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  ESCRITA DE PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL

Valdete Côco – UFES/UFF

1. A pesquisa

Esse trabalho se insere no conjunto de pesquisas sobre os processos escolares de construção de textos. Apresenta a particularidade de envolver um gênero específico, o trabalho de conclusão do curso – doravante TCC - , no contexto do curso de Pedagogia. Continuando a “tecitura” da cadeia dialógica da produção de textos em contextos escolares, trabalhou-se com as condições de produção para a formulação de um determinado discurso, chamado TCC, observando os mecanismos sociais e interativos que influenciaram, transformaram ou determinaram a produção de um enunciado no horizonte da produção acadêmica de duas turmas concludentes de Pedagogia (2003/1). Considerando a linguagem, como ponto central na constituição dos sujeitos sócio-políticos e históricos, o principal objetivo do trabalho constituiu-se na possibilidade de demonstrar a atividade do sujeito na linguagem privilegiando suas manifestações.

A mediação norteadora do trabalho residiu na concepção de que “o real é processual”. Essa concepção implica numa historicidade uma vez que “o que existe deixa de existir; o que não existe passa a existir” (KONDER, 2002, p. 187) potencializando a ação dos sujeitos na história como “seres fazedores e refazedores do mundo” (FREIRE, 1998, p, 47). Tratar a formação sob a perspectiva da vinculação do sujeito e do sentido numa concepção discursiva supõe uma teoria que conceba, a partir da interação, a possibilidade de o homem se constituir e de reinventar a si e à sociedade continuamente. O trabalho buscou referências em Bakhtin (1992, 1997) e Certeau (1979,1994, 1995, 1996, 2000). Esses autores, ancorados no social, oferecem subsídios que, compreendendo o “homem como produtor de textos numa cadeia dialógica”, permitem observar a potencialidade dos sujeitos em sua atuação social. Resgatam a importância da análise da dimensão das condições de produção ultrapassando o processo de culpabilização do sujeito compreendendo-o na dinâmica complexa e conflituosa da vida cotidiana.

Esse trabalho foi situado no entrelaçamento da área da formação inicial de professores com as atividades de linguagem. Pressupôs o encontro dos professores com as atividades de linguagem entendidas como atividades formadoras a partir da concepção do professor pesquisador. A necessidade de formação de professores pesquisadores tem sido defendida a partir da concepção do professor reflexivo (NÓVOA, 1992; SCHON, 2000; ZAICHNER, 1993 e outros). No entanto, sua implementação tem sido limitada em face das condições materiais do exercício da docência tanto na formação inicial quanto na formação continuada (LÜDKE et al., 2001). O conceito de letramento (SOARES, 1998) agrega novos contornos à questão da formação, da linguagem e da pesquisa no mundo contemporâneo. Nesse contexto a escrita vem ganhando um papel de destaque considerando suas atribuições na complexidade social que se apresenta. Advogando a importância da formação pela pesquisa muitos cursos de formação integraram em seus currículos disciplinas relacionadas ao contexto da pesquisa e da elaboração de trabalhos monográficos.

Tomando a linguagem como uma “construção social”, a problemática foi focalizada no cotidiano escolar mas não foi limitada a ele, uma vez que as condição de produção do discurso envolve toda a dinâmica da vida do indivíduo. O discurso é um elo na cadeia dos enunciados. A opção por uma investigação qualitativa de abordagem etnográfica possibilitou, ao “navegar” por territórios tão pouco delimitados (o da vida pessoal e da vida institucional), contribuir para o aprofundamento da reflexão relativa ao processo de elaboração textual.

Para captar a ação discursiva das alunas foi observado a expressão de seu discurso sob duas especificidades: enquanto discurso institucional – produzido por demandas do trabalho do TCC e recebendo as marcas desse contexto – e enquanto práticas – produzidas conforme as deliberações do sujeito, mesmo que realizadas no espaço da instituição de ensino superior. Em ambos os casos, o trabalho do sujeito foi observado na dialética do assujeitamento e da inventividade (CERTEAU, 1994). Na trilha de demonstrar o trabalho do sujeito em suas “escolhas” (tanto na intenção quanto na execução), a expressão discursiva foi tomada sob a perspectiva do “acabamento”, considerando o papel dos outros discursos no discurso e o caráter circunstancial da enunciação (BAKHTIN, 1992, p. 277 - 358).

