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  LIÇÕES DE LEITURA EM MANUAIS DAS DÉCADAS DE 50 E 60 DO SÉCULO XX

Dagoberto Buim Arena - Departamento de Didática - UNESP, Marília - Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESP.

1. INTRODUÇÃO

Os manuais escolares elaborados para ensinar a ler às crianças no início da escolarização trazem tipos diferenciados de orientações para alunos e professores. Além dos equívocos de conceituação, entre os quais destaca-se o de que aprender a ler é aprender a pronunciar, há um outro pouco destacado nos estudos que vêm sendo realizados sobre leitura. Trata-se do conceito de identificação de letras, sílabas ou palavras como substituto do conceito do ler.
Aprender a identificar letras, sílabas ou palavras e dar-lhes um nome, independente da sua sonorização, pode constituir-se como mediação para a leitura, mas não é leitura. Em sentido rigoroso, ler é estabelecer uma relação significativa entre o que está atrás dos olhos com as marcas gráficas que estão diante dos olhos (SMITH, 1999), ou escapar do mundo do oral para penetrar no mundo da razão gráfica, como afirma Foucambert (1996).
Ano após ano, porém, comissões de professores organizadas pelo MEC analisam os livros didáticos com o objetivo de recomendar ou não sua compra pelos órgãos educacionais. Na área do ensino da língua escrita materna para as crianças no início da escolaridade, as cartilhas ou os primeiros livros, além de orientar professores e propor exercícios para o aprender a escrever, também trazem orientações sobre o aprender a ler.
A identificação de letras, de sílabas, de palavras e de frases tem substituído o processo de identificação de sentido, este sim, vinculado à compreensão que é a base da leitura. Esta pesquisa, em andamento, a partir dessa hipótese, analisará manuais representativos das décadas de 50, 60, 70, 80 e 90 do século XX, e da primeira década do século XXI. Para este evento, contudo, serão apresentados dados de dois livros didáticos dos anos de 1955 e 1956.

2. A IDENTIFICAÇÃO E A COMPREENSÃO EM BAKHTIN

No quarto capítulo de Marxismo e Filosofia da Linguagem (1998), Bakhtin discute o que considera as orientações do pensamento filosófico-lingüístico, o objeto, sua natureza e a metodologia da filosofia da linguagem. Sua preocupação estende-se ao que considera o “lugar proporcionalmente exagerado” ocupado pelo aspecto sonoro do signo lingüístico. Para ele, a linguagem, para ganhar alma, deve inserir-se em “relação social organizada”, porque são as relações sociais que criam as condições para que o “complexo físico-psíquico-fisiológico” possa tornar-se linguagem. E é com base nesse pressuposto que Bakhtin organiza o seu pensamento a respeito do papel da linguagem humana, e comenta duas tendências, na época em que pesquisava (a década de 30, no século XX), presentes nos estudos sobre a filosofia da linguagem: o subjetivismo idealista, baseado na criação individual dos atos de fala, e o objetivismo abstrato, com base em um sistema das formas fonéticas, gramaticais e lexicais da língua, funcionando como centro organizador de todos os fatos.
Para Bakhtin, contudo, a língua tem sua história como produto de uma criação coletiva e é isso que a torna complexa, além das fronteiras do fonético, do gramatical e do individual, além, portanto, das teses do subjetivismo idealista e do objetivismo abstrato. De acordo com seu pensamento, os defensores da segunda tendência (embora também não concorde com a primeira) entendem a língua como sistema de formas normativas, e entre eles, situa-se Saussure que compreende a linguagem como “multiforme e heteróclita; participando de diversos domínios, tanto do físico, quanto do fisiológico e do psíquico” e a língua como um aspecto da linguagem, como um princípio de classificação (BAKHTIN 1988, P. 86).
Entende o lingüista russo que o sistema lingüístico não deriva da consciência do falante da língua, mas é resultado de reflexão sobre a língua. Deste modo, para o falante o que importa é a utilização adequada de um signo em uma dada situação concreta e não a sua forma como sinal estável, mas, ao contrário, como sinal variável e flexível.
É exatamente com base nesse pressuposto que Bakhtin afirma que

O essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular [...] em outros termos, o processo de descodificação (compreensão) não deve, em nenhum caso, ser confundido com o processo de identificação. Trata-se de dois processos profundamente distintos. O signo é descodificado; só o sinal é identificado. O sinal é uma entidade de conteúdo imutável: ele não pode substituir, nem refletir, nem refratar nada; constitui apenas um instrumento técnico para designar este ou aquele objeto (preciso e imutável) (BAKHTIN, 1988, p. 93).

Bakhtin considerava a descodificação – ou decodificação – como um ato de compreensão, embora nos tempos atuais exista a preocupação de estabelecer oposição clara entre uma e outra, como se uma fosse a negação da outra. Entretanto, entendendo com Bakhtin que descodificação é compreensão e que se opõe à identificação, é possível entender que durante o ato de ler, a letra, a sílaba, a palavra ou até mesmo a frase, são sinais estáveis se o ato praticado pelo outro for o de identificação, isto é, o de reconhecimento e não o de compreensão que, como afirmou de modo inequívoco, é distinto desse outro processo.
Ao aprofundar a discussão, o estudioso russo afirma que a forma lingüística identificada apenas como um sinal, isto é, como um elemento técnico, não ganha valor lingüístico; em outras palavras, a palavra não pode existir apenas como sinal, porque se for apenas sinal, não é palavra: a “pura sinalidade não existe, mesmo nas primeiras fases de aquisição da linguagem” (Bakhtin 1988, p. 94) É possível entender que a pura sinalidade não deveria existir também nas primeiras fases de aquisição da linguagem escrita ou do aprender a ler!
Para Bakhtin (1988), o que constitui a compreensão não é o reconhecimento do sinal, mas a “apreensão da orientação que é conferida à palavra por um contexto e uma situação precisos, uma orientação no sentido da evolução e não do imobilismo.” (Bakhtin, 1988, p. 94) Deste modo, na língua materna, sinalidade e compreensão podem estar fundidos, mas na aprendizagem de língua estrangeira dá-se freqüentemente o reconhecimento do sinal, mas não a sua compreensão.
Durante o processo de aprender a ler, as orientações dos manuais parecem tomar como pressuposto o ensino da leitura como um processo de reconhecimento do sinal, como se reconhecer fosse efetivamente ler, como se fosse compreensão. Se esta hipótese se confirmar, a escola poderá ter se enredado historicamente em um grande equívoco, porque elegeu como referência uma tendência da lingüística que entendia o sinal lingüístico individual como pleno de significação, especialmente sua marca sonora ou gramatical. Deste mergulho, ainda que rápido, pelas páginas de Bakhtin, uma afirmação passa a reforçar a tese inicial deste projeto: identificar não é compreender, portanto, aprender a identificar não é saber ler.

