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  PESQUISANDO NA ESCOLA “COM” OS PROFESSORES: INTERLOCUÇÃO E ESCRITA DOCENTE COMO PONTES PARA A FORMAÇÃO.

Laura Noemi Chaluh - GEPEC/FE/UNICAMP
Carla Helena Fernandes - GEPEC/FE/UNICAMP
Guilherme do Val Toledo Prado - GEPEC/FE/UNICAMP

O objetivo deste artigo é refletir sobre uma prática de pesquisa na escola, apresentando dois processos ainda em andamento, desenvolvidos em uma escola de Ensino Fundamental da Rede Municipal de Campinas, a Escola Padre Francisco Silva.
Os projetos estão vinculados ao GEPEC - Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Continuada, que tem como princípio pensar a escola como um espaço de produção de conhecimentos e de formação, valorizando o que produzem os professores e demais sujeitos, tanto individualmente como de forma coletiva.
Uma das pesquisas - O coletivo dos professores na escola: possibilidades e limitações da formação continuada - tem como eixo a compreensão dos processos de apropriação das políticas públicas de formação continuada pelos sujeitos da escola, partindo do discurso político sobre formação continuada indo até o espaço e o tempo de formação na escola, procurando ter nessa passagem, nessa brecha, uma compreensão dos sentidos que essas políticas têm para o coletivo da escola. Assumindo a pesquisa como uma relação entre sujeitos, a interação assume um papel fundamental na constituição das subjetividades daqueles que participam: pesquisados e pesquisador.
A segunda pesquisa - O Discurso docente: dizer e escrita na formação do sujeito-professor e do sujeito-pesquisador/a – tem como foco a relação entre a formação do sujeito-professor, as práticas escolares e pedagógicas vividas por ele, individual e coletivamente, e seus dizeres e escritas, apontando para a interlocução entre os pares e a heterogeneidade dos discursos como importantes aspectos da constituição dos sujeitos.
Este artigo constitui-se de duas partes que apresentam a trajetória das referidas pesquisas e os eixos centrais de cada uma delas: 1. o coletivo de professores na escola como potencializador da formação continuada; 2. os dizeres e escrita docentes como constituintes do sujeito-professor. Ambas as pesquisas voltam-se, também, ao processo de investigação em si, à prática de pesquisa construída com os professores da escola e às relações que estão sendo vivenciadas entre os pesquisadores e os professores da escola.


1.O coletivo dos professores na escola: possibilidades e limitações da formação continuada.