Para coleta de dados foi implementada três etapas durante o primeiro semestre de 2003. Num primeiro momento, foi aplicado um questionário com questões abertas e fechadas para coletar as impressões iniciais frente ao desafio de produção do TCC. Na segunda coleta, as alunas efetuaram uma produção textual sobre o processo que estava em curso focalizando, com maior intensidade, a escrita. Na terceira coleta, ao final da produção do TCC e da sua avaliação, as alunas preencheram outro questionário com vistas a uma síntese do processo vivenciado. Associado a cada momento foi realizado a discussão coletiva dos dados com as turmas numa metodologia do tipo grupo focal. A esses dados de coleta específica foram agregados dados coletados informalmente. Desse modo, procurou-se extrair elementos das falas das alunas que revelassem seus pensamentos, dilemas e opiniões captando os mais variados sentimentos a cerca da elaboração do TCC em confronto com a materialidade das condições de produção em se efetivava o trabalho.

2 As impressões iniciais
Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
(Carlos Drummond de Andrade)


Na primeira coleta, totalizando 49 respondentes, ficou evidenciado a necessidade que as alunas tinham de atendimento individualizados nas disciplinas que estavam cursando concomitante a elaboração do TCC. Como o TCC era individual, quem conseguia sanar suas dúvidas “via a teoria coletivamente e fazia as perguntas do seu trabalho” e quem, por variadas condições, não sanava as dúvidas do seu projeto, captava as disciplinas “apenas como teoria” uma vez não conseguia avançar no seu projeto, “não conseguia aplicar a teoria”. Observou-se que a necessidade individual sobrepunha a todas as normalizações coletivas. As alunas buscavam uma atitude responsiva imediata dos professores alegando que tinham pouco espaço “para falar de seu trabalho”.

Na “diferença de tempo” dos trabalhos, apesar dos prazos uniformizantes, a dinâmica de adequação orientador/orientando fez com que algumas alunas começassem “a conversar com o orientador” antes que outras. Essa pequena diferença, foi muito “sentida” pelas alunas. Observou-se um destaque mais ligado as questões de afetividade do que, efetivamente, de desempenho. Ainda, como era de se esperar, as alunas, não apresentavam um desenvolvimento homogêneo na elaboração dos projetos. Sempre que buscavam algum comparativo, mencionavam a quantidade de encontros com o orientador e principalmente, o “número de páginas produzidas” demonstrando que a “contabilidade” da escrita era a referência para o comparativo que se estabelecia.

Na tecitura desse diálogo, além da necessidade de atendimento individualizado e do estabelecimento de processos comparativos, a falta de livros específicos das temáticas de investigação na biblioteca da instituição foi referenciado. Observou-se que nesse primeiro momento, muitas alunas desconheciam o acervo, que fizeram buscas superficiais e que reclamavam não da falta de determinados títulos e sim da quantidade porque tinham que disputar com as colegas que renovavam ininterruptamente o período de permanência com o material. Para isso utilizavam a estratégia de entregar o exemplar e pedir que, imediatamente, uma colega o pegasse e retornasse à pessoa inicialmente com sua posse. O diálogo com os materiais de leitura parecia indicar uma necessidade de “posse”, uma presença constante em toda a produção do TCC.

Com relação as dificuldades, os dados revelaram que a categoria de tempo foi relacionada ao conjunto da vida cotidiana. Retratava uma característica comum à vida das alunas e a dos professores de maneira geral (CODO, 1999). Como pessoas divididas, as narrativas demonstravam um acúmulo de atividades que se relacionavam com a vida doméstica (casa, filhos, companheiros, pais etc.), com o trabalho (em muitos casos em duas jornadas) e com a formação (muitas delas estavam acumulando o oitavo período, uma complementação e iriam iniciar a preparação para o provão). Havia, evidentemente, entre essas atividades sobreposições, regressos, afinidades, sobrevivências e o TCC parecia “roubar” o pouco tempo destinado ao espaço da família ou do lazer. No caso das alunas que tinham filhos, apareceu uma ênfase na culpa “pelo abandono das crianças”.