3. IDENTIFICAÇÃO E COMPREENSÃO EM SMITH

Smith (1989) dedica quatro capítulos, de um total de 12, para discutir a identificação. No sexto trata do processo de identificação de letras; no sétimo, da identificação de palavras; no oitavo, da mediação da fonética na identificação de palavras, e no nono, a identificação do sentido. Nas páginas iniciais desse conjunto de quatro capítulos, estabelece a distinção entre identificação e reconhecimento, conceitos fundamentais para a compreensão de seu pensamento. Parta ele,

identificação envolve uma decisão de que um objeto com o que se confronta deve ser colocado em uma determinada categoria. Não existe uma implicação de que o objeto que está sendo identificado deveria ter sido visto antes. Reconhecimento, por outro lado, significa, literalmente, que o objeto com o qual nos confrontamos já foi visto antes, embora a identificação possa não estar envolvida. Reconhecemos pessoas quando sabemos que já as vimos anteriormente, quer possamos dar-lhes os nomes ou não. Identificamos pessoas quando podemos lhes dar os nomes, tenhamos ou não as encontrado antes (SMITH, 1989, P.128).

Smith entende identificação e reconhecimento como processos distintos, mas não os coloca em oposição como identificação e compreensão. Apenas aponta que o primeiro tem como preocupação categorizar o objeto, como por exemplo dar um nome a uma palavra, identificada pela primeira vez, e o segundo apenas reconhece um objeto já categorizado, no caso da leitura, uma palavra já anteriormente identificada. Entretanto, identificação e reconhecimento não se constituem como atos de compreensão do objeto.
Com respeito ao processo de identificação de letras, Smith estabelece dois aspectos: um que atribui nomes de categorias às letras (A, B, D); outro que procura definir as características distintivas entre essas categorias, portanto, as características distintivas das letras, ou o conjunto de características que as torna umas diferentes das outras. Deste modo, entre as dificuldades na identificação estão as de descobrir os conjuntos de critérios de características para a definição da categoria. O problema, para uma criança que está aprendendo a ler não reside no “esquecimento“ do nome da letra, isto, de sua categoria, mas em descobrir o conjunto de características que fazem uma letra receber um nome e não outro. Portanto, mesmo a identificação de letras, embora não se constitua processo de leitura, configura-se como um processo inteligente de organização de características em uma determinada categoria.
Em relação à identificação de palavras, Smith aponta três abordagens tradicionais: a identificação de toda a palavra; letra por letra, ou por agrupamento de letras, que seriam as organizações silábicas. As duas últimas não trazem argumentação sólida para sua credibilidade, porque as palavras não são identificadas somando-se letra a letra ou sílaba a sílaba. A primeira, que trata da identificação global da palavra, teria como suporte o processo de identificação da forma. O argumento de Smith é o que seria impossível o leitor fluente armazenar 50.000 palavras diferentes para aplicar no seu reconhecimento Assim, a conclusão de Smith é que a identificação de palavras obedece aos mesmos procedimentos de identificação de letra, isto é, por conjunto de características. Nas palavras de Smith,

basicamente, o modelo analítico de características propõe que a única diferença entre a maneira pela qual as letras e palavras são identificadas repousa nas categorias e listas de características que o perceptor emprega na análise da informação visual. A diferença depende de se o leitor está procurando por palavras ou por letras: o processo de olhar e decidir é o mesmo (SMITH, 1989, p. 149).

Quando uma palavra é identificada diretamente, pela análise de suas características trata-se uma identificação que Smith considerada imediata; quando se dá o processo de descoberta do nome da palavra, é possível entender que há uma identificação mediada da palavra. A identificação, de qualquer modo, não se dá por lista de regras a serem cumpridas, mas por elaboração interna e própria de cada criança no processo de aprender.
No processo de identificação mediada de palavras, a fonética pode ser uma das estratégias, mas, para Smith, ineficiente, porque um leitor não identificará uma palavra se não atribuir sentido utilizando a compreensão, mas pode identificá-la, por analogia porque “toda, ou parte da palavra desconhecida, é comparada com todas as palavras ou parte destas, que são conhecidas.” (SMITH, 1989, p. 174) Mas a mais eficiente identificação é a que se dá pelo significado: “onde uma criança puder entender um relacionamento, também aprenderá este relacionamento, seja entre um nome e uma palavra, entre um significado e uma palavra, ou entre uma correspondência de ortografia-sons” (SMITH, 1989, 178).
No capítulo que trata da identificação de sentido, Smith admite que, neste caso, identificação e compreensão são categorias equivalentes, porque a compreensão não se baseia na identificação prévia da palavra, isto é, não haveria uma etapa de identificação anterior à compreensão. Ou,
em outras palavras, estou afirmando que a identificação imediata do sentido é tão independente da identificação das palavras individuais quanto a identificação imediata de palavras é independente da identificação de letras individuais (SMITH, 1989, 180).

