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ENSINO DE LÍNGUA: O CASO DA VARIEDADE LINGÜÍSTICA
Dilian da Rocha Cordeiro – UFPE
Artur Gomes de Morais – UFPE
Introdução
É inquestionável a importância do
ensino de língua materna na escola, sobretudo nos últimos
anos, em que pesquisas têm demonstrado o baixo nível de desempenho
lingüístico dos alunos, no que diz respeito a novas competências
que se tem exigido em nossa sociedade letrada (PISA, 2000/ SAEB, 1990).
É a partir dessas constatações que pesquisas têm
tentado explicar e apresentar soluções para o problema.
Desta forma, podemos perceber mudanças ocorridas nas últimas
décadas com relação à educação
e, mais especificamente, no trabalho com a língua materna. Podemos
analisar tais mudanças no ensino a partir das várias concepções
de linguagem que foram apresentadas ao longo da trajetória do estudo
da língua.
Baseadas nas correntes de estudos lingüísticos, as concepções
de linguagem dão diferentes respostas ao trabalho com língua
na escola. Desta forma, a nossa pesquisa procurou investigar o conhecimento
de docentes acerca da variação lingüística e
o que estes têm realizado em sala de aula, ante o tema.
Procurávamos investigar qual tem sido o conhecimento docente com
relação à variação lingüística,
a partir dos estudos que têm sido realizados pelas disciplinas lingüísticas,
considerando, paralelamente, a questão da transposição
didática e como se tem constituído concretamente o ensino
nas aulas de língua portuguesa.
O nosso trabalho teve como objetivo principal investigar até que
ponto os professores têm se apropriado dos novos conhecimentos a
cerca da variação lingüística e como isto tem
repercutido em sala de aula de modo que venha atender as novas exigências
do ensino de língua. Para entendermos esta questão nos utilizamos
de duas teorias que buscam entender a prática docente a partir
de pontos de vistas distintos, mas, acreditamos, complementares.
A questão da transposição didática
e a abordagem da construção dos saberes
Uma questão importante a ser considerada no trabalho
escolar é a forma como a escola se relaciona com o conhecimento.
Como discutimos anteriormente, as explicações dadas por
diferentes teorias sobre o fracasso dos alunos na escola devem ser consideradas.
Porém, não podemos deixar também de considerar que
a forma como o conhecimento, produzido cientificamente, é trabalhado
pela escola, interfere diretamente nos resultados escolares.
A teoria da transposição didática considera, justamente,
a relação da escola com o conhecimento, fazendo distinção
entre os diferentes saberes (saber “sábio”, o saber
a ser ensinado e o saber efetivamente ensinado).
Segundo Chevallard (1991), no processo de ensino-aprendizagem devemos
considerar três aspectos: o objeto de conhecimento, o sujeito que
aprende e o que ensina. Entre estes é estabelecida uma relação
que não é estática. Esta relação assume
diferentes formatos, dependendo da situação. No âmbito
escolar, o que ocorre é que o conhecimento que deve ser transmitido
não é qualquer conhecimento, mas, sim, uma forma simplificada
do conhecimento científico que historicamente se constituiu.
Assim, como nos aponta Chevallard (1991), o professor também é
responsável por uma das etapas de transposição didática.
A forma como este se relaciona com o conhecimento repercute diretamente
na forma como ele irá realizar o ensino. Partindo deste ponto,
entendemos que o conhecimento docente sobre aspectos relevantes do ensino
de língua materna e, mais especificamente sobre o aspecto da variação
lingüística, está estritamente ligado ao fato do professor
tomar ou não conhecimento das novas discussões sobre a questão
e adotarem ou não novos encaminhamentos suas práticas de
ensino no dia-a-dia.
Chevallard (ibid), nos aponta que o saber cientificamente constituído
e transmitido pela escola passa por transformações no exterior
e no interior desta instituição em diferentes esferas. Este
espaço de transformação sofre influencias conceituais
e metodológicas que atuam na seleção dos conteúdos
que compõem os programas e currículos escolares. A isto
Chevallard (ibid), denomina de noosfera, isto é, o espaço
de atuação dos especialistas onde são definidos os
conteúdos a serem ensinados. Apesar de ser o espaço de atuação
dos especialistas é, na noosfera, que se estabelecem o debate e
conflitos entre representantes da sociedade, os especialistas das diversas
áreas de ensino e órgãos políticos.
As propostas que são instituídas na noosfera devem orientar
os professores. Contudo, ao analisar tais propostas, não podemos
deixar de considerar que estas não estão desvinculadas de
questões político-ideologicos que influenciam sua formulação.