Foi possível observar, que sentimentos negativos ligados a instabilidade e ao medo se materializaram no início, assim, como existiu a expectativa que esses sentimentos se transformassem em sentimentos positivos e de êxito no decorrer do trabalho. Esses “sentimentos de desamparo” geraram movimentos em trilhas diferenciadas e até conflitantes. Ocorreram dois movimentos simultâneos e contraditórios: de recuo e de distanciamento na tentativa de inviabilizar a obrigatoriedade do trabalho e de avanço e de encontro na procura de subsídios para a sua realização. Nesse contexto, foi possível captar o alto grau de ansiedade entre as alunas. Merece destaque a expectativa de sentimentos de alívio no término do TCC. O alívio foi associado, em muitos casos, a perspectiva de “não repetir tão cedo, outro trabalho”. A ansiedade relacionada à escrita do TCC parecia inibir a idéia de continuidade da formação.

As análises efetuadas demonstravam os processos de dificuldades e recusas na fase de produção do projeto do TCC. Para responder as solicitações de reescritura, os artifícios de entregar de novo o mesmo projeto “para uma segunda leitura” sem efetuar ou efetuar parcialmente as correções inicialmente solicitadas demonstravam a expectativa de “concluir logo o trabalho”. Essa prática discursiva coletiva caracterizada pelos comentários simultâneos e de variadas ordens provocou também risos, que se tomados no sentido Bahktiano, explicita como as alunas, a partir de determinadas táticas, transformavam aquele processo conflituoso em escapes e humor demostrando como “a lei do mais fraco”, de uma maneira muito particular, busca seu espaço nos processos de mediação humana (CERTEAU, 1994).

3. A escrita no centro do processo

A segunda coleta foi direcionada para a ênfase dada as dificuldades de elaboração textual integrando três aspectos: a observação das inferências sobre o processo de escrita de modo escrito, ou seja, dizer sobre a escrita de modo escrito, a observação da disposição em efetuar a produção textual, ou seja, as manifestações acerca de produzir textos e por fim, a observação das manifestações acerca das possíveis avaliações pessoais e do grupo em relação ao processo de escrita.

Foi possível observar um grande empenho na realização da produção textual. Totalizou-se sessenta produções disponibilizadas para a pesquisa. Na fala “como é bom escrever que não gosto de escrever” foi possível captar que o atrativo da atividade residia na possibilidade de falar de si e nesse contexto, a atividade atingiu uma dimensão formadora pois permitiu uma reflexão pessoal. Foi observado também uma grande necessidade de oralizar as experiências com relação ao processo de produção textual. A proposta de que o processo se desse sem a efetivação de comentários foi burlada de dois modos. Uma primeira estratégia foi efetuada no contato com a pesquisadora/professora. Quando as alunas se aproximavam da mesa para sanar alguma dúvida do instrumento, contavam suas experiências. Mesmo após o esclarecimento da dúvida a “conversa” continuava. A outra estratégia se manifestou no término da produção textual. Quando as alunas entregaram seu texto final, elas conversaram coletivamente sobre suas experiências. As narrativas atingiram, por uma organização e necessidade da turma, uma dimensão formadora coletiva. De maneira geral, foram narrativas de experiências que retratavam dificuldades com a escrita. Desde dificuldades estruturais tais como falta de tempo e de computador a dificuldades de competência tais como a dificuldade de escrever textos longos e de empregar um vocabulário “mais científico” e de “de encontrar as palavras certas”.

As dificuldades foram narradas de diferenciados modos e relacionadas a várias concepções do ato de escrever tais como idéia de hábito, de gosto, de dom, de preparação prévia, de necessidade de leitura, de capacidade de concentração etc. Observou-se o processo de escrita como um elemento limitador implicado na desqualificação pessoal.

Eu não tenho hábito de escrita, por isso não sei escrever (...) escrever não é fácil, pra mim escrever está sendo uma prova de fogo.

Na dinâmica social, a competência com a escrita também foi determinante na constituição dos projetos de escrita. Foi possível captar uma lógica em que quanto maior a dificuldade expressada mais limitado estava o projeto futuro com a escrita. Em contrapartida, a desenvoltura conquistada se mostrou um elemento estimulador de novos projetos.

Tomei gosto pela escrita. Pretendo não parar mais. Meus planos são fazer pós e quem sabe mestrado. Pretendo publicar alguma coisa, quem sabe meu relatório de Educação Brasileira...