A nossa inquietação parte da seguinte questão: quais os sentidos que assumem as políticas públicas de formação continuada quando chegam à escola? Essa pergunta revela a nossa crença de que a escola é um espaço de possibilidade de produção de novos sentidos.
Para contextualizar o desenvolvimento de nossa pesquisa, apresentamos a seguir algumas idéias centrais da política da Secretaria de Educação de Campinas (SME) (2001-2004) , lembrando que neste trabalho focamos a nossa prática de fazer pesquisa na escola.
Algumas idéias centrais dessa Secretaria: favorece e acredita na gestão democrática e no coletivo, concebe o professor em contínuo aprendizado, respeita os saberes profissionais, acredita em um profissional da educação com capacidade para agir (Boletim SME Nº 1, fevereiro 2001). Em função disso, consideramos necessário olhar para o espaço e o tempo de formação na escola para perceber como é que esse coletivo vai se constituindo, como recria e se apropria das políticas de formação continuada na escola.
A entrada na escola aconteceu no segundo semestre de 2003 acompanhando de forma sistemática o Trabalho Docente Coletivo (TDC) de 1ª a 4ª série. Segundo consta na resolução da Secretaria Municipal de Educação e da Fundação de Educação Comunitária (SME/FUMEC Nº 03/2003), o Trabalho Docente (TD) é considerado como espaço formativo, de elaboração do pensamento e de fortalecimento da equipe pedagógica, entre outras considerações. Segundo essa resolução, o TD deve ser composto por o Trabalho Docente Coletivo (TDC) e pelo Trabalho Docente Individual (TDI) (cf. Diário Oficial de Campinas, 25 de fevereiro de 2003). O TDC é realizado durante 02 horas/aula semanais consecutivas, sendo coordenado pela orientadora pedagógica (OP). A partir de 2005 o TDC de 1ª a 4ª série foi subdivido em dois grupos (participamos hoje desses dois grupos) e um deles optou pelo rodízio na coordenação. Em ambos grupos, existe um caderno coletivo de registro, onde é feito o registro do encontro por um dos participantes, segundo um rodízio já estabelecido. Importa destacar que dos TDC participam as professoras de Arte, Educação Física, Educação Especial, a diretora e a vice-diretora da escola.
A partir do ano de 2004, além de participar do TDC de 1ª. a 4ª. série, começamos a participar do Grupo de reflexão sobre Alfabetização (GA) de 1ª e 2ª séries. A constituição desse Grupo surge a partir de uma proposta da SME, que assegura 2 horas/aula semanais como suplementação da jornada, para as professoras se dedicarem ao estudo das especificidades desse trabalho pedagógico (cf. Diário Oficial de Campinas, 07 de novembro de 2003). A proposta foi pensada para ter inicio a partir do ano letivo de 2004. A mesma traz a idéia de um trabalho de formação dos professores de 1ª, 2ª e 5ª, dentro do espaço da mesma escola cujo objetivo é reduzir o número de retenções de alunos com dificuldade de aprendizado. (Boletim SME, 04 fevereiro de 2004). Na escola Padre Francisco Silva, os professores de 1ª e 2ª séries decidiram, juntamente com a OP, aceitar a proposta da Secretaria. Neste espaço, o grupo decidiu que a coordenação pode ser assumida por qualquer um dos participantes. Importa destacar que a diretora também participa desse encontro. Existe um caderno coletivo de registro, onde é feito o registro do encontro por um dos participantes, segundo um rodízio já estabelecido.
No ano de 2004, também acompanhamos o trabalho pedagógico em sala de aula de duas professoras da escola (2ª série e 4ª série). No ciclo letivo de 2005, continuamos na escola , inseridos e participando dos dois TDC de 1ª a 4ª série e do GA.
Entrar na escola estando no lugar de pesquisador/a fez surgir em nós algumas inquietações: O que seria ocupar o lugar de pesquisador/a na escola, quando a escola tem sido durante tantos anos o nosso lugar de ser/estar professor/a? Por quê e para quê fazer pesquisa na escola?
Começamos a participar do TDC em agosto de 2003, algumas lembranças: a pauta do dia escrita na lousa, as cadeiras formando uma roda, a aprendizagem feita para lembrar os nomes das professoras, fazer registros no caderno de anotações, acabado o encontro registrar no caderno as nossas impressões, estar atento/a as falas, e fundamentalmente descobrir aos poucos o movimento do grupo. Implicou também olhar sobre nós, perceber o nosso movimento nesse grupo e compreender quais os sentidos que para nós tinha estar em um espaço e um tempo no qual as professoras se reuniam para refletir, sendo um espaço que compartilhávamos com elas, mas que “ainda” não era o nosso espaço.
Para compreender o processo de formação do grupo era importante entrarmos no movimento do grupo, o que implicou de nossa parte uma especial atenção das relações que estávamos construindo com os “outros”. Escutar os comentários, perceber os olhares, e dar sentido a alguns gestos, movimentos, brincadeiras e frases das professoras. O nosso lugar dentro do grupo de professoras foi sendo construído nas relações, no envolvimento, no estar com os “outros”. Consideramos que esse processo possibilitou que a nossa participação nos encontros fosse legitima, o nosso lugar de pesquisador/a foi se ganhando no percurso. Estar na escola “com” os outros, facilitou e promoveu a construção das relações, dos vínculos; construção fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho posterior na escola. O respeito pelo outro e a confiança no outro nos abrem caminhos, caminhos que possibilitam o diálogo e a interlocução.
Segundo Maturana (2002), o respeito nas relações sociais é um aspecto fundamental para o surgimento da linguagem:

Em outras palavras, digo que só são sociais as relações que se fundam na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, e que tal aceitação é o que constitui uma conduta de respeito. Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, envolventes e amplas, em que haja aceitação mútua num espaço aberto ás coordenações de ações, não podemos esperar que surja a linguagem (MATURANA, 2002:24).

