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  CRIANDO CORPOS: A MULHER NA LITERATURA MÉDICA DO SÉCULO XIX  

Renato Beluche. Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar.

Foi a partir do século XVIII que a medicina iniciou o movimento da criação de sexos distintos e incomensuráveis. Até então o que se tinha era uma diferença expressa em gênero onde isoformismos e metáforas marcavam as diferenças sutis entre os órgãos e processos que refletiam uma ordem transcendental de perfeição. Esse movimento fica evidente, como demonstrou Laqueur (2001), ao analisar as ilustrações anatômicas anteriores ao século XVIII. Nessas ilustrações percebemos claramente a semelhança de órgãos como o clitóris e o pênis ou mesmo o útero retratado como um grande pênis interno. É importante percebermos que não foi nenhuma descoberta que originou esse modelo de dois sexos diferentes. A natureza dessa diferença foi construída culturalmente. Desse modo a diferença incomensurável da mulher em relação ao homem em bases biologizantes foi fruto das novas relações políticas e societárias do final do século XVIII e início do XIX. O autor desenvolve ao menos duas explicações fundamentais para a construção do modelo de dois sexos. A primeira é epistemológica, por um lado o fato passa a ser mais distinguido da ficção, o possível do impossível e o corpo do espírito, por outro lado há a redução da natureza ao simples horizontal e imóvel do fato físico: o sexo. A segunda é política, no contexto das idéias iliministas ocorrem lutas pelo poder e posição na esfera pública (entre homens e mulheres, “feministas” e “anti-feministas”) onde “por várias razões a ordem transcendental preexistente ou os costumes imemoriais tornaram-se cada vez menos justificativa plausível para as relações sociais, o campo de batalha mudou para a natureza, para o sexo biológico. A anatomia distinta era citada para apoiar ou negar todas as formas de reivindicações em uma variedade de contextos sociais, econômicos políticos, culturais ou eróticos” (LAQUEUR, 2001, p.190-192).

Feitas essas observações iniciais gostaríamos de analisar como se operou a construção dessa nova figura (a mulher) na literatura médica do século XIX no Brasil. Para logo em seguida discutirmos algumas considerações atuais a respeito do “sujeito mulher”.

A mulher na literatura médica do século XIX

Mil oitocentos e oito não trouxe só a Família Real portuguesa para sua colônia no Brasil. Trouxe, também, uma quantidade variada de novidades: novos costumes, novas formas de organização, técnicas de produção. Além de todas essas novidades, a Família Real “transplantou” para a Terra Brasilis parte de suas instituições. Em especial as instituições médicas, como a Fisicatura. Em verdade não trouxe a Fisicatura de Portugal e aqui a implantou, mas refundou uma instituição que funcionou em Portugal desde o século XVI, sendo extinta em 1782 por D. Maria que a substituiu pela Real Junta do Protomedicato (com as mesmas funções da Fisicatura). Assim, no Brasil, a 07 de fevereiro de 1808, foi recriada a Fisicatura e extinta a Junta do Protomedicato (cf. PIMENTA, 1997).

Todo o período colonial foi fortemente marcado pela iniciativa privada dos colonos. Assim, desde o início do processo colonizador o controle estatal, burocrático e administrativo foi subordinado ao poder privado. Fenômeno este que podemos perceber em um tipo específico da constituição familiar colonial: a família patriarcal e o seu poder centrado na figura do senhor patriarcal, muitas vezes superior a de qualquer instituição ou autoridade da colônia. Exceção, talvez, só nas minas, onde a presença administrativa do Estado português tornou-se mais forte(SOUZA, 1990, p.91-99) . Portanto, com a chegada da Corte fez-se necessário uma série de mudanças na colônia e, principalmente, na capital, Rio de Janeiro. Essas mudanças vão desde o próprio espaço físico, passando pelos costumes até a organização político-administrativa (COSTA, 1999, p.104 et seq.; NEVES; MACHADO, 1999, p. 40-41). Com a chegada de D. João as esferas tradicionais de poder, como a posse de terras, foram complexificadas por outras mais “civilizadas” como o desenvolvimento de uma maior sociabilidade, o receber em casa, o comportar, o vestir etc. Criando a necessidade de novos rituais e valorização. Desse modo, a metrópole que, por anos, deixara a colônia abandonada ao poder privado, retoma o seu interesse de Estado e reivindica para si o controle das cidades. (COSTA, 1999, p.19-20) Isso deveria ser feito de modo rápido, visto que a Corte já aqui se encontrava; assim, nas palavras de Lygurgo Santos Filho (1947, p. 200): “A pressa era a regra e urgia transformar uma colônia em reino”.