Com relação a ter um “modelo” inspirador de escrita, observou-se a maioria das alunas declararam que esse modelo constituiu um autor que fez parte das referências utilizadas no TCC. Muitas alunas expressaram que a leitura de determinados autores demandada pelo quadro teórico do trabalho, facilitava o processo pessoal da escrita. A “inspiração” para a escrita a partir das referências necessárias ao TCC demonstrou que as alunas não faziam, num primeiro momento, distinção entre a forma e o conteúdo. Como estavam necessitadas de “conteúdo” temático para o trabalho buscavam autores que tratavam dos temas que estavam estudando e acabavam também observando a forma que esses autores escreviam. Valorizar a forma simples, clara e objetiva de determinados autores assim como reclamar da complexidade de outros foram comportamentos que, de algum modo, demonstravam uma análise da forma da escrita dos autores e da escrita pessoal.

Acredito que tenho até facilidade para escrever (...), mas tenho uma linguagem voltada para o senso comum e tento passar as minhas palavras do senso comum para as palavras do dicionário e dos autores.

Foi recorrente a menção à dificuldade de fazer referências, de se apoderar da palavra do “outro”. Na apropriação da palavra “alheia”, destacou-se o orientador como um elemento que auxiliava “fazendo as ligações” que eram necessárias para a coerência do texto. Outro destaque foi a apropriação da palavra do orientador. Referências ao trabalho do orientador em expressões tais como “procuro fazer como ela faz ao consultar o livro”, “a forma como ela fala me dá sugestões”, “estou conseguindo escrever parecido com ela” nos momentos de aula demonstravam o esforço e as dificuldades no processo de apropriação da palavra do outro para tornar palavra pessoal (BAKHTIN, 1992).

Expressões tais como “rodeada de livros”, o “peso de tantos livros”, “carrego esses livros pra lá e prá cá” entre tantas outros demonstrava a intensa presença desse objeto nesse período. Foi possível perceber algumas vezes desentendimentos entre as alunas ocasionado pela retenção de livros emprestados pelo orientador. Como o livro não era repassado às colegas num processo de solidariedade acadêmica, criava-se uma disputa por aquele objeto. Nas semanas finais, foi possível observar também orientadores, em variados momentos, solicitando o retorno dos livros que haviam emprestado.

Em relação a rotina demandada pela elaboração do TCC, a maioria das alunas consideram que, de alguma forma, e com muitas dificuldades, tiveram que estabelecer uma rotina para escrever. Os depoimentos narram diferenciadas rotinas, tendo em comum a falta de tempo e o acúmulo de tarefas.

Não tenho um local nem um horário específico. Por ter um horário pouco apertado aproveito à noite quando todos já dormem, ou nos intervalos que surgem dentro da escola. O final de semana nunca fica livre para escrever, preciso sempre conciliar com outras tarefas de dona de casa.

Os dados demonstram a complexidade do processo de produção textual.

Tenho muita dificuldade de iniciar uma escrita de texto. Até organizar minhas idéias, rabisco muitas páginas com pouca escrita. Não gosto de ficar apagando pois acredito que distrai a mente e acaba perdendo as idéias. Por isso escrevo o que aparece em mente e passo a limpo no final, isso depois de muito rabiscar folhas ...

O destaque do “passar a limpo no final” foi relacionado ao fato de que a maioria das alunas não digitavam seus textos e, por isso, precisavam entregá-lo em boas condições de leitura para um digitador. O que implicava num dispêndio maior de tempo numa rotina já atribulada por vários afazeres. O fato da maioria das alunas não possuir e não dominar esse recurso tecnológico implicou a impossibilidade de contatos por correio eletrônico com o orientador e a não utilização de programas auxiliares de pesquisa na recolha, gestão e análise dos dados para o TCC (BOGDAN e BIKLEM, 1994, p. 43). Destacou-se a colaboração dos orientadores em “ler rascunhos não digitados”, em “consertar os erros da digitação” e até em “imprimir os textos” para que elas “não gastassem tanto” já que os preços eram diferenciados para a digitação e para a impressão.

Na medida em que o TCC foi avançando, observou-se o “orgulho” e a satisfação “pela capacidade de fazer um trabalho acadêmico”. No entanto, muitas alunas afirmaram que depois de “tanto esforço”, o trabalho não agregaria uma “vantagem especial” (econômica), não mudaria a realidade e nem iria interferir nas políticas públicas. No diálogo coletivo, buscou-se discutir e rememorar o processo analisando a formação em sua dimensão pessoal e coletiva.

4. A síntese da experiência

A última coleta consistiu na entrega de um instrumento as alunas para ser preenchido após a participação na banca examinadora. Com o retorno de 48 questionários, buscou-se verificar se algumas manifestações se alterariam com o término dos trabalhos e como estas alterações se materializavam nos novos discursos.