Acreditamos que a palavra e o diálogo são instâncias valiosas na constituição das subjetividades dos sujeitos. Compreendemos a escola como espaço de possibilidade de produção de novos sentidos, sendo que estes serão possíveis de existir, de se pronunciar, enquanto exista o diálogo, lembrando que Bakhtin (1992:345) diz que “quando não há palavras, não há língua, não pode haver relação dialógica”, sendo que “a relação dialógica é uma relação (de sentido) que se estabelece entre enunciados na comunicação verbal”.
Assim, pensamos no espaço da escola como um espaço propício para o exercício da palavra, que implica em se posicionar, participar, decidir, ser responsável, assumir um compromisso, ou seja, pensamos na possibilidade dos professores assumir sua própria formação: “los hombres no se hacen en el silencio, sino en la palabra, en el trabajo, en la acción, en la reflexión” (FREIRE, 1973:104).
A entrada na escola não considerava antecipadamente toda e qualquer intervenção planejada. As nossas colocações, observações, comentários, propostas, surgiam/surgem no momento mesmo de estar com as professoras, em função das inquietações que essas conversas nos provocavam, ou a partir das relações que conseguíamos fazer com outros acontecimentos surgidos dentro desse espaço/tempo de formação. Uma questão que nos preocupava era como fazer pesquisa na escola sem “inventar uma situação” a ser pesquisada, sem indicar a priori as variáveis que iriam guiar o nosso caminho na escola. Consideramos oportuno trazer as falas de Bakhtin (1992), quem faz uma critica da analise científica que a maioria das vezes busca “descobrir o que já estava dado e pronto” e nos mostra a pesquisa como um processo criador:

As coisas estão ali, inteiramente prontas: o objeto, os recursos lingüísticos de sua representação, o próprio artista, com sua visão do mundo. Então, mediante recursos já prontos, à luz de uma visão do mundo já pronta, o poeta reflete um objeto já pronto. Ora, a verdade é que o objeto vai edificando-se durante o processo criador, e o poeta também se cria, assim como sua visão do mundo e seus meios de expressão (BAKHTIN,1992:349).

Por outro lado, Freitas (2003) enfatiza a pesquisa como uma relação entre sujeitos. A autora destaca que uma pesquisa desde uma perspectiva sócio-histórica orienta-se para a compreensão dos fenômenos na sua complexidade, no seu acontecimento histórico; o foco central da atividade do pesquisador está no processo de transformação em que se desenvolvem os fenômenos humanos; o pesquisador sendo parte da investigação, pode compreender a partir do lugar social no qual se encontra e a partir das relações subjetivas que estabeleceu com os sujeitos da pesquisa. Assim, a participação tanto do pesquisador como do pesquisado é um critério fundamental nessa forma de pesquisa, já que ambos refletem, aprendem e se re-significam no processo.
Retomamos o nosso percurso na escola. A partir de nossa participação no TDC como no GA, fomos percebendo que colocamos na nossa fala o que as professoras gostariam de falar e não o fazem por diferentes motivos; ou as falas que acreditamos que teriam que ser colocadas por algum dos participantes e não aparecem; às vezes percebemos como as professoras poderiam se sentir e, em função disso, falamos. Essa forma de agir tinha um objetivo claro para nós: provocar, mobilizar, fazer perguntas que as professoras poderiam fazer desde o seu lugar e não o fazem. Aprendemos que esse é um exercício que permite-nos deslocar, vamos ao lugar do pensar/sentir das professoras para logo voltar ao nosso lugar.
Esse movimento de deslocação, nos remete a Bakhtin (1992), quando ao falar em excedente de visão nos diz que temos que nos identificar com o outro e ver o mundo através do seu sistema de valores: “devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, contemplar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento” (BAKHTIN, 1992:45).
Ampliamos com Amorim (2003) o conceito bakhtiniano de “exotopia” - desdobramento de olhares a partir de um lugar exterior. Segundo a autora, esse lugar exterior permite que se veja do sujeito algo que ele próprio não pode ver: “é dando ao sujeito outro sentido, uma outra configuração, que o pesquisador, assim como o artista, dá de seu lugar, isto é, dá aquilo que somente de sua posição, e portanto como seus valores, é possível enxergar” (AMORIM, 2003:14, itálico da autora).
Segundo Freitas (2003) o pesquisador está “com” os sujeitos produzindo sentidos dos acontecimentos observados, por isso a autora fala em uma observação caracterizada pela dimensão alteritária. Ou seja, o pesquisador ao participar da situação observada, ele mesmo se constitui em parte dessa situação, por outro lado, o pesquisador ao manter uma posição exotópica tem a possibilidade do encontro com o outro: “é este encontro que ele procura descrever no seu texto, no qual revela outros textos e contextos” (FREITAS, 2003:32).
Gostaríamos de finalizar explicitando que ser pesquisador/a na escola tem sido (continua sendo) uma aprendizagem para nós e por isso também a importância que outorgamos a inter-relação com os outros para a nossa constituição como pesquisador/a.