A identificação de sentido mediada , isto é, a que ocorre quando o leitor não consegue atribuir diretamente sentido ao texto, pode dar-se por uma seqüência de palavras ou por significado de palavras individuais. Os dois processos apontam dificuldades: o primeiro porque não é a soma de palavras individuais que pode desencadear a mediação; o segundo porque, individualmente, as palavras são ambíguas. O modo praticado é o de debruçar-se sobre um trecho de sentido em que uma palavra não seja compreendida de modo que o significado do todo possa dar um significado possível para uma palavra individual. É a partir do contexto que os leitores fluentes conseguem estabelecer a identificação de sentido e encontrarem o caminho para o aprendizado e para a compreensão.

4. A IDENTIFICAÇÃO E A COMPREENSÃO PARA FOUCAMBERT (1998)
Foucambert (1998) também discute os processos de identificação e compreensão e o faz com base nas orientações dadas ao Ministério de Educação da França por um psicólogo chamado J. Alegria. Para Alegria há primeiro, no ato de ler, a identificação das palavras, depois a compreensão das frases e finalmente a compreensão do discurso em sua totalidade. Esse modo de entender o processo de ler considera a identificação das palavras como condição básica para a leitura. Uma outra posição semelhante é encontrada em Sprenger-Charolles (FOUCAMBERT 1998, p. 99) ao afirmar que “lê-se para compreender o texto, mas ler não é compreender o texto. Ler é identificar palavras escritas.” Em oposição a ele, Foucambert argumenta que a identificação é conseqüência da compreensão e não uma condição prévia a ela.
Para Foucambert (1998), a identificação pode ser entendida como a própria compreensão se estiver preocupada com o significado dentro de um contexto, mas jamais a identificação de significantes isolados pode ser considerada um ato de leitura,

pois é possível sustentar com a mesma firmeza que a identificação e a compreensão não são dois momentos sucessivos, já que ler é compreender; neste caso, se há identificação é porque há compreensão” (FOUCAMBERT, 1998, p. 96).

Ao defender identificação e compreensão como processos únicos, não etapas, e vinculados à atribuição de significados, o estudioso francês, e crítico das orientações do Ministério da Educação em seu país, aponta que a própria palavra identificação é ambígua por ser utilizada por tendências opostas em relação aos estudos sobre leitura,

para aqueles que distinguem identificação de compreensão, essa palavra remete decididamente à possibilidade de fazer corresponder à forma escrita uma forma oral, que por sua vez permite chagar à significação [...] Para os que não distinguem identificação e compreensão, não se trata de identificar uma forma a fim de encontrar para ela um correspondente oral, mas de atribuir diretamente um significado a um elemento com base no conjunto em que ela atua: a procura de índices visuais se insere de antemão uma antecipação de sentido” (FOUCAMBERT, 1998, p. 99).

Os três estudiosos aqui referenciados, Bakhtin, Smith e Foucambert, por se situarem no mesmo campo de visão do processo de aprender a ler, entendem que não há distância, etapas, hierarquias entre o processo de identificação e de compreensão. A identificação, ensinada e aprendida nas salas de aulas, orientada por manuais, é a identificação desvinculada de sentido, como se fosse a etapa necessária para a compreensão. São estas preocupações com o ensino histórica da leitura, na segunda metade do século XX e na primeira década do século XXI que serão estudadas nesta pesquisa. Os objetivos, circunscritos a esta etapa, seriam os de analisar os exercícios de ensino de leitura em manuais da década de 50, do Século XX, destinados ao ensino fundamental; verificar o conceito de leitura que embasa as orientações metodológicas e se os exercícios existentes nos manuais didáticos orientam para a identificação de letras, sílabas, palavras ou frases como atos de leitura, sem vínculos com a compreensão.
Como procedimento metodológico serão utilizados os estudos de Smith (1989; 1999); Bakhtin (1989) e Foucambert (1998) sobre identificação e compreensão, e com o intuito de analisar os manuais, destacando a primeira lição; uma intermediária, e a última, de cada manual.