Como síntese do processo vivenciado, as atividades de leitura e escrita foram descritas como atividades fundamentais para o TCC. Nesse contexto, a relação com a leitura e a escrita esteve relacionada com os objetos consultados. As alunas utilizaram um número variado de consultas a partir de diferenciadas fontes com destaque para a biblioteca da instituição e para o acervo do professor orientador . Considerando o número de orientandos por orientadores e o comportamento de retenção de livros pelas alunas, os dados indicaram que os orientadores fizeram circular um número significativo de materiais. Seu papel também foi destacado na seleção dos materiais de leitura. Muitas alunas comentaram como os orientadores insistiam para que elas “fossem à luta atrás de materiais”, que “levassem os materiais para os encontros” e que eles próprios iam com as alunas à biblioteca para fazerem indicações demonstrando o empenho em desenvolver a autonomia no processo de apropriação da temática em estudo. Nesse sentido os livros consistiam no elo de ligação, no suporte para o diálogo que se estabelecia.

Os comentários frente aos objetos de leitura foram os mais diferenciados ao longo da pesquisa. Normalmente portanto alguns livros, as alunas descreviam desde as formas de elaboração de sínteses até emoções e sentimentos frente a forma e conteúdo desses objetos. Nesse contexto, as alunas puderam experienciar com esses objetos construindo e reconstruindo sentidos e significações. Como tática de apropriação, observou-se que as alunas realizavam anotações nos próprios livros, grifavam partes, dobravam páginas, liam somente as partes “mais interessantes” indicando, por um lado, uma intimidade com o objeto e, por outro, que danificavam objetos que não eram, normalmente, de propriedade pessoal.

A minha orientadora vai me matar, mas eu risquei o livro dela todo. Agora eu desmancho e fica a marca da lapiseira. O pior é o meu filho rabiscou a capa do livro. Quando vi já era tarde...

Considerando os “projetos” das alunas em relação a esses materiais é possível inferir que eles foram significativos, uma vez que terão outras “utilidades”. Após a conclusão do trabalho, aumentou o índice de projetos de outros trabalhos acadêmicos pouco enfatizados nas coletas anteriores quando estavam em meio ao processo de elaboração. Ocorreu destaque no uso desses materiais para outros trabalhos acadêmicos indicando projetos futuros.

Dada a tanta dedicação, estudo, reflexão dispensados ao TCC, não só por mim, mas também pelos professores envolvidos, penso que seria uma pena não tê-lo divulgado, ou não dar continuidade em alguma especialização.

Não pretendo parar por aqui, vou continuar estudando fazendo a minha pós-graduação e até mesmo, se tiver condições, fazer o mestrado.

Fizeram associações a um processo de “crescimento”, de “enriquecimento” que propiciou “preparação”, “confiança” e “auto-estima positiva” demonstrando um “carinho especial” pelo que produziram. Descobriram que são capazes “de fazer”, descobriram um “ritmo”, mesmo que ainda precisando de afinações. Nesse caso, podemos inferir a descoberta da linguagem para além de meio de comunicação e de dor em sua tecitura. No entanto, ocorreram também associações com a idéia de “falta de preparo” para realizar uma “tarefa muito difícil”, com a “falta de tempo” e com o “estresse que ocasiona”.

Em relação ao trabalho que entregaram, 38% das alunas afirmaram que consideram o trabalho concluído e só iriam atender as demandas das bancas, 54% mostraram predispostas a reescrever para melhorar cada vez mais o trabalho, 4% afirmaram não estarem dispostas “a mexer no trabalho” e os 4% restantes deram respostas relacionadas a perspectivas de “ler mais sobre o tema” e a “continuar escrevendo sobre o assunto em outros materiais”.

Considerando que o término do TCC alavancou os desejos de continuidade da formação, podemos afirmar que o processo, mesmo que traumático para um número significativo das alunas, ao final agregou novas possibilidades a partir da concepção de formação como um processo contínuo que não se esgota na dimensão institucional. Revelou, numa dimensão histórico-social, que o desenvolvimento das habilidades de escrita está relacionado aos meios e as demandas pelas quais os indivíduos são socializados. Lutar por oportunidades é ter esperança no que o futuro nos reserva, nas possibilidades de novas experiências de descoberta da linguagem como forma de expressão, como produção e não só como reprodução.