2. O discurso docente – dizer e escrita na formação do sujeito-professor e do sujeito-pesquisador/a

Homens, nascidos na história e constrangidos pela história, vamos construindo soluções (que a cada vez não se querem paliativas), conscientes de que o que se vai tecendo, a pouco e pouco, em cada ponto, em cada nó, é uma resposta marcada pela eleição de postos de observação possíveis que somente uma sociologia do conhecimento e uma história do conhecimento poderão explicar. Navegantes, navegar é preciso viver. Nossos roteiros de viagens dirão de nós o que fomos: de qualquer forma estamos sempre definindo rotas – os focos de nossas compreensões (GERALDI, 1991:4).

A pesquisa que aqui apresentamos - O discurso docente: dizer e escrita na formação do sujeito-professor e do sujeito-pesquisador/a - tem como referência uma perspectiva investigativa que se caracteriza por localizar e indicar a escola, entendida como produtora de saberes, como espaço privilegiado para a formação dos professores. Nesse sentido, com Kramer (1999) aprendemos que “formação” é ressignificação de conceitos e práticas, é recriar de significados e reflexão, o que só pode se dar com a participação e envolvimento dos professores. Significa reescrever uma história, relacionar presente e passado percebendo como a trajetória individual - da pessoa e do profissional - se inscreve na prática cotidiana e na história coletiva, no caso desta pesquisa, dos professores e pesquisadora.
Assim, seu encaminhamento decorre da trajetória dos pesquisadores, sobretudo das experiências como docentes em cursos superiores de formação de professores e como participantes do GEPEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada; decorre, portanto, das relações estabelecidas com outros sujeitos-professores que objetivaram o estabelecimento de proximidade e de parcerias.
Nesse “estar na escola”, como professores e, mais recentemente, como pesquisadores, fomos construindo aprendizagens que apontaram para a importância, no cotidiano escolar, dos dizeres e da escrita docentes nos processos de formação profissional. Essas experiências - nossos saberes - levaram à construção do projeto de pesquisa desenvolvido no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da UNICAMP e que, em função das muitas aprendizagens construídas com os professores da Escola Pe. Chico se materializou também na constituição (que se refaz continuamente...) dos pesquisadores.
Nesta pesquisa, buscou-se por identificar como os discursos se constituem, e aos sujeitos-professores, a partir dos estudos de Bakhtin sobre dialogismo e das idéias de Pêcheux (1969) acerca das condições de produção dos discursos, sobretudo das imposições, no processo discursivo, das imagens de si, do outro e dos outros discursos.
O princípio do dialogismo, como constructo de todo discurso, pressupõe a relação com o discurso do outro, por meio da exotopia que permite que o eu e o outro se completem em sua incompletude. Em uma pesquisa, como aprendemos com Amorim (2001), o pesquisador pode constituir-se pelo seu outro - nesse caso, pelos professores da escola, ou, ao contrário, permanecer como uma voz solitária.
Para Pêcheux (1969) os processos discursivos são formados por formações imaginárias que designam os lugares que os sujeitos do discurso se atribuem e ao outro. Essas formações imaginárias são “a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (PÊCHEUX, 1969:82).