5. RESULTADOS PRELIMINARES

Um dos objetivos desta pesquisa em andamento é o de analisar textos para leitura organizados em livros didáticos desde a década de 50 do último século até a primeira década do atual. Conhecedores que somos do modo como são organizados os livros atualmente, causa-nos surpresa a ausência de questões sobre a compreensão do texto, o que praticamente elimina a possibilidade do pesquisador verificar se as questões são dirigidas para a identificação, para o reconhecimento ou para a construção de sentidos. Os livros que serão analisados adiante têm estruturas diferentes, mas pouco contemplam em relação aos objetivos desta pesquisa. Se, de um lado, os dados são escassos em relação a essa finalidade, por outro indicam os critérios de seleção de textos e a preocupação com o ensino de categorias de gramática descritiva, nas quatro séries iniciais do ensino fundamental.
De acordo com a metodologia apontada no corpo deste trabalho, analiso três lições de quatro livros: a primeira, uma intermediária, próxima à metade, e a última.
Do livro 1: CARVALHO, Maria Luiza Britto. Brasil Unido. 4o. livro de leitura. São Paulo, Editora do Brasil S.ª, 2a. edição, 1955, 121 p., exemplar no. 000999, 39 lições, serão comentadas a 1a. lição de p. 9 a 12: Teu livro, tua terra, tua gente, teu idioma (autor: Erasmo Braga); a lição intermediária de p. 62 e 63: Querido Papai (autor: Silveira Bueno); e a última, de p. 118 a 121: O Hino Nacional.
Para que o leitor compreenda melhor o universo das lições, transcrevo 31 títulos entre os 40 que compõem todo o livro: Teu livro, tua Terra, tua gente, teu idioma; A Bússola; O Papel; A Imprensa; Gente do Nordeste; A Nossa Pátria; Crenças e Superstições; As Vaquejadas; O Café; O Vento e o Sol; Conselho Proveitoso; Padre Anchieta; Querido Papai; Os Bandeirantes; Higiene e Trabalho; Uma carta de Felicitações; A cidade de Manaus; Palmares; Carta de Agradecimento; O Rio Amazonas; Santos Dumont; Ser mãe; Tiradentes; José Bonifácio; Escravo Coroado; A Generosidade de Caxias; Carta de uma Mãe a seu filho Soldado; O Cidadão e o Governo; Saudação à Bandeira; O Hino Nacional: Hino Nacional Brasileiro. São 31 títulos relacionados aos deveres do cidadão brasileiro, às personalidades históricas e a produtos ou a espaços geográficos do país. As demais lições são fábulas ou poesias de conteúdo moral e patriótico.
A primeira lição – Teu Livro, Tua Terra, Tua Gente, Teu Idioma pode ser caracterizada como mensagem ufano-patriótica dirigida diretamente ao pequeno aprendiz de leitor, aluno da 4a. série. São três as seções após o texto: um vocabulário com seis palavras e seus sinônimos; um subtítulo: Gramática em que, em três curtos parágrafos, são explicados os conceitos de palavra e de palavras homônimas; outro subtítulo: Exercícios com três questões diretas sobre os conceitos comunicados pouco antes. Como fecho, é apresentado um curto texto, suponho complementar, sem título, com três parágrafos sobre as grandes navegações dos portugueses. As noções gramaticais e os exercícios não guardam vínculo algum com os textos apresentados, nem há questões ou orientações para atividades de leitura. A apresentação de palavras e de seus sinônimos, na seção Vocabulário, pode sugerir tentar o encaminhamento do aluno à situação descrita por Smith, a de dar pistas para a identificação individual de sentido da palavra, que, contudo, não se revela como estratégia para a identificação de sentidos ou de construção de sentidos.
A lição intermediária: Querido Papai, inventada por Silveira Bueno, conhecido lingüista paulista, tinha a finalidade de ensinar a formatação de uma carta do tipo familiar, cujos personagens são o filho, estudante em colégio interno, e o pai. Possivelmente, esses livros didáticos eram consumidos muito mais pelos internatos que pelas escolas públicas, porque as preocupações da criança e a linguagem utilizada pelo missivista são típicas da classe média da década de 50, cujo objetivo principal era o de internar os filhos em escolas católicas. Embora o livro tenha sido editado em 1955, a carta, em respeito à autoria de Silveira Bueno, trazia a data de 25 de junho de 1952. Não há, nesta lição, vocabulário. A seção Gramática cuida de substantivos masculinos e femininos e o conceito de substantivo comum de dois gêneros. Na seção Exercícios, há duas questões sobre substantivos e a orientação para a escrita de uma carta que exprima alegria por um presente recebido com um final que renove “os protestos de afeição e reconhecimento e os votos que faz pela sua saúde e prosperidade”. Tal como na lição anterior, não há orientações a respeito do conteúdo da carta-texto. A última lição é a própria letra do Hino Nacional, por isso optei pela lição anterior que discorre sobre o Hino. Trata-se também de um texto ufanista, com cinco curtos parágrafos enaltecendo o Hino e seus compositores, como este: “O hino brasileiro, inspirada e vibrante composição do insigne maestro Francisco Manuel, instila em nossos corações o mais puro e o mais vivo amor ao nosso querido Brasil.” Nada há além do texto exortativo, portanto, nada que permita ao pesquisador inferir sobre a concepção de leitura ou sobre as categorias identificação, reconhecimento e compreensão.
O livro 2: ALVARENGA, Luci. Terra Querida. 2a. Série Primária. São Paulo, Cia Editora Nacional. 1956, 205 p. exemplar no. 31373, 55a. edição, traz 45 lições. Foram selecionadas para análise, conforme critérios previamente estabelecidos, a lição 1 (p. 9 a 13) Sou seu amigo; a lição 23 (p.86 a 88) Domingo, de Olavo Bilac; e a lição 45 (164 a 165) Terra Querida. Após essa lição existem os chamados, pela autora, Pontos de Geometria, Geografia, História, Ciências Naturais e Higiene.
O texto tem as características de um depoimento com a finalidade de apresentação do autor-personagem do livro didático.

Quem sou eu?
Este é o meu retrato.
Está bem parecido. Tenho olhos pretos e cabelos castanhos.
Chamo-me Luís Fernando.
Quer ser meu amigo? Eu gosto de todos os meninos.
Tenho sete anos e Mamãe diz que sou bem crescido. Vou fazer oito em junho.
Em casa, chamam-me só Luís.
Tenho dois irmãos: o mais velho é o Augusto e o outro se chama Gil.
Vitória é minha irmãzinha. É a caçula da família e o encanto de nossa casa.
Papai e Mamãe gostam de todos os filhos e nós também os amamos muito.
Não há nada melhor que papai, mamãe, os maninhos e a nossa casa.