A falta de médicos na colônia era tão grande que “Em algumas Provincias do Império [...] não existe hum facultativo, que mereça este nome” (BRASIL, 1834, p.16). Esse era um sério problema não só para a comitiva portuguesa, que aqui desembarcou, mas também para as pretensões de um monarca nos trópicos, ou seja, não permitir a proliferação de epidemias e produzir um melhor conhecimento do local. Um exemplo dessa maior preocupação é o estudo de Manuel Vieira da Silva: Reflexões Sobre Alguns dos Meios Propostos por Mais Conducentes para Melhorar o Clima da Cidade do Rio de Janeiro, feito por ordem do príncipe regente para avaliar o clima e o relevo da cidade do Rio de Janeiro:

As molestias que tem grassado no Rio de Janeiro, e que tem sido tão funestas a muitos dos seus habitantes, merecerão o paternal cuidado de S. A. R. o Principe Regente N. S. para mandar indagar, quaes fossem as causas próximas, ou remotas das doenças deste paiz. (SILVA, 1808, p.3).

A vontade de saber do príncipe regente não se restringe apenas ao relevo e às doenças, mas também à direção do enquadramento social da população e no cumprimento da lei:

Os nossos soberanos amantes sempre de promover, quanto lhes fosse possível, a felicidade dos seus vassallos, tinhão promulgado na capital, e em todo o reino as mais providentes lei a este respeito; mas a distancia immensa entre a sede do throno portuguez, e os seus vassallos do Brazil, impossibilitárão até agora a execução da sua vontade; chegou com tudo a feliz epocha, que os faz sahir da desgraça, que os rodiava e entrar na historia das nações policiadas. (SILVA, 1808, p.5).

Percebemos assim que à vontade de saber que impulsiona os médicos, muitas vezes amparados ou incentivados pelo poder estatal, transformara-os em verdadeiros cientistas sociais “Não sei mais quem procurou em Montesquieu e em Auguste Conmte as grandes etapas do pensamento sociológico. Isto é ignorância. O saber sociológico se constitui em práticas como a dos médico”. (FOUCAULT, 2000c, p.210). Levando em consideração a falta de médicos e essa vontade de saber, D. João funda, em 1808, as Escolas de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Estava criada a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro que se localizava no Hospital Real Militar no Morro do Castelo, antigo colégio dos jesuítas. Em 1812, foi criado no Hospital Militar a Junta de Direção Médico-Cirúrgica do Hospital Militar, que tinha como objetivo zelar pela Escola de Medicina. No ano de 1813, foi criada por decreto a Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro que funcionou nas salas do Hospital da Misericórdia até a sua extinção em 1832 com a criação da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (COLLECÇÃO..., 1906, p.73).

No decorrer dos séculos XVIII e XIX a Europa Ocidental passou por diversas mudanças. Inaugura-se uma nova era em busca de um mundo mais organizado, disciplinado, em uma palavra, civilizado (CRESPO, 1990; FOUCAULT, 2001c). Esse processo civilizador teve como paradigma a higiene pública. Em verdade higiene pública e processo civilizador fazem parte de um mesmo processo de mudanças nas sociedades ocidentais. (FERREIRA, 1996, p.68-69, 93-94).

A chegada da família real portuguesa marca o início desse processo higiênico-civilizador no Brasil. Processo batizado por Gilberto Freyre (2002, p. 167) de reeuropeização, “que tão ostensivamente alterou formas e cores, na paisagem urbana, suburbana e até do litoral do Brasil, durante a primeira metade do século XIX”. Com a corte portuguesa e a maior diversidade de tipos sociais que aqui passam a atuar, como literatos, políticos, nobres e artistas, os focos de poder multiplicaram-se não estando mais os senhores de terra como senhores absolutos. Os mecanismos de valorização tradicionais de poder, como terras, escravos e brancura de pele, não seriam mais suficientes e passaram a exigir uma maior ritualização social, ou seja, uma nova sociabilidade cada vez mais elaborada e refinada, em uma palavra, civilizada (COSTA, 1999, p.104 et seq.; NEVES ; MACHADO, 1999, p.40-41).