Os sentimentos tais como medo, angústias e desgostos são integrantes desse processo de aprendizagem que gerou instabilidades porque demandou o desenvolvimento de novas competências em face do texto escrito no gênero científico, tão distanciado dos processos formativos de ensino. Ensino e pesquisa ainda consiste numa conquista e seu desenvolvimento não se efetiva sem instabilidades. No conjunto desses sentimentos o papel do orientador foi destacado como um elemento importante para o desenvolvimento do trabalho. As palavras caracterizadoras da relação construída foram troca, parceria, amizade, afinidade, honestidade, compreensão, compromisso, respeito, confiança, diálogo, paciência, atenção. Alunas com mesmo orientador construíram relações diferenciadas indicando que o diálogo foi sendo construído de modo a balizar as expectativas e propósitos.

De maneira geral, percebeu-se nos relatos uma admiração pelo orientador e o estabelecimentos de laços afetivos. Algumas alunas declararam que - apesar de terem havido alguns conflitos, de terem necessitado “de um tempo até se acostumar com o jeito e as cobranças” - gostariam de “repetir a dose” com mais tempo “para aproveitar mais” e que não pretendiam “se afastar do orientador”. Muitas se mostraram gratas fazendo referência ao trabalho na primeira pessoa do plural (nosso TCC) e narrando que deram “presentes” aos seus orientadores, e que também foram retribuídas (geralmente com livros).

Associou-se o caráter presencial da orientação na instituição a contatos telefônicos e entrega para leitura e análise dos textos produzidos. As alunas declararam observar a sobrecarga dos orientadores tanto nas leituras e comentários quando em “ter que consertar o texto” num processo de vai e vem em que a reescritura só avançava quando o interlocutor (o orientador) assumia uma postura e interferir, literalmente, no texto produzido. No entanto, a prática da revisão e reescrita, que poderia possibilitar a auto-reflexão do sujeito num momento interpretativo de significações e ações tornadas conscientes por meio da linguagem e verbalização, ficou prejudicada porque os professores orientadores, dado ao tempo destinado a orientação, tiveram que efetuar os trabalhos em sua maioria levando para a casa. Assim a prática do comentário e da discussão ficou restrito a um tempo inferior as necessidades das alunas. Os processos cognitivos/interativos que possibilitam a apropriação da noção de enunciado como uma totalidade irrepetível, historicamente individual, foram despotencializados.

No contexto de avaliação, a preocupação com a defesa, o orientador e o leitor (que naquele caso era inicialmente a banca e principalmente o orientador) demonstra o papel que o “outro” exerce na linguagem. Essa orientação da palavra em função do interlocutor é destacada na obra de Bakhtin na questão do destinatário que “tem tanto a função de quem recebe como também a de quem permite ao locutor perceber seu próprio enunciado” (Garcez, 1998, p. 60). Nesse diálogo, caracterizador da busca da comprensão, o sujeito se constitui como produtor de seu texto, constitui para si um possível destinatário e também se constitui como um possível destinatário de seus próprios textos e de outros textos numa complexa cadeia dialógica. Nesse contexto os estudos desenvolvidos por Bakhtin explicitam três posições no diálogo: o sujeito enunciador, o destinatário virtual e o destinatário superior. No caso das alunas, o destinatário virtual foi destacado na figura do orientador e da banca, e o destinatário superior pode ser observado na inserção das alunas no discurso educacional. A perspectiva dos trabalhos oportunizarem outros trabalhos e/ou a continuidade dos estudos implica compreender o TCC para além desse momento imediato mas integrante de uma cadeia dialógica sócio-histórica em que este tem responsividade em outros tempos e lugares.

No entanto, na elaboração do TCC percebeu-se também que a socialização com a escrita continuou uma trajetória de preocupação significativa de atender os requisitos escolares delineando um terceiro destinatário com características escolares. A preocupação com uma boa redação e uma boa defesa que originassem uma boa nota criou diferenciados conflitos porque as alunas estavam vivenciando uma nova socialização com um repertório de escrita, o texto monográfico. Com isso, não sabiam “os códigos” que possibilitavam atender aos requisitos da “boa nota”. Nesse sentido os sentimentos em relação à defesa puderam ser agrupados sob três ângulos: uma primeiro relativo a sensação de injustiça, de desvalorização pessoal, de tristeza, decepção, frustração etc. por não terem atingindo os objetivos avaliativos. Nesses casos a nota final foi o elemento determinante para a desqualificação do processo vivenciado. Um segundo ângulo relativo aos sentimentos de instabilidades tais como medo, cautela, insegurança, responsabilidade, expectativa etc. demonstra a vivência em uma situação nunca antes experimentada e a tensão que representa a exposição em processos avaliativos públicos. Por fim, um terceiro ângulo, num pólo contrário ao primeiro, faz do êxito, com expressões tais como sucesso, satisfação, realização, gratidão etc., a síntese do processo vivenciado. Nesse caso a nota também foi o elemento balizador dos sentimentos.