São períodos curtos, distribuídos em 11 parágrafos, dos quais 7 são constituídos por um período, e 4 por 2 períodos. A concepção de leitura não é explicitada pela autora. Os exercícios e demais informações são organizados em dois blocos. No primeiro há 7 exercícios com propostas de escrita, mas não de leitura, e 1 exigindo resposta de natureza pessoal, sem vínculo com o texto. Apenas 2 questões referem-se à leitura do texto: 1. Quantos anos tem Luís? 2. É da sua idade? A 1a. questão objetiva a identificação de um dado, necessário para a formulação da 2a. Embora haja vínculo entre as idades do autor-personagem e do leitor, a questão não exige processo intelectual de construção de sentidos porque tem por intenção apenas identificar o dado em um texto destituído de elementos coesivos. A 2a. questão tenta estabelecer o vínculo entre leitor e texto, sem no entanto, preocupar-se com a atribuição de sentidos com base em conhecimentos prévios.
No segundo bloco, a autora apresenta o alfabeto, com 23 letras, categorizando-as como vogais e consoantes. São três as questões que, objetivando orientar o leitor, destacam a identificação das letras: 1. Risque as vogais de BRASIL; 2. Qual letra aparece depois do R? (no alfabeto) É uma vogal ou uma consoante?; 3. Que letras há aí (três figuras com forma semelhante a letras)? Os demais exercícios referem-se à escrita (Ditado) e à pronúncia (rimas). A 1a e a 2a lidam com o reconhecimento de categorias (vogais ou consoantes) identificadas e apontadas pela autora. A 3a. busca o reconhecimento da categoria (nome da letra) vinculada às características visuais.
Nesta lição, as questões pós-texto não se preocupam com a compreensão porque tem o texto apenas como ponto de partida para veicular informações de natureza gramatical ou para treinar ortografia de palavras, em sua maioria não presentes no texto. As questões que podem aproximar-se de indicativos para leitura (entendida como atribuição de sentidos), são, creio, exercícios de identificação, o que corresponde à hipótese de que a identificação e o reconhecimento de signos verbais isolados ou em seqüência são tomados como atos de leitura e, portanto, como estratégia para construir o leitor. A lição 23, intermediária, é um poema de Bilac – Domingo – que descreve, em seis estrofes, com quatro versos, o silêncio dos instrumentos de trabalho e das escolas sem crianças, mas, em contrapartida, conta sobre as ruas alegres com as pessoas dirigindo-se à Igreja atendendo ao repicar dos sinos.
Não há exercícios orientadores para a leitura do poema. São quatro recomendações apenas, todas com a intenção de informar categorias gramaticais; exercitar escritas com ditado; preencher lacunas e redigir frases tendo como referência o texto poético apresentado. Não há nenhuma sugestão que indique preocupações com a leitura do poema. Todos os exercícios remetem ao trabalho com a escrita, mas com a leitura. A última lição (45), Terra Querida merece transcrição, pelo exagero:

Este Brasil imenso, que vai do Amazonas ao Rio Grande do Sul, é a nossa “Terra Querida”.
Mais de 52.000.000 de brasileiros nela vivem, livres e felizes.
Pensam que sou muito pequeno ainda para trabalhar nela, pois Mamãe e D. Maria me disseram que todas as crianças podem fazer isto.
Estão admirados? Sim, senhores: estudando.
O estudo é o nosso trabalho, o nosso dever. Mais tarde, seremos homens e mulheres que trabalharão para o seu progresso.
Como podemos mostrar que somos e queremos ser bons brasileiros?
Papai, outro dia, falava ao Augusto:
- Você será digno desta terra abençoada, estudando, trabalhando por ela; honrando a memória de seus grandes homens; respeitando seus símbolos e as outras pátrias, como quer que respeitem a nossa; estudando sua formosa língua; procurando manter suas tradições; contribuindo para a “Ordem e Progresso”.

O texto pode ser caracterizado como um chamamento patriótico, destituído de elementos textuais coesivos que lhe possam dar coerência. Os exercícios pós-textos são direcionados para ditados de frases vinculadas ao texto e identificação de vogais, consoantes, sílabas, acentos, categorias gramaticais, sinonímia, graus, número, pessoa e tempos verbais. Não há indicações para compreensão do texto, portanto, nada que pudesse encontrar-se com o que se considerasse como tentativa de ensinar leitura.
O terceiro e quarto volumes dos livros analisados são da década de 60. O terceiro é de autoria de Manoel Bergstrom Lourenço Filho. Trata-se de Aventuras de Pedrinho, 3o. livro, série graduada Edições Melhoramentos, São Paulo, 7a. edição, 1961, com ilustrações de Oswaldo Storni. O quarto é de autoria de Theobaldo Miranda Santos destinado à primeira série primária, editado pela Companhia Editoria Nacional, São Paulo, 32a. edição, 1960, exemplar n. 26384.
Para entrar em circulação, Aventuras de Pedrinho recebeu parecer de uma Comissão Especial de Leitura, no Rio de Janeiro, assinado por Theobaldo Miranda Santos, conhecido autor de manuais para a educação básica quanto para normalistas, e por Ismael Lima Coutinho, destacado estudiosos da literatura na primeira metade do século XX. A data do parecer – 1955 – possivelmente indica o ano de seu lançamento no mercado editorial brasileiro. A manifestação, registrada na segunda capa, poderia ter a finalidade de dar credibilidade ao manual, por ter sido analisada por figuras de prestígio e funcionar como estratégia de marketing. Assim estava redigido o parecer:

Parecer no. 519/55. Comissão Especial de Leitura. Processo no. 9.991/55.
Aventuras de Pedrinho destina-se à aprendizagem de leitura na 3ª. Série do curso primário. Trata-se de um livro de classe, vivo e interessante, em que a prática de leitura se acha associada, de maneira harmoniosa, no estudo dos conhecimentos gerais. Escrito por eminente professor de psicologia educacional, a referida obra recomenda-se por sua segura orientação pedagógica, devendo, por isso, ser aprovada e seu uso autorizado nas escolas primárias do país. Quanto ao preço do livro, sou de parecer que está dentro dos limites normais das obras didáticas do mesmo nível de ensino. Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1955. a) Theobaldo Miranda Santos. b) Ismael de Lima Coutinho.