Os higienistas, ou os “médicos do corpo Social”, como eles mesmo se intitulavam, tiveram um papel decisivo na elaboração desses novos códigos de postura e conduta social ao tematizarem sobre os mais variados temas, como vestuário homem, mulher, comida, clima, topografia, urbanização, educação, entre outros. O problema era que durante o período da Fisicatura (1808-1828) o que ocorria eram “práticas médicas heterogêneas”, sem um “projeto coerente” que atestasse, de certa forma, os limites da organização médica (MACHADO, 1978, p.176-170).

É de suma importância, nesse momento, desenvolver uma análise da relação entre a medicina social e o Estado. O poder das famílias patriarcais foi um constante empecilho a consolidação do Estado. A família patriarcal não formava cidadãos, mas parentes voltados exclusivamente para a defesa do seu grupo. Assim sendo o apelo nacional não encontrava respaldo dentro do grupo familiar, ou seja, a idéia de nação era estranha a sensibilidade da família. Desse modo o Estado, primeiramente o português (até 1822) e posteriormente o brasileiro, vai encontrar no discurso higiênico um importante aliado.

A família patriarcal não representava só um empecilho à realização do Estado, mas também a própria prática médica. Devido a ausência de médicos e a uma certa preferência cultural a família patriarcal recorreu não só aos “terapeutas populares”, mas principalmente a práticas de “medicina caseira”. Desse modo para a medicina penetrar na esfera familiar, desenvolveu táticas de rearranjamento da estrutura familiar. Mas ao mesmo tempo não poderia ir de encontro com uma estrutura tão sólida e poderosa como era a família patriarcal. Sua tática foi, portanto, se colocar como aliada da família.

A mulher, dentro da tática médica, foi um objeto privilegiado. Elemento subalterno e periférico dentro da organização social e familiar, teve seu status elevado pela medicina. Retirando-a de sua “alcova escura” e dando a ela um papel de destaque dentro da organização familiar, uma importância menos enquanto mulher e mais enquanto mãe. Embora sua valorização social tenha se dado mais enquanto mãe, ela também se fez enquanto ser individual como podemos notar com o aumento da vida social da mulher (bailes, festas, teatros) ou com uma maior instrução, mas deve-se ficar claro que essas valorizações estavam eminentemente ligadas ao seu papel de esposa e mãe, pois, o aumento da vida social estava ligado ao fato de que o status do marido passa estar vinculado ao da mulher. Assim uma boa esposa é aquela que sabe conviver com os novos códigos da civilização (receber em casa, se portar nos locais públicos etc) e a sua maior instrução também funciona no mesmo sentido, pois, com ela poderia melhor gerir a família. A mulher passa a ser encarada, pela medicina, não mais como uma reprodutora que gerava membros para a família, mas sim como mãe, que, enquanto tal seria responsável pela educação e moralização dos filhos e de toda a família.

Mãe! Que nome mais sublime, que nome de maior magia! A mãe é essa fonte fecunda e sagrada da vida; a mãe é esse ser vivificante que nos aquece em seu regaço, nos aleita em seu seio, nos recolhe em seus braços e protege nossa infancia com sua inexgotavel ternura; a mãe, enfim é esse ser o mais respeitavel da natureza.

Quanto é nobre e sublime essa missão da mulher! (MEIRELLES, 1847, p. 09-10).

O novo papel de mãe que a mulher passa a receber vai rivalizar, devido à sua maior importância como reguladora da família, com o poder do senhor. Com a elevação de seu status social a estrutura familiar baseada no poder máximo do senhor, começa a se fragmentar, ou seja, o aumento do poder da mulher passa a ser um empecilho a realização do poder máximo do pater famílias. Mais ainda, sua importância dentro da família como reguladora do convívio é, em última instancia, a importância de desenvolver todo um projeto civilizador, ou em outros termos, gerar cidadãos para a sociedade: “Quanto não sois responsaveis, ó mães, perante a natureza e a sociedade [...] lembrae-vos que nosso futuro, costumes, paixões, gostos, prazeres, e até nossa felicidade dependem de vós” (MEIRELLES, 1847, p. 16).