Em função do objeto e objetivos da pesquisa, o processo de investigação tomou como espaços-tempos: as aulas de uma professora de primeira série (no primeiro semestre de 2004); os encontros (para as entrevistas) entre os professores e os pesquisadores-professores; os coletivos escolares (Trabalho Docente Coletivo, de 1 e 2 série e de 5 a 8 série) dos quais participam os professores e também os pesquisadores-professores.
O acompanhamento às aulas teve como objetivo propiciar a “entrada” dos pesquisadores no universo escolar, bem como estabelecer relações e o partilhar de experiências. A participação nos coletivos refere-se, além do compartilhar de práticas escolares cotidianas, a promover a reflexão advinda do movimento do grupo, da construção do próprio processo narrativo, do diálogo entre as participantes desses encontros, das reflexões que se realizam. Estando os grupos já constituídos, a escrituração dos encontros - prática que já ocorre - propicia observar esses objetivos: cada semana um dos professores narra o encontro e, no início do próximo encontro, essa narrativa é lida para o grupo que indica mudanças, complementações e/ou insere outros argumentos.
Os instrumentos de investigação são os discursos orais e escritos, individuais (entrevistas ou conversas) e coletivos. Nesta pesquisa, as entrevistas são entendidas, e realizadas, como conversas no sentido a que se referem Jobim e Souza e Kramer (1996:27): “entrefalas, entretextos e conversas”, através das quais se criam situações de diálogo sobre uma prática escolar comum - a prática dos professores partilhada com os pesquisadores, sendo os professores convidados a falarem sobre seu trabalho, participação nos coletivos escolares e escrita e reflexão das práticas docentes, entre outros temas. Os discursos orais serão gravados.
As experiências vividas na escola até o momento (abril de 2004/junho de 2005) têm indicado para a importância das relações de interlocução entre os professores e seus pares no processo de narrativa (oral e escrita) das práticas docentes, o que levou à seguinte problematização:
• o discurso docente (oral e escrito) pode ser entendido e valorizado, sobretudo pelos próprios professores, como espaço-tempo de reflexão sobre suas práticas e, em conseqüência, contribuem na formação profissional e na constituição do sujeito-professor?
• como se constitui o sujeito-professor? Como se constitui o sujeito-pesquisador-professor?
A leitura das experiências vividas e dos discursos docentes têm indicado uma heterogeneidade discursiva reveladora do “dito e do não dito” (também do que não pode ser dito), das relações entre poder e saber e, para além da instituição pedagógica e imposições do discurso pedagógico, para uma possibilidade: a experiência de si na constituição do sujeito-professor.
Para que se construa como tal, o sujeito, também o professor, precisa de instrumentos lingüísticos e políticos que lhe possibilitem representar e expressar sua realidade para que, refletindo sobre ela, nela possa intervir e transformar. Porém, tolhidos em sua autonomia e criação por discursos ditos oficiais e científicos, os professores foram submetidos, e se submeteram a esses discursos e, também, às análises e interpretações feitas à sua prática por “especialistas” externos à escola. Para Foucault (1970:44-45, o acréscimo é nosso)

O que é afinal um sistema de ensino (também o que ensina a ser professor...) senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação de papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?