Superficial e generosa nos adjetivos, a manifestação mais procura agradar ao autor e alavancar as vendas da editora, do que propriamente emitir análise específica sobre o manual, organizado em quatro partes para contar as aventuras de um garoto, Pedrinho, desde o sítio onde morava até um giro aéreo pelo país. Vinculado ao espírito dos anos 50 e 60, a intenção era a de enaltecer a pátria como faziam outros manuais, com poesias, biografias e comentários ufanistas. Neste caso, Lourenço Filho opta por colocar um personagem, no estilo de narrativas, convivendo com outros personagens que variavam conforme o lugar em que se passavam as ações, desde o matuto do sítio ao piloto de avião. Utiliza, ainda, poesias sobre os temas das aventuras. Ao ter a intenção de divulgar o país utilizou um esquema de narrativas, em que cada lição era uma aventura, com o personagem principal deslocando-se por lugares representativos da fauna, da cultura, da economia e sobretudo da natureza brasileiras. O intuito era ensinar Português, História, Ciências e Geografia. Os títulos e número de lições por partes, estão assim distribuídos:

Parte I. Aventura na Floresta. A Floresta (poesia). 1. Haverá onças. 2 Chico Tião. 3. O acampamento. 4. Primeira entrada na mata. 5. A clareira dos serelepes. 6. O feijão de tropeiro. 7. Compadre pra lá e compadre pra cá. 87. Parecenças e diferenças. 9. Animais roedores. 10. Variedade de bichos. 11. Animais “com duas vidas”. 12. Visita ao acampamento. 13. O mundo maravilhoso dos insetos. 14. A coleção de folhas. 15. A raiz (poesia). 16. Perdidos na mata. 17. Usando da inteligência. 18. O instrumento mágico. 19. A Grota Funda. 20. A região de enormes florestas. 21. Jantar ao pé do fogo. 22. Pau-Brasil (poesia) (L. FILHO, 1961, p. 3).

Há, de certo modo, semelhanças com a produção literária de Lobato (1882-1948), uma vez que Pedrinho é o nome do personagem, que mora em um sítio e participa de aventuras múltiplas pelas quais o autor insere os conhecimentos que julga importantes para a formação cultural das crianças e adolescentes.
A metodologia anunciada no início deste trabalho objetivava analisar a lição primeira, a última e uma intermediária de cada manual. Neste caso, porém, a sua organização obriga o pesquisador a rever os procedimentos. Serão comentadas as primeiras lições numeradas, porque a Parte sempre é introduzida por uma poesia, e as partes I, II e IV, também são concluídas por esse gênero.
A primeira lição – Haverá onças – conta os preparativos para uma excursão à floresta próxima ao sítio. No final do texto ilustrado por uma onça em um galho, o autor apenas orienta professores e alunos para a compreensão e não coloca nenhum espaço para escrever repostas - prática que aconteceria na década de 70 -, nem questões ou ensinamentos de natureza gramatical. São duas as orientações:

Aventuras. Você gostará de ler este livro, porque ele conta histórias acontecidas com meninos e meninas de sua idade. Muitas passagens dessas histórias foram inesperadas, ou verdadeiramente arriscadas. A acontecimentos dessa espécie é que se dá o nome de aventuras. Aventurar-se significa enfrentar a boa e a má sorte, expor-se a incertezas (L. FILHO, 1961, p.3).

A esta nota explicativa sobre a organização do manual, segue uma outra sobre o conceito do que é ler e questões provocativas para o debate. Trata-se de uma conduta adequada para a época, embora as perguntas ainda sejam as que remetem para o que aqui chamamos como de identificação, confundida como compreensão.
Ler e entender. Lemos para entender o que está escrito. Ler sem compreender de nada vale.Acostume-se a pensar sobre cada frase, que leia. Para mostrar sobre o trecho que você acabou de ler, responda a estas perguntas: 1. Quem é Pedrinho. 2. Por que ele estava muito contente? 3. Como se chama o pai dele? 4. Como se chama sua mãe? 5. Como se chamam seus irmãos? 6. Quem irá acompanhar Pedrinho na excursão pela mata? 7. Que perguntou D. Clara? 8. Que respondeu o menino? (L. FILHO, 1961, p. 8)

Ao responder às questões, sem debates, os meninos e as meninas preocupar-se-iam apenas em identificar as poucas palavras necessárias, principalmente os nomes dos personagens, embora a intenção seria a de destacar os aspectos naturais da terra brasileira. O conceito de ler, por outro lado, é dúbio: afirma que ler é entender, mas em seguida atribui, ao ato de ler, duas etapas: a primeira, a de ler, e a segunda, a de compreender.

Parte II. O Tesouro Escondido. Sonho de prata e de ouro (poesia). 1. A carta misteriosa.2. Quem era Borba Gato. 3. O caso começa a complicar-se. 4. O estranho mapa. 5. Que seria árvore-jéqui? 6. Procurando o tesouro. 7. Solo, subsolo e rochas duras. 8. Então, há micróbios na terra? 9. Veios da terra e lençóis d’ água. 10. Os três reinos da natureza. 11. Cavando noutro lugar. 12. O arado. 13. Enfim, o tesouro. 14. O que estava dentro da caixa. 15. Minas Gerais. 16. Belo Horizonte. 17. Mato Grosso e Goiás. 18. O valor do tesouro. 19. Bandeirantes (poesia). ( L. FILHO, 1961, p. 3)


A primeira lição – A carta misteriosa –, ilustrada por um envelope subscrito e por um carteiro a cavalo, contava a respeito de uma carta que anunciava um tesouro enterrado. A estrutura da lição seguia o padrão do manual: questionário, orientações sobre o gênero carta e exercício. As questões, quase todas, remetiam para a identificação: Quem era o sr. Damião? Outras, porém, provocavam a construção de sentido, porque destacava a trama da narrativa: Esse fazendeiro acreditava na historia do tesouro? As explicações sobre o gênero destacavam que a carta é como que uma conversa que se faz por escrito.(L. FILHO, p. 52) A recomendação era, por último, para a escrita de uma carta a um amigo, utilizando o pronome você.