Outra estratégia utilizada pela medicina no combate ao pater famílias foi a desqualificação do velho. O velho que, dentro da tradição patriarcal do Brasil colônia, era considerado sábio e poderoso. A partir de então, a velhice começa não mais a simbolizar o poder do senhor, mas o contrário, passa a ser considerada como “decadencia do homem” (CARRÃO, 1848, p.18). Idade em que, “em geral, as faculdades intellectuaes e Moraes soffrem grande enfraquecimento” (CARRÃO, 1848, p.19). O doutor Sá resume bem essa desqualificação:

[o] velho arrasta o fardo de uma vida sem encantos e sem prazeres, verga ao onus de uma existencia sem gozos, cuja poesia já se desprendeu voando as regiões d’out’ora ; amargura o fel do calix, e vive vida de padeceres e de enojo.

N’estas épocas é o homem estrangeiro á sua espécie, alheio a sua grandeza; fraco, impotente, incapaz de viver para os outros, e se concentra todo em si mesmo, e acha-se deslocado da elevada orbita em que giram seus semelhantes (SÁ , 1845, p.4).

Devemos atentar para o fato de que a tática de diminuição do poder do pater famílias não se dá só por um modo negativo, ao contrário, a medicina, como dissemos, se coloca aliada da família e não simplesmente contra o poder do senhor. Desse modo, o aumento do poder da mulher, a desqualificação do velho e, conseqüentemente, a diminuição do poder do senhor, respondem a uma dupla partilha, ou seja, não se limitam só a aspectos negativos, mas estão contrabalançados por aspectos positivos, pois só assim poderiam ser efetivamente eficazes na reestruturação familiar. Portanto, se por um lado temos uma diminuição do poder do senhor, por outro lado, vão ser colocadas em prática mecanismos outros como a classificação inferior da natureza feminina em relação a masculina. Destaca o doutor Barros: “Toda constituição moral da mulher [...] resulta da fraqueza innata de seus órgãos; tudo he subordinado a este principio pelo qual a natureza quis tornar a mulher inferior ao homem” (BARROS, 1845, p.7) Ou, por outros mecanismos, como o machismo. Com a diminuição do poder absoluto sobre a família, o homem ganha o direito de “concentrar sobre a mulher toda a carga de dominação antes distribuída sobre o grupo familiar e demais dependentes da propriedade” (COSTA, 1999, p.252). O machismo funciona também como regulador dos excessos femininos, pois ao elevar o status da mulher em relação ao homem, a medicina percebe que isso pode resultar em um aumento desregulado da liberdade da mulher, o que poderia, conseqüentemente, levar a uma dissolução da família. Não era esse o interesse da medicina, pois, isso significaria a perda do controle que ela pretendia. O objetivo era desestabilizar não a família em geral, mas a família patriarcal, para produzir a família higienizada e civilizada. Portanto, era necessário libertar a mulher de seu papel subalterno e, ao mesmo tempo, frear os excessos que poderiam advir dessa maior liberdade.

Não he sem algum receio que vamos proseguir a este respeito a exposição de nosso modo de pensar, porque desde já contamos mil inimigas n’essas bellas Sras., amantes da agitação, dos passeios, do divertimentos, &c.: entretanto forçoso he proseguir e affrontar para o bem d’ellas mesmas esses arrafos passageiros. Assim pois, devemos lembrar-lhes que as grandes reuniões, os concertos , os espectaculos em salões fechados e prodigamente illuminados, são huma fonte perenne de males inccalculaveis [...] (BARROS, 1845, p.16).

Feitas essas considerações podemos agora entender melhor a natureza da relação entre o Estado e a Medicina. Ambos, como foi visto, fazem parte de um mesmo processo civilizador, onde a relação principal se define em, por um lado, o Estado aceitar e incentivar o saber que a medicina comporta como único legítimo sobre a doença e a cura e, por outro lado, a medicina, com sua proposta de (re)organização social, se faz útil ao Estado, contribuindo para a sua consolidação. Contudo, é importante ressaltar que essa relação favorável entre a medicina e o Estado só é detectável quando analisadas historicamente, pois, durante o desenrolar do processo houve divergências e críticas mútuas.