A sociedade capitalista, e a escola inserida nessa sociedade, reduziu o homem a mero consumidor, também dos discursos oficiais. A liberdade, segundo Larrosa (2000), emerge como um apelo para recusar identidades opressivas e exige dos professores que encontrem formas para refletir sobre si próprios e sobre suas práticas docentes. A resistência - ou num outro sentido, a re-existência (VARANI, 2005) é um desafio ético, epistemológico, político e pedagógico.
Na escola, o discurso docente - o que dizem e escrevem os professores - pode constituir-se em importante instrumento de reflexão, possibilitando o resgate da capacidade de narrar, transformando-se e à realidade, também por meio do estabelecimento de relações com seus pares, aceitando a diferença como elemento do diálogo - o que é significativo para a formação profissional e constituição como sujeito-professor.
Uma pesquisa pode, também, representar, para os sujeitos envolvidos, sobretudo para os pesquisadores, as mudanças e transformações necessárias à sua prática, uma vez que, para Amorim (2001), todo o processo investigativo, incluindo sua escrita, implica um encontro com o outro, a busca por um interlocutor. O processo investigativo pode, nesse sentido, valorizar os muitos encontros ocorridos na escola ou se utilizar de métodos e convenções, também em sua escrita, que façam diluir, cair no esquecimento, a presença do outro - o outro também do pesquisador.
Na perspectiva de pesquisa e formação que assumimos enquanto participantes do GEPEC, cremos que quando os pesquisadores assumem a postura de caminhar com, de estar junto, contribui de forma significativa nesse processo sua própria trajetória como professores que, estando pesquisadores, deslocam seu olhar para um outro lugar (e de um outro lugar) e outra prática - a prática docente de outros professores com quem deseja dialogar. Dessa feita, uma pesquisa pode significar o processo de formação do sujeito-pesquisador.
No caso da pesquisa aqui apresentada, muito ainda é preciso “navegar” e essas são apenas considerações provisórias, embora muito inquietantes. Deixo as palavras de Marques que traduzem, nos traduzem, nesse processo de nos fazermos e de nos constituirmos professores e pesquisadores outros - outros lugares, pois navegar, e escrever, é preciso para se viver professor!

Escrever é preciso e nisso está o contraponto do dito português, “viver não é preciso”, porque viver é entender-se consigo mesmo, dizendo-se a si ao dizer-se a outrem na fala do face-a-face. Viver sem saber não é viver. Entender as razões do apelo a essa segunda forma de reconciliar-se consigo mesmo, a do escrever, é assunto para posterior análise mais profunda. Entender agora o escrever como princípio de vida, impulso vital irresistível, este meu problema, meu: existencial. Mas também, pragmaticamente, meu problema profissional: de professor interessado em aprender a pesquisar ensinando a pesquisa, desde que entendo que enturmar-se com quem busca aprender é a melhor forma de fazê-lo (MARQUES, 2001:16).

Considerações

Pensar, acreditar e realizar outros modos de fazer “pesquisa na e com a escola” implica procurar os sentidos que essa prática tem para nós. Dentre esses, gostaríamos de destacar: a importância de agenciar conhecimentos junto com os professores, subsidiar suas conquistas profissionais, favorecer e potencializar as discussões surgidas nos grupos instituídos na escola, contribuir com a construção na universidade de um outro olhar para as questões da escola.
Uma preocupação presente em nossas discussões é saber se o desenvolvimento de nossas pesquisas realmente contribui com os aspectos e reflexões citados. Nesse sentido, trazemos as colocações de Freitas, Jobim e Souza e Kramer (2003) já que as autoras explicitam claramente a nossa inquietação: “até que ponto as pesquisas realizadas nas instituições acadêmicas estão, de fato, voltadas para encontrar soluções para os problemas enfrentados no cotidiano, e que dizem respeito aos modos de vida individuais e coletivos?” (2003:7).
Para as autoras, os indivíduos e os grupos podem conquistar uma consciência crítica cada vez mais aprofundada sobre sua experiência quando permitem que os diferentes gêneros de discurso (desde o discurso acadêmico até as formas cotidianas de expressão) “possam interagir, transformando e re-significando mutuamente as concepções, sobre o conhecimento e as experiências humanas que circulam entre as pessoas num determinado espaço sociocultural, e num dado momento histórico” (Freitas, Jobim e Souza e Kramer, 2003:8).
Em função do que aqui apresentamos, acreditamos fortemente na interação e no diálogo entre a escola e universidade; e entre professores e pesquisadores, diálogos esses que se realizam nos encontros promovidos na escola, nos quais os conhecimentos adquirem outros sentidos.

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