exemplos de cidadãos. A composição
fora uma tarefa que o pai lhe dera: Desejo que redija uma composição
muito bem feitinha, bem escrita e com boa letra! Os verbos devem concordar
com o sujeito. Os adjetivos devem concordar com os substantivos. E, tudo,
com boa pontuação!. Olhe lá!... (L. FILHO, 1961,
p. 139)
Embora Lourenço Filho tivesse encontrado uma fórmula eficiente
de vendas, porque colocava o país todo em seu manual, por meio
de narrativas, também se utilizava de estratégias para ensinar
regras da gramática, como aquelas recomendadas “pelo pai”,
como um modo de “pagar” a viagem de ócio. Não
há, nesta lição, recomendações sobre
a utilização da leitura. Era uma lição para
ser apenas lida.
Aventuras de Pedrinho trouxe inovações na apresentação
dos manuais, especialmente porque elegeu um personagem que daria o liame
para todas as tramas necessárias para desenvolver o espírito
patriótico, tão presente no período pós-ditadura
getulista. Inovou ainda ao afirmar que ler é compreender, na primeira
lição, e ao sugerir perguntas provocativas para a compreensão.
Analisada essa estrutura, a distancia, com o instrumental teórico
exposto no início deste relatório, é possível,
entretanto, entender que a formulação das questões
obedecia ao principio da identificação como ato de leitura,
principalmente identificação de nomes de personagens ou
de locais. Vez ou outra, a orientação se dava para a atribuição
de sentido à trama, por mais singela que fosse. Trata-se, portanto,
de entendimentos históricos e consagrados sobre o que seria ler,
o que seria compreender e qual seria a metodologia do ensino da leitura.
Destinado para a primeira série, o manual de Theobaldo Miranda
Santos. Linguagem. 1ª. série primária. Companhia Editora
Nacional. São Paulo. 1960. 32ª. edição. exemplar
número 26384, é organizado fundamentalmente sobre orientações
gramaticais. Serão apontadas a primeira lição e a
última, e uma intermediária.
São 22 lições:
1.Alfabeto. 2. Vogais e consoantes.3. Substantivos próprios
e comuns. 4. Emprego das maiúsculas. 5. Acento agudo. 6. Acento
circunflexo. 7. Cedilha. 8. Ponto de interrogação. 9. Ponto
de exclamação. 10. Ponto final. 11. Vírgula. 12.
Ponto e virgula. 13. Til. 14. Sílaba. 15. Separação
de sílabas. 16. Encontros vocálicos. 17. Encontros consonantais.
18. Gênero dos substantivos. 19. Número dos substantivos.
20. Graus dos substantivos. 21. Sinônimos. 22. Antônimos.
(SANTOS, 1960, p. 5).
A primeira lição – Alfabeto - é
subdivida em 4 partes: A . Gramática; B. Exercícios; C.
Redação; D. Leitura silenciosa. Esta última, objeto
desta investigação, estava organizada em duas sub-partes:
1. Leia e complete, abaixo:
Minha casa tem três quartos, uma sala, uma cozinha e
um banheiro. Na frente, há um jardim. Nos fundos,
está o quintal.
Minha casa tem.........
Na frente há um........
Nos fundos está o ....
(SANTOS, 1960, p. 10-11)
Os três períodos descrevem uma casa, de
alguma pessoa, não referenciada anteriormente. As questões
postas exemplificam com toda a clareza a concepção de que
o ensino do ato de ler confunde-se com o ensino da identificação
e reconhecimento de palavras. A sinalidade, no entendimento de Bakhtin,
confunde-se com a construção da leitura como compreensão.
As palavras, completamente sacadas de seu movimento social, se prestam
a exercícios de pronúncia e de reconhecimento e são,
por essa razão, destituídas de sua polissemia e significação.
São meramente sinais destinados ao reconhecimento e à identificação.
A segunda sub-parte tinha este enunciado: “1.Desenhe o que está
faltando nestes animais. Depois escreva o seu nome.” Estavam desenhados
um cavalo sem uma pata, um elefante sem a tromba e um urso sem uma orelha.
Não se trata de leitura silenciosa, mas de observação
silenciosa de desenhos que desembocaria em atividade de etiquetagem escrita
de um objeto.
A lição intermediária – Vírgula –
também subdividida como a anterior, em 4 sub-partes, traz também
no último item a referência a Leitura silenciosa, assim registrada:
1. Leia e, depois, complete as frases da página
seguinte:
Alguns animais têm ossos, como o cão. Outros
não tem ossos, como o mosquito. Outros têm penas, como a
galinha, ou lã como o carneiro. O peixe tem escamas, mas o sapo
tem a pele lisa.
O ..........tem ossos.
O ..........não tem osso.
O ..........tem penas.
O.... ......tem lã.
O ..........tem escamas.
O ..........tem a pele lisa.