A família reestruturada passaria, então, não mais a produzir parentes, mas sim cidadãos, e a pedagogia médica, ao lado dos políticos e literatos, foi eficiente em difundir e divulgar esses novos valores (COSTA , 1999, p.64). Como podemos constatar em três passagens do já referido Dr. Sá que, embora longas, são de grande valia para entendermos o destaque dado pela pedagogia médica na construção do cidadão. Diz o Dr. Sá:

Tal é a miseria humana. E se povos ha que constantemente se esforçam por melhorar os agentes naturaes, e delles colher o maior numero de benefícios, não o somos nós decerto, que raça não de portuguezes do Portugal velho, mas sim do Portugal envelhecido, resumimos todos os vicios, toda a gangrena da civilisação sem contudo gosarmos, quiçá, de suas vantagens mais insignificantes. Não é isso declamação de atrabiliario misanthropo escandalisado da sociedade, mas sim dolorosa convicção de brasileiro dilacerado pela dôr de ver sua patria apodrecendo sem ter tido maturidade. Estudemos como medico e moralista a capital d’esse gigante anemico conhecido entre as nações pelo nome de Brasil, que certificar-nos-hemos da terrivel veracidade de tam triste asserção.

[...]

É pois mister que todo aquelle, em cujo coração se aninha um sentimento d’amor pela causa sagrada da patria, se esforce quanto em si couber para tornar o povo verdadeiramente livre e independente, dando-lhe virtudes, illustração e nacionalidade. Illustração e moralidade são as verdadeiras riquezas de que carecemos; são ellas, e sómente ellas, que podem elevar o Brasil ao alto lugar, que o arbitre dos povos lhe ha demarcado entre as nações.

Por fim conclui o Dr.:

[...] na terra de Santa Cruz inda palpitam corações brasileiros que unindo elevarão um brado de maldição, ameaçador, medonho terrivel, que passando as gerações futuras echoará o anathema: maldito pela terra e pelo ceo seja o brasileiro que indifferente ao bem da sua patria, podendo, para elle não concorreu (BARROS, 1845, p.12-13; 22; 34).

Os trechos acima, que parecem mais um manifesto a pátria elaborado por estadistas do que uma tese médica, dão-nos não só indícios da relação entre a medicina e o Estado, mas também a abrangência da pedagogia médica enquanto normatizadora das condutas.

A amamentação é um exemplo característico dessas tendências médicas. Prática incomum às mães da família patriarcal até princípios do século XIX, passa a ser constantemente prescrita pelos médicos oitocentistas como “dever sagrado, imposto pela natureza” (MEIRELLES, 1847, p.11). Esse movimento faz parte da regulação não só feminina, mas de toda família na sociedade. A defesa da emancipação feminina defendida pelos médicos, como vimos nos capítulos precedentes, poderia causar uma desregulação familiar. Assim os excessos da mulher foram combatidos por algumas formas negativas (a inferioridade de sua natureza e inteligência), mas também por métodos positivos, entre eles o seu novo papel de “mãe-amamentadora”, função que desqualifica o homem, pois só a mulher poderia promovê-lo, mas que em contra partida regulava a vida da mulher, freando seus impulsos, pois, para aleitar era preciso abrir mão de grande parte dos excessos da civilização (bailes, festas etc).

Para colocar esse processo em andamento os higienistas começaram a desqualificar o hábito do aleitamento por amas de leite. Em primeiro lugar, pelos maus cuidados das amas, pois, se “despreza seu filho para tratar o de outra, é uma mãe má, e como poderá ser boa ama?”, além do que as amas “encarando esse dever como uma obrigação onerosa, estas só procurarão furtar-se a todos os incommodes que a criança lhes dá, e muitas vezes são as mesmas victimas de mil atrocidades”. Estando portanto sujeitas a vários “perigos e privações” por causa da “insensibilidade, negligencia e imprevidencia das amas” (MEIRELLES, 1847, p.17).

