Maricilde
Oliveira Coelho
Com a expansão
da escola primária a partir de meados do século XIX, aumenta
o número de livros escolares. Entre esses livros, aparecem livros
de leitura corrente que apresentam narrativas com o objetivo de trabalhar
lições de história, geografia, ciências e,
sobretudo lições morais. Na França, exemplo desse
tipo de leitura é o livro Lê tour du France par deux enfants:
lê petit livre rouge de la Republique, de 1877; na Itália,
Edmund de Amices publicou Cuore em 1886 e na Alemanha, Selma Lagerlof
publicou Nils Holgerssun em 1906. No Brasil, Olavo Bilac e Manoel Bomfim
lançam, em 1910, Através do Brasil, narração
da aventura vivida por dois meninos em uma viagem a vários estados
brasileiros que combina lições de história e geografia.
No Pará, Higino Amanajás, alternando seu tempo entre escrever
obras escolares e exercer as funções de administrador da
Imprensa Oficial, publicou, em 1900, o livro de leitura Alma e Coração,
com lições de história, geografia, educação
moral e civismo. A primeira edição saiu pela Tipografia
J.B. dos Santos, com uma tiragem de cinco mil exemplares. A Tipografia
da Imprensa Oficial publicou, nos quatro anos seguintes, mais quatro edições.
A quinta e última edição data de 1905.
Com a reforma de 1899 o ensino primário, no Estado do Pará,
foi dividido em elementar, com quatro anos de duração; médio
e superior com dois anos de duração cada um. O livro Alma
e Coração foi destinado pelo Conselho Superior de Instrução
Pública aos alunos do segundo ano do curso primário elementar.
No prefácio da primeira edição de Alma e Coração,
Higino Amanajás reconhece a influência direta do livro Cuore
em sua obra. Apenas o caráter monárquico que havia no livro
italiano foi revestido de espírito republicano no livro paraense
e, assim como na narrativa de Edmund de Amices o personagem central era
um adolescente, Henrique, no livro de Amanajás, são as aventuras
do adolescente Ernesto que preenchem as páginas do livro. Sob forma
de cartas enviadas à sua mãe Angelina, o personagem Ernesto
descreve as impressões de sua vida de estudante na cidade de Belém.
A capital paraense vivia, àquela época, o apogeu econômico
trazido pela exploração e comercialização
da borracha no mercado internacional.
A descrição da vida urbana de Belém no início
do século XX feita por Ernesto, é assinalada pelos ícones
da modernidade e da civilização. O desenvolvimento da cidade
se fazia notar no calçamento das ruas, na construção
de boulevards, praças, jardins, palacetes e edifícios públicos,
além da organização de moderno sistema de bondes
elétricos, serviço telefônico, água encanada
e iluminação pública. Os prédios inaugurados
para servir à instrução pública ilustram o
retrato do progresso material do Pará:
(...) Ainda
conservo de memória a descrição que me fizeste da
Belém de 1888. Como está mudada hoje!
Não a reconheceria mais, minha mãe.
Tudo o que eu tinha fantasiado pelas vossas narrativas fica muito aquém
da realidade!
Sinto-me em um mundo novo: como estou atordoado, eu que estava acostumado
à quietação da nossa vida e do sítio, tão
uniforme sempre, tendo apenas por companheiros meus irmãozinhos!
A cidade que me havias descrito foi absorvida por outra, mais enfeitada
pelo progresso. Daquela que conheceis bem pouca coisa resta.
As praças da Independência, República, Frei Caetano
Brandão e Batista Campos, estão todas ajardinadas (...).
(...) Visitei também os novos edifícios públicos,
que não conheces: a Penitenciária, o Instituto Lauro Sodré,
o Colégio do Amparo, a Bolsa, todos ainda em construção.
São magníficos atestados do nosso progresso material.
Vi também o Museu, que me deixou agradável impressão,
o Liceu, a Escola Normal, a Biblioteca, o Bosque Municipal e o Teatro
(...).
(...) Todas essas belezas me surpreenderam; porque nunca fizera uma idéia
aproximada desses esplendores.
O progresso da cidade de Belém, avaliado pela intensa movimentação
cultural da vida de seus moradores, que possuíam biblioteca, teatro,
passeavam em praças e jardins projetados por jardineiros franceses,
contrastava com a vida pacata que Ernesto levava no interior paraense.