Parte III. A viagem inesperada. Minha Terra (poesia). 1. O começo da terceira aventura. 2. Em caminho para o Rio. 3. A cidade Maravilhosa. 4. A fundação da cidade do Rio. 5. A Praça da República. 6. Niterói. 7. O “Fortuna”. 8. A bordo do “Fortuna”. 9. Segredos da Navegação. 10. A Terra é redonda. 11. A Terra tem movimentos. 12. O porto de Santos. 13. São Paulo. 14. Os colonos (poesia). 15. O Monumento da Independência. 16. No reino da imaginação. 17. O Paraná. 18. Curitiba. 19. Pinheiros (poesia). 20. Florianópolis. 21. Santa Catarina. 22. Entrando na Lagoa dos Patos. 23. O Rio Grande do Sul., 24. Porto Alegre. (L. FILHO, 1961, p. 4)

Uma charrete, puxada com cavalo negro, por uma estrada lamacenta, sob um céu escuro com nuvens, ilustrava a primeira lição desta parte que anunciava um giro pelo sudeste e pelo sul do país, por trem e por barco. São três os itens pós-texto: o primeiro explica o que é uma companhia de negócios; o segundo cuida do questionário e o terceiro recomenda construção de frases com substantivos retirados do texto. As questões remetem-se ora para a identificação - em que estação do ano se passou a história desta lição; ora para a compreensão - Como se deu a viagem? (L. FILHO, 1961, p. 92).

Parte IV. A aventura nas nuvens. Canto de Minha Terra (poesia). 1. Nas nuvens? 2. A composição de Pedrinho. 3. No avião. 4. Espírito Santo. 5. Você já foi à Bahia? 6.Salvador. 7. Coqueirais do Sergipe.8. Voando sobre o Nordeste. 9. A terra das Alagoas. 10. Pernambuco e os holandeses.11. O Recife, cidade das pontes. 12. Paraíba, capital João Pessoa. 13. O Estado das Salinas. 14. A terra dos verdes mares. 15. Fortaleza, cajuais e carnaubais. 16. Piauí, Capital Teresina. 17. São Luís do Maranhão. 18. Nossa Terra (poesia) (L. FILHO, 1961, p. 4).

Acompanhando um executivo de uma Companhia que mantinha negócios com o pai, Pedrinho viaja de avião por todo o litoral, desde Espírito Santo ao Maranhão. Na primeira lição, o destaque é para as razões que levaram Pedrinho a viajar de avião, seguidas de uma composição – nome dado às redações – em que contava as experiências realizadas pelos brasileiros com aparelhos aéreos, sempre anunciados como heróis e exemplos de cidadãos. A composição fora uma tarefa que o pai lhe dera: Desejo que redija uma composição muito bem feitinha, bem escrita e com boa letra! Os verbos devem concordar com o sujeito. Os adjetivos devem concordar com os substantivos. E, tudo, com boa pontuação!. Olhe lá!... (L. FILHO, 1961, p. 139)
Embora Lourenço Filho tivesse encontrado uma fórmula eficiente de vendas, porque colocava o país todo em seu manual, por meio de narrativas, também se utilizava de estratégias para ensinar regras da gramática, como aquelas recomendadas “pelo pai”, como um modo de “pagar” a viagem de ócio. Não há, nesta lição, recomendações sobre a utilização da leitura. Era uma lição para ser apenas lida.
Aventuras de Pedrinho trouxe inovações na apresentação dos manuais, especialmente porque elegeu um personagem que daria o liame para todas as tramas necessárias para desenvolver o espírito patriótico, tão presente no período pós-ditadura getulista. Inovou ainda ao afirmar que ler é compreender, na primeira lição, e ao sugerir perguntas provocativas para a compreensão. Analisada essa estrutura, a distancia, com o instrumental teórico exposto no início deste relatório, é possível, entretanto, entender que a formulação das questões obedecia ao principio da identificação como ato de leitura, principalmente identificação de nomes de personagens ou de locais. Vez ou outra, a orientação se dava para a atribuição de sentido à trama, por mais singela que fosse. Trata-se, portanto, de entendimentos históricos e consagrados sobre o que seria ler, o que seria compreender e qual seria a metodologia do ensino da leitura.
Destinado para a primeira série, o manual de Theobaldo Miranda Santos. Linguagem. 1ª. série primária. Companhia Editora Nacional. São Paulo. 1960. 32ª. edição. exemplar número 26384, é organizado fundamentalmente sobre orientações gramaticais. Serão apontadas a primeira lição e a última, e uma intermediária.
São 22 lições:

1.Alfabeto. 2. Vogais e consoantes.3. Substantivos próprios e comuns. 4. Emprego das maiúsculas. 5. Acento agudo. 6. Acento circunflexo. 7. Cedilha. 8. Ponto de interrogação. 9. Ponto de exclamação. 10. Ponto final. 11. Vírgula. 12. Ponto e virgula. 13. Til. 14. Sílaba. 15. Separação de sílabas. 16. Encontros vocálicos. 17. Encontros consonantais. 18. Gênero dos substantivos. 19. Número dos substantivos. 20. Graus dos substantivos. 21. Sinônimos. 22. Antônimos. (SANTOS, 1960, p. 5).

A primeira lição – Alfabeto - é subdivida em 4 partes: A . Gramática; B. Exercícios; C. Redação; D. Leitura silenciosa. Esta última, objeto desta investigação, estava organizada em duas sub-partes:

1. Leia e complete, abaixo:
Minha casa tem três quartos, uma sala, uma cozinha e
um banheiro. Na frente, há um jardim. Nos fundos,
está o quintal.