Mais importante que a desqualificação das amas, devido aos seus parcos cuidados, foi a idéia de que através do “leite se transmitem não só as molestias, mas ainda o caracter e o moral”. Agora sim, se fecha o cerco no combate às amas “cheias de mil inclinações odiozas e dada á todos os vícios”, pois através de seu leite corrompido, transmitirá à criança todos os seus vícios e perversões. E a criança por esse método amamentada:

será totalmente pervertido: seu coração, que podia herdar as sublimes virtudes de seus paes, será o antro dos vícios: elle só buscará satisfazer as paixões e inclinações, que no berço lhe forão transmitidas: e então scenas as mais tristes e afflictivas se passarão no centro das familias; em vez d’essa harmonia, d’esse amor filiar e fraterno que faz a felicidade d’ellas, só reinará a discordia” (MEIRELLES, 1847, p.15).

A mulher será responsabilizada por esses possíveis males causados pelas amas, porque “desprezando o innocente fructo de suas entranhas, o entregão desapiedadamente a mãos mercenarias, desconhecendo e calcando aos pés o seu primeiro e mais sagrado dever” (MEIRELLES, 1847, p.? provavelmente 1), pois a mulher que o filho “aparta de seus peitos, que faz calar em seu coração a poderosa voz da natureza, e que despreza enfim esse imperioso dever, não tem direito ao sagrado titulo de mãe, não é a verdadeira mãe” (MEIRELLES, 1847, p.11).

O mais interessante dessa estratégia médica de tornar a mulher em mãe-amamentadora foi a produção do gozo em ser mãe. Se por um lado a mulher sofre o despotismo machista do marido e tem sua liberdade cerceada, por outro lado, “os seus deveres, posto que trabalhosos, não deixão com tudo de ser um manancial de deliciais” Meio século antes de Freud atentar para a voluptuosidade entre mãe e filho,,já dizia o Dr Meirelles:

A natureza, previdente, teve a sabedoria de collocar o prazer, onde o exercicio de uma função é indispensavel á vida, e a dor quando suas leis são desprezadas. A mãe que cria, sente correr com delicia o leite atravez dos canaes que o devem levar á boa de seu filho; como no acto da reproducção ella tem muitas vezes erectismo, voluptuosidade; basta somente que elle lhe estenda os tenros bracinhos para que seus seios se engorgitem, e que o leite seja ejaculado com força (MEIRELLES, 1847, p.10).

Concluímos, portanto, a medicina social do século XIX não foi a libertadora da mulher e da família, mas ao contrário: se lutou pela emancipação da mulher e da organização familiar em relação ao pater famílias, em contra partida, buscou todos os meios para colonizar a mulher e a família com seu saber médico, prescrevendo hábitos e condutas morais. Desse modo poderíamos dizer que implicitamente na criação desse sujeito mulher estava contida toda uma gramática das relações de poder que ao mesmo tempo em que celebrava sua importância social desqualificava seu ser como inferior, ou em outras palavras, classificava-o com uma natureza subumana.

Pensando as resignificações

Se por um lado, como vimos, o “sujeito mulher” foi construído historicamente de forma positiva, mas a partir de um viés que desqualificava onde sua “natureza” era considerada inferior e, por tanto, de certa forma, menos humana. Por outro lado, esses atributos desqualificantes foram (e de certa forma, ainda são, ao menos em parte) resignificados passando a serem utilizados como estratégias de luta e de defesa. Desse modo, poderíamos observar desde uma utilização individual de defesa (talvez um dos meios mais comuns e não menos controversos seja a TPM) até estratégias de luta política como o feminismo que, de modo geral, criticava a “dominação masculina”.

Embora, seja incontestável a importância do discurso feminista na conquista de direitos básicos a cidadania e também na formulação de novas teorias para se pensar a sociedade como um todo, Márcia Aran (2003, p. 399) declara que o movimento feminista “pode ser considerado uma das mais importantes revoluções do século XX”, acreditamos que novas formas de posicionamento crítico emergem no interior dessas reflexões. Atualizando-as a respeito do que seria o feminismo e seu suposto agente político: a mulher.