2. Escreva os nomes destes animais; depois, marque, com
uma cruz, o que pode servir de alimento. (seguem-se desenhos de um cachorro,
um gato e um coelho). (SANTOS, 1960, p. 56-57)
Na primeira recomendação, novamente o procedimento
de ensinar a ler é o de identificar e reconhecer uma palavra apenas.
A segunda recomendação não é de leitura, novamente,
mas a de reconhecimento de figuras e a escrita de seu nome. Saber escrever
é também saber etiquetar com uma palavra um ser qualquer.
A mesma estrutura é repetida na última lição
– Antônimos.
D) Leitura silenciosa.
1. Leia e, depois, complete, abaixo:
O homem usou, primeiro, a fogueira; depois, a lâmpada de azeite
e a vela. Mais tarde, utilizou o lampião de querosene e o gás
de iluminação. Finalmente, surgiu a luz elétrica.
O homem, primeiro, usou a ....; depois, a ........ e a ........ Mais tarde,
utilizou o ........ e o .......... Finalmente surgiu a ...............
2. Olhe para os desenhos e responda às perguntas: (um bebê
dormindo e uma menina lendo). Que faz o bebê ........ E a menina?...............
(SANTOS, 1960, p. 110-111)
O texto mais longo, com suas características estruturais
e função social claramente definidas, estão na última
página, como propaganda, destacada do corpo do livro. Embora dirigido
aos alunos – Cidadãos de Amanhã - tem, pela sua natureza,
a intenção de criticar a economia brasileira no momento
e a de fazer propaganda de instituições financeiras. Interessante
é anotar que quando os editores não imaginam ensinar leitura,
estão efetivamente colocando a criança na relação
com textos reais, criados nas relações sociais, comas características
de Comunicado.
6.CONCLUSÕES
Não há, explicitamente, formulações
ou orientações para os alunos e professores em relação
ao aprender e ao ensinar a ler, exceto em filho. É possível
entender que o ensino da língua destinava-se prioritariamente às
noções de gramática descritiva e à escrita
de palavras, pelo ditar, ou de construção de textos como
uma carta familiar e, deste modo, ler não seria uma atividade a
ser comentada ou orientada, porque seria apenas o ato de sonorizar as
palavras, portanto, o de praticar o que Bakhtin denunciava como o exercício
da pura sinalidade, como se os alunos pudessem construir sentidos com
base na identificação sonora das palavras.
Os textos revelam preocupação com a exaltação
patriótica em que são destacados feitos de personalidades
do Império e do começo da República, porque apenas
60 separavam a edição dos livros dos eventos históricos
do final do Império e do início do período republicano.
Historicamente, os primeiros anos da década de 50 ficaram marcados
como a época da tentativa de consolidação da democracia
brasileira, após o fim do Estado Novo e de grandes movimentos patrióticos
e ufanistas, ora estimulados pelos getulistas, ora pelos integralistas.
Os livros didáticos, nessa perspectiva, selecionam ou criam textos
impregnados de ideologia nacionalista exacerbada, mas descuidam das orientações,
para o docente e para o aluno, sobre o ensinar e sobre o aprender a ler.
Deste modo, embora as categorias comentadas no corpo teórico deste
artigo pouco puderam ser aplicadas, é possível inferir,
pela própria ausência de dados, que não havia, nesse
momento da educação brasileira, preocupações
didáticas com o ensino e com a aprendizagem da leitura, nas quatro
séries iniciais da escolaridade formal. Lourenço Filho,
entretanto, inovou na organização de seu livro por estruturar
uma longa narrativa, embora patriótica, em trechos curtos, seqüenciais,
com sugestão de perguntas dirigidas aos alunos e ao professor para
a discussão sobre o texto. As questões indicadas pelo autor
seriam ensaios das que seriam utilizadas na década posterior, caracterizadas,
em alguns momentos por tentativas de compreensão, mas, predominantemente
de natureza de identificação e reconhecimento.
REFERÊNCIAS
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São Paulo, Cia Editora Nacional. 1956, 205 p. exemplar no. 31373,
55a. edição
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo : Hucitec,
1988.
CARVALHO, Maria Luiza Britto. Brasil Unido. 4o. livro
de leitura. São Paulo, Editora do Brasil S.ª, 2a. edição,
1955, 121 p., exemplar no. 000999
FOUCAMBERT, J. A leitura em questão. Porto Alegre : Artes Médicas,
1994.
______. A criança, o professor e a leitura. Porto Alegre : Artes
Médicas, 1998.
LOURENÇO FILHO, M. B. . Aventuras de Pedrinho. 3o. livro. Série
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SMITH, F. Compreendendo a leitura: uma análise psicolingüística
do ato de ler. Trad. de Daise Batista. Porto Alegre : Artes Médicas,
1989.
SMITH, F. Leitura significativa, Porto Alegre : Artes Médicas Sul,
1999.