Os sentimentos revelaram uma supervalorização da nota, desconsiderando a superação de dificuldades pessoais. O trabalho funcionou como uma prestação de contas mais centrada no produto do que no processo. O ritual estabelecido para a culminância do processo também teve na nota um dos momentos mais significativos do evento. Ainda, as alunas demonstraram variadas vezes, que a realização de pesquisa não se constitui como um diferencial de importância na formação. Expressões relativas a indagação do trabalho “especial” que requer uma pesquisa que “dá muito trabalho”, do “engavetamento” de trabalhos após sua conclusão e do “desinteresse” do universo do magistério para a leitura desse tipo de texto sugeriram, por um lado, um distanciamento dessa atividade e, por outro, que as alunas tem clareza das condições materiais que dificultam a realização da pesquisa e da sua inserção no magistério.

No caso da elaboração do TCC os atores envolvidos vivenciaram “um movimento formador” que não se esgota neste trabalho mas que requer investimento permanente para que a postura de movimento, de uma formação contínua, numa atividade “prático-poiética” de autoformação e autotransformação possa, inspirada numa utopia, promover uma reconstrução incessante, que, sem desconsiderar o vivido, invista na construção de uma história própria que recoloque o potencial do conhecimento e da escrita a serviço da emancipação do homem (CASTORIADIS, 1982). Advogando a importância da formação pela pesquisa a partir do desenvolvimento desse trabalho, se torna importante integrar ensino e pesquisa discutindo formas de inserção da pesquisa no contexto institucional de modo a propiciar condições favoráveis para sua execução. Assume vital importância a formação pela pesquisa como um projeto integrado e coletivo que possa promover uma vivência em pesquisa de maneira contínua favorecendo o contato prolongado com essa atividade em suas diferentes etapas.

5. Conclusão

Nessa era de letramentos diferenciados, esse trabalho partiu do pressuposto que a formação é um processo contínuo relacionado intimamente com a linguagem. É possível afirmar a complexidade do fenômeno investigado em que, nessa pesquisa, pesquisador e pesquisados foram constituintes do diálogo. A pesquisa indicou que as alunas conseguiram avançar nos tempos determinados até a conclusão do trabalho mas isso não se deu em homogeneidade e harmonia. As estratégias de atuação do sujeito foram constituídas pelo atraso, pela solicitação de mais tempo, pela resistência a determinadas obrigações assim como pela dedicação e envolvimento demonstrando a dinâmica do ser humano em face das demandas. Esses comportamentos não ficaram restritos ao TCC, na vida profissional e acadêmica criaram estratégias de otimizar o tempo, de faltar, de licenciar com vistas a conseguir “mais tempo” para o trabalho. Nesse sentido a dinâmica da vida das alunas, no contexto de inserção da mulher no mundo moderno, revelou um acúmulo de atividades e responsabilidades. Os diferentes papéis sociais se integravam e se rivalizavam capturando os “espaços”.

A pesquisa demonstrou que a escrita se constituiu como uma atividade conflituosa quando demandou do sujeito sua exposição enquanto autor do seu discurso. O “medo” de escrever esteve relacionado a uma vivência em que a produção do texto científico, como um gênero extremamente valorizado no contexto escriturístico atual, se mostrou estranho até então no processo formativo. Considerando a linguagem, como ponto central na constituição dos sujeitos sócio-políticos, é importante assinalar o mérito dos trabalhos realizados em face das dificuldades que se apresentaram, uma vez que os indicadores avaliativos destacam a relevância do processo vivênciado para a formação das alunas e para os propósitos da instituição. É importante também distinguir a formação pela pesquisa da construção do TCC. A formação em pesquisa requer uma vivência longa com essa atividade e demanda projeto intencional de inserção das alunas nessa atividade.

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