Entre o saber a ser ensinado e o saber ensinado, o objeto de conhecimento
passa por mais uma transformação, ou seja, para ser ensinado
o conhecimento é modificado mais uma vez. Isto ocorre em decorrência
da especificidade da instituição escolar que transforma
o objeto de conhecimento em objeto de ensino.
Percebemos, assim, que aquilo que é prescrito nas propostas oficiais
de ensino nem sempre corresponde ao que é efetivamente ensinado.
Há um distanciamento entre o saber sábio, o saber a ser
ensinado e o saber de fato ensinado. É a partir das mudanças
no saber cientifico e das mudanças sociais que decorrem, segundo
Albuquerque (2001), um desequilíbrio. Isto ocorre pelo distanciamento
entre a produção científica, em um determinado período,
e aquilo que deve ser ensinado pela escola, ou seja, o saber a ser ensinado.
No caso de língua portuguesa, podemos perceber este distanciamento
quando a língua ensinada não considera o falar do aluno.
Não queremos dizer com isso que a escola não deva ensinar
a “língua padrão”, mas é necessário
que se considere aquele falar. O desequilíbrio apontado por Albuquerque
(ibid) pode ser claramente percebido no caso da língua, pois segundo
Soares (1996), vivemos atualmente na escola um antagonismo entre a linguagem
da escola e linguagem das camadas populares que a escola passou a receber
depois da expansão do sistema de ensino.
Segundo Chevallard no processo de transposição didática
ocorre uma simplificação do saber “sábio”
para que possa se “ensinável”. Este processo é
inevitável. Contudo, é necessário que este saber
passe pela “autorização” dos especialistas para
que não ocorram deturpações. A isto Brousseau (1973),
chama de vigilância epistemológica.
A teoria da transposição didática nos dá subsídios
para entender como a escola se relaciona com o conhecimento, em nosso
caso, o conhecimento sobre a língua. Como este objeto de conhecimento
pode se transformar em objeto de estudo/ensino. Uma vez que, torna explicita
a transformação de um determinado saber de maneira que este
possa ser ensinado de forma legitimada. Como nos mostra Bourdieu (1996),
um bem simbólico, como a língua, é legitimado atribuindo-se
valor e poder à linguagem de uns e desprestigio à linguagem
de outros.
O objetivo central da teoria da transposição didática
é analisar as transformações e o distanciamento entre
o saber cientifico, o saber a ser ensinado e o saber efetivamente ensinado.
Esta aponta como solução para este desequilíbrio
uma redefinição do saber a ser ensinado, buscando uma aproximação
entre o saber cientifico e o saber efetivamente ensinado, através
da apropriação, por parte dos professores, desses saberes
científicos. Entretanto, entendemos que a teoria da transposição
didática não dá conta de nos explicar como o professor
se apropria desses conhecimentos e que fatores interferem na concretização
de sua prática.
Uma abordagem que pode nos auxiliar a entender como se dá o processo
de apropriação do professor é a abordagem da construção
dos saberes. Esta abordagem, ao contrário da teoria da transposição
didática, considera que os professores não realizam uma
simples transferência do saber cientifico, traduzido inclusive nos
textos do saber, para o saber efetivamente ensinado. O professor, através
de sua própria experiência, reconstrói aquilo que
é prescrito para ser ensinado.
Esta abordagem encontra fundamentação na teoria do cotidiano
desenvolvida por Michel de Certeau (1994). Esta teoria busca entender
uma determinada realidade, investigando o que ocorre no dia-a-dia, considerando
que as práticas cotidianas contêm as chaves de interpretação
de uma dada realidade. É nesta abordagem que encontramos subsídios
para investigar as práticas docentes. Uma vez que, busca-se investigar
as relações existentes dentro da sala e como fatores externos
são geridos pelos docentes.
Como nos diz Ferreira (2003), esta abordagem considera a pratica cotidiana
tão importante quanto a teoria e assume a relevância da “arte
de fazer”, dá às práticas cotidianas a mesma
importância da teoria.
Segundo os teóricos desta abordagem, como nos mostra Albuquerque
(2001), “os saberes não são fruto de uma transmissão,
mas de uma apropriação”, considerando-se o contexto
próprio da escola, que é construído por diversos
fatores.
Segundo Weisser (1998) e Albuquerque (2001), três são os
fatores que interferem na maneira como professor vai realizar sua prática.
Esses fatores são as instruções oficiais que, segundo
a teoria da transposição didática, constituiriam
o saber a ser ensinado; ao lado deste primeiro fator teríamos as
didáticas das disciplinas e os conhecimentos acadêmicos.
É também através de suas experiências que os
professores equilibram estes fatores. O professor tentaria, assim, gerir
estes fatores, de acordo com o contexto em que realiza sua prática,
ou seja, considerando os alunos a quem ele se dirige.