Minha casa tem.........
Na frente há um........
Nos fundos está o ....
(SANTOS, 1960, p. 10-11)

Os três períodos descrevem uma casa, de alguma pessoa, não referenciada anteriormente. As questões postas exemplificam com toda a clareza a concepção de que o ensino do ato de ler confunde-se com o ensino da identificação e reconhecimento de palavras. A sinalidade, no entendimento de Bakhtin, confunde-se com a construção da leitura como compreensão. As palavras, completamente sacadas de seu movimento social, se prestam a exercícios de pronúncia e de reconhecimento e são, por essa razão, destituídas de sua polissemia e significação. São meramente sinais destinados ao reconhecimento e à identificação.
A segunda sub-parte tinha este enunciado: “1.Desenhe o que está faltando nestes animais. Depois escreva o seu nome.” Estavam desenhados um cavalo sem uma pata, um elefante sem a tromba e um urso sem uma orelha. Não se trata de leitura silenciosa, mas de observação silenciosa de desenhos que desembocaria em atividade de etiquetagem escrita de um objeto.
A lição intermediária – Vírgula – também subdividida como a anterior, em 4 sub-partes, traz também no último item a referência a Leitura silenciosa, assim registrada:

1. Leia e, depois, complete as frases da página seguinte:

Alguns animais têm ossos, como o cão. Outros não tem ossos, como o mosquito. Outros têm penas, como a galinha, ou lã como o carneiro. O peixe tem escamas, mas o sapo tem a pele lisa.
O ..........tem ossos.
O ..........não tem osso.
O ..........tem penas.
O.... ......tem lã.
O ..........tem escamas.
O ..........tem a pele lisa.

2. Escreva os nomes destes animais; depois, marque, com uma cruz, o que pode servir de alimento. (seguem-se desenhos de um cachorro, um gato e um coelho). (SANTOS, 1960, p. 56-57)

Na primeira recomendação, novamente o procedimento de ensinar a ler é o de identificar e reconhecer uma palavra apenas. A segunda recomendação não é de leitura, novamente, mas a de reconhecimento de figuras e a escrita de seu nome. Saber escrever é também saber etiquetar com uma palavra um ser qualquer.
A mesma estrutura é repetida na última lição – Antônimos.

D) Leitura silenciosa.
1. Leia e, depois, complete, abaixo:
O homem usou, primeiro, a fogueira; depois, a lâmpada de azeite e a vela. Mais tarde, utilizou o lampião de querosene e o gás de iluminação. Finalmente, surgiu a luz elétrica.
O homem, primeiro, usou a ....; depois, a ........ e a ........ Mais tarde, utilizou o ........ e o .......... Finalmente surgiu a ...............
2. Olhe para os desenhos e responda às perguntas: (um bebê dormindo e uma menina lendo). Que faz o bebê ........ E a menina?............... (SANTOS, 1960, p. 110-111)

O texto mais longo, com suas características estruturais e função social claramente definidas, estão na última página, como propaganda, destacada do corpo do livro. Embora dirigido aos alunos – Cidadãos de Amanhã - tem, pela sua natureza, a intenção de criticar a economia brasileira no momento e a de fazer propaganda de instituições financeiras. Interessante é anotar que quando os editores não imaginam ensinar leitura, estão efetivamente colocando a criança na relação com textos reais, criados nas relações sociais, comas características de Comunicado.

6.CONCLUSÕES

Não há, explicitamente, formulações ou orientações para os alunos e professores em relação ao aprender e ao ensinar a ler, exceto em filho. É possível entender que o ensino da língua destinava-se prioritariamente às noções de gramática descritiva e à escrita de palavras, pelo ditar, ou de construção de textos como uma carta familiar e, deste modo, ler não seria uma atividade a ser comentada ou orientada, porque seria apenas o ato de sonorizar as palavras, portanto, o de praticar o que Bakhtin denunciava como o exercício da pura sinalidade, como se os alunos pudessem construir sentidos com base na identificação sonora das palavras.
Os textos revelam preocupação com a exaltação patriótica em que são destacados feitos de personalidades do Império e do começo da República, porque apenas 60 separavam a edição dos livros dos eventos históricos do final do Império e do início do período republicano. Historicamente, os primeiros anos da década de 50 ficaram marcados como a época da tentativa de consolidação da democracia brasileira, após o fim do Estado Novo e de grandes movimentos patrióticos e ufanistas, ora estimulados pelos getulistas, ora pelos integralistas. Os livros didáticos, nessa perspectiva, selecionam ou criam textos impregnados de ideologia nacionalista exacerbada, mas descuidam das orientações, para o docente e para o aluno, sobre o ensinar e sobre o aprender a ler. Deste modo, embora as categorias comentadas no corpo teórico deste artigo pouco puderam ser aplicadas, é possível inferir, pela própria ausência de dados, que não havia, nesse momento da educação brasileira, preocupações didáticas com o ensino e com a aprendizagem da leitura, nas quatro séries iniciais da escolaridade formal. Lourenço Filho, entretanto, inovou na organização de seu livro por estruturar uma longa narrativa, embora patriótica, em trechos curtos, seqüenciais, com sugestão de perguntas dirigidas aos alunos e ao professor para a discussão sobre o texto. As questões indicadas pelo autor seriam ensaios das que seriam utilizadas na década posterior, caracterizadas, em alguns momentos por tentativas de compreensão, mas, predominantemente de natureza de identificação e reconhecimento.

REFERÊNCIAS

ALVARENGA, Luci. Terra Querida. 2a. Série Primária. São Paulo, Cia Editora Nacional. 1956, 205 p. exemplar no. 31373, 55a. edição

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo : Hucitec, 1988.

CARVALHO, Maria Luiza Britto. Brasil Unido. 4o. livro de leitura. São Paulo, Editora do Brasil S.ª, 2a. edição, 1955, 121 p., exemplar no. 000999

FOUCAMBERT, J. A leitura em questão. Porto Alegre : Artes Médicas, 1994.

______. A criança, o professor e a leitura. Porto Alegre : Artes Médicas, 1998.

LOURENÇO FILHO, M. B. . Aventuras de Pedrinho. 3o. livro. Série graduada. Ilustrações de Oswaldo Storni. São Paulo : Melhoramentos, 7a. ed. 1961.

SANTOS, T. M. Linguagem. 1a. série primária. Companhia Editora Nacional: São Paulo, 32a ed. Exemplar no. 26384, 1960.

SMITH, F. Compreendendo a leitura: uma análise psicolingüística do ato de ler. Trad. de Daise Batista. Porto Alegre : Artes Médicas, 1989.

SMITH, F. Leitura significativa, Porto Alegre : Artes Médicas Sul, 1999.

 
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