A urbanização da cidade mostrava um progresso alcançado
ou, pelo menos, com possibilidades de alcance. Também foram comentados
por Ernesto, a construção e ampliação de espaços
apropriados para a instrução, além da mudança
no processo do ensino:
(...) Julgava vir encontrar uma escola como me descrevestes a do vosso
tempo.
Meninos aglomerados, sem ordem, assentados em bancos grosseiros, em uma
sala asfixiante, com o semblante denotando cansaço e tédio,
e no fundo a figura do mestre, ríspido, temeroso, ameaçador,
com a palmatória em punho!...
Ao contrário disto eu encontro uma sala espaçosa, arejada,
com elegantes carteiras bem dispostas, os meninos satisfeitos, o mestre
com aspecto risonho e amável, e a sua banca coberta de flores!
Assim pode-se amar a escola e o estudo. Não há o terror,
mas a confiança. A criança encontra um pai, em vez de um
algoz.
Abençoados sejam os que assim transformaram em templo o lugar onde
vamos beber a instrução.
Esse trecho
revela a mudança ocorrida na escola no alvorecer do século
XX. A condição física da escola, o empenho do professor
e dos alunos em manter a disciplina e o respeito na classe, tudo estava
em plena harmonia com as prescrições oficiais para a instrução
primária. Entretanto, os relatórios oficiais, ao contrário
da escola “ampla e arejada” do livro Alma e Coração,
acusavam situações em que a qualidade do ensino estava comprometida
devido à precária estrutura física de algumas escolas.
Entre essas, aparecem os grupos escolares de Abaetetuba e Baião,
que não ofereciam condições mínimas de funcionamento.
O primeiro estava ameaçado de desabamento das paredes e o segundo
não proporcionava acomodações para todos os alunos
que o freqüentavam. O inspetor também solicitava ao diretor
da instrução pública a substituição
de professores que necessitavam de competência para o desempenho
do cargo e não possuíam a menor noção do que
fosse ensinar .
Na carta em que Ernesto agradece à sua mãe pelo empenho
e incentivo aos estudos, ele reconhece que o sacrifício de se encontrar
longe de casa e da família será recompensado pela preparação
para a vida. A escola é a instituição responsável
em oferecer conhecimentos e atitudes auxiliares na inserção
das gerações no novo processo econômico, social e
político do país. Porém, os estudos não eram
uma realidade para a maioria das crianças do interior paraense.
Desistir da escola para acompanhar os pais no trabalho diário era
freqüente na vida dessas crianças. Para o inspetor de ensino
João Pereira de Castro, ao contrário da mãe do protagonista
de Alma e Coração, os pais não estimulavam a permanência
dos filhos na escola:
(...) Não é a falta de bons mestres, mas o indiferentismo
e até a má vontade dos pais em educar seus filhos, que temos
de lamentar e censurar.
(...) É lamentável o número dos habitantes do interior,
por ignorância, ao certo, que aponta a educação como
uma necessidade muito secundária.
Na lavoura, na caça e na pesca, é que de preferência
educam seus filhos, para – no dizer deles – bem cedo poderem
“ganhar a vida”.
A ampliação do número de vagas, com a construção
de grupos escolares no interior do Pará, uma provável solução
para diminuir o atraso da instrução pública, não
impediu o alto número de crianças que abandonavam a escola.
Para o inspetor, a culpa dessa situação era dos pais, pois
não valorizavam suficientemente a escola, preferindo que seus filhos
fossem trabalhar para sobreviver. O quadro apresentado pelo inspetor sobre
a escola revelava que, a mesma economia que ocasionou o processo de remodelação
urbana e embelezamento visual da cidade de Belém, transformando-a
num verdadeiro centro de consumo de bens estrangeiros, também ocasionou
a saída de crianças que precisavam ajudar os pais na pesca
ou na extração da borracha.
O estudo dos livros de leitura destinados à escola primária
permite ao pesquisador observar qual o projeto proposto para a formação
da infância brasileira por meio da análise dos elementos
constitutivos desses livros. Nas páginas de Alma e Coração,
Higino Amanajás retratou uma escola que não correspondia
à realidade das escolas freqüentadas pela maioria das crianças
paraenses do interior, e até mesmo da capital do Pará. Muitas
vezes, a escola enfrentava situações difíceis para
efetivar a instrução, ressentindo-se de condições
apropriadas para alcançar o resultado de formar o cidadão
da nova sociedade brasileira. A escola idealizada no projeto republicano
foi vivenciada por uma minoria, dificultando a equiparação,
tão desejada pela elite intelectual brasileira, do Brasil às
grandes nações européias.
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