O movimento feminista, através de uma matriz construtivista, rompe com o padrão essencialista, naturalizante e biologizante do século XIX. Podemos destacar como marco simbólico desse movimento o lançamento de “O Segundo Sexo”, de Beauvoir e a sua célebre frase “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Nessa visão ainda persistem traços biológicos (o sexo: o pênis e a vagina), mas o que se faz com esses “atributos biológicos” é de “natureza” social. O grande mérito desse movimento foi a explicitação das relações de poder por trás das construções culturais de gênero. Nas últimas décadas, um novo paradigma tem sido pensado em relação às análises de gênero: a “Queer Teory” que, de um modo geral, vai problematizar a idéia de identidade. Segundo Richard Miskolci (2005, p.9):

A teoria queer desnaturalizou as identidades e os corpos. Assim, abriu espaço para a constituição de um novo paradigma teórico de compreensão das identidades. Esse novo paradigma só foi possível por romper o binarismo natureza/cultura, ou seja, por refutar uma base biológica neutra (ou natural) sobre a qual construir-se-iam as identidades. Não é possível isolar a natureza nem definir onde começa a cultura. As identidades não são construídas sobre os corpos como se esses tivessem em si algo de anterior ao social. Ao contrário, as identidades se constroem através dos corpos, elas são matéria palpável com limites claramente definidos que geram a impressão de fixidez, constância e permitem, assim, que as convenções identitárias socialmente construídas adquiram “naturalidade”. A constatação de que não apenas as identidades, mas os próprios corpos são construções sociais têm conseqüências que mal começamos a encarar.

Pensando a partir da perspectiva queer, poderíamos dizer que a categoria mulheres, embora importante pela luta política, tem sido problematizada. Primeiro porque a categoria mulher é produzida pelas mesmas estruturas de poder das quais busca-se a emancipação (BUTLER, 2003a, p. 19). Como vimos, não só o gênero, mas também o sexo é construído histórica e socialmente de modo a desqualificar a natureza feminina. Em segundo lugar, a idéia da categoria mulher (ou mulheres) denota uma identidade comum, como diz Butler (2003a, p. 20) “‘se alguém é uma mulher, isso certamente, não é tudo o que esse alguém é’”. O que leva muitas mulheres a não se identificarem com o termo ser mulher.

Feitas estas observações, gostaríamos, por fim, de refletir até que ponto as resignificações dos atributos que produziram o sujeito mulher foram e são utilizados em sua defesa. Poderíamos citar os mais diversos casos como o de mulheres que agrediram seus companheiros (ou não) e alegaram estar em um estado “frágil” devido ao período menstrual. Ou alguns relatos jornalísticos como a publicação da resenha de Sarah Blustain (2005) subeditora da “The American Prospect” e traduzida pelo caderno “Mais” da Folha de São Paulo intitulada “A Paródia do Segundo Sexo”. Nessa resenha a autora parte da idéia de que a libertação do feminismo não aumentou a igualdade entre homens e mulheres, mas ao contrário aumentou as possibilidades da mulher se esgotar duplamente, pois passou a disputar um mesmo espaço (trabalho) além de ter ficado com o encargo dos deveres da maternidade. A critica ao feminismo, ou ao menos a parte dele, é que ao defender a idéia de igualdade em um “mundo laboral estruturalmente masculino” levou o feminismo a semear sua própria irrelevância, pois, como dito acima, isso levou as mulheres a se esgotar duplamente. A autora levanta algumas hipóteses para se repensar o que ela chama de estrutura masculina do trabalho como, por exemplo, buscar criar um ambiente de trabalho diferente sugerindo algumas idéias como macas para descanso das grávidas ou quinze minutos de descanso para as cólicas.

A questão final que propomos é: será que se utilizar de todas essas táticas, que remontam à construção do sujeito mulher (ênfase na questão da maternidade frente ao trabalho ou da maior sensibilidade devido às cólicas menstruais) mesmo de modo a lhe garantir privilégios, não seria enquadrá-las na mesma gramática das relações de poder que construiu a mulher como ser inferior ao homem? Em suma, aceitar os termos do debate da diferença entre homens e mulheres não seria ratificar a construção histórica do sujeito mulher como ser inferior ou de uma natureza sub-humana?

Bibliografia

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