Desta forma, acreditamos ser esta abordagem de grande valia para nosso
trabalho, uma vez que, procuraremos investigar o que o professor conhece
sobre variação lingüística, ou seja, o conhecimento
cientifico (lingüístico) de que este toma conhecimento e,
como realiza sua prática docente ante a diversidade lingüística
real e ser enfrentada nas aulas de língua. Assim, é imprescindível
considerar suas experiências e como ele se apropria do conhecimento
cientifico.
Chartier (1998), em seu trabalho, faz distinção entre conhecimento
didático e conhecimentos pedagógicos. Segundo esta autora,
o conhecimento didático consiste no conhecimento que o professor
possui que está diretamente relacionado aos saberes teóricos;
enquanto o conhecimento pedagógico se relaciona com os saberes
da prática.
Segundo Chartier (1998), o conhecimento pedagógico se constitui
na ação, ou seja, o professor se apropria daquilo que é
possível ser feito na prática, pois os esquemas que ele
aciona, ao se apropriar, são os esquemas da ação.
Ainda segundo Chartier (ibid), a formação do professor se
dá mais fortemente através do “ver fazer” e
“ouvir dizer” e não por uma mera aplicação
da teoria. Desta forma, é necessário que o professor reflita
sobre sua prática e que as teorias estejam partindo desta prática,
para responder problemas que surgem da prática.
Segundo estudo desenvolvido por Chartier (ibid), podemos observar, a partir
da prática docente, um conjunto de atividades que à primeira
vista parecem contraditórias, do ponto de vista da teoria, porém
que se revelam coerentes do ponto de vista pragmático. Assim, Chartier
(ibid), aponta que, segundo a abordagem dos saberes em ação,
a prática docente é primeiramente constituída pelo
“como fazer melhor”. Ou seja, primeiramente o professor parte
daquilo que lhe é mais plausível de realizar em sala e em
seguida, quando necessário, realiza uma reflexão sobre sua
prática.
Aspectos metodológicos: a coleta e o tratamento
dos dados
Definimos como sujeitos de nossa pesquisa, professores
com formação superior que atuem no 1º e 2º ciclo
do ensino fundamental (alfabetização e 4ª série)
da rede pública de ensino. Entendemos, que discutir o ensino de
língua, sobretudo no que diz respeito à questão da
variação nesta etapa de escolarização se faz
pertinente, uma vez que ainda há uma tendência de um ensino
baseado na tradição gramatical, que elege uma variedade
lingüística como legítima.
Como sendo a alfabetização, a primeira experiência
do aluno na escola, acreditamos que, este chega nesta instituição,
com uma linguagem ainda muito influenciada pelo dialeto de sua comunidade.
É também no 2º ano do 2º ciclo que, como demonstram
as pesquisas, se tem um dos maiores índices de repetência.
Portanto, nos é interessante verificar o que o professor realizar
com estes alunos quando se depara com esta situação? Que
conhecimento ele tem para lidar com esta realidade?
Com relação às turmas de 4ª série, parecem-nos
interessante abordar a realidade nelas praticada, uma vez que os alunos,
nesta etapa, já têm condições de realizar uma
reflexão maior sobre os fenômenos da língua. Assim,
Interessa-nos perceber como os professores lidam com as questões
de variedade, comparando as possíveis diferenças e semelhanças
entre os diferentes estágios de escolarização.
Realizamos uma investigação qualitativa, analisando as representações
dos docentes expressas ao nível do discurso e da prática
docente, utilizando-nos de entrevistas semi-estruturadas e observação
etnográfica. A análise dos dados seguiu procedimentos sistemáticos
da análise de conteúdo (Bardin, 1977).
Realizamos entrevistas que tinham como objetivo conhecer de maneira mais
profunda a formação e atuação docente, procurando
desvelar quais concepções de linguagem e da língua
estão presentes na prática pedagógica dos professores.
Desta forma, procuraremos identificar quais práticas são
mais recorrentes no desenvolvimento do trabalho docente.
O nosso corpus foi constituído de 08 professoras, sendo constituído
por 04 professores com formação em letras (02 que atuem
na 1ª série e 02 que atuem na 4ª série) e 04 com
formação em pedagogia (02 que atuem na 1ª série
e 02 que atuem na 4ª série).
A análise dos dados, como já dissemos anteriormente, assumiu
um caráter qualitativo ancorado em procedimentos sistemáticos
da análise do conteúdo (Bardin, 1977).
Sendo a análise do conteúdo um conjunto de técnicas
de análise das comunicações, que utiliza procedimentos
sistemáticos e objetivos de descrição dos conteúdos
da mensagem (Bardin, 1977), esta se constitui como melhor procedimento
metodológico, uma vez que pretendíamos investigar por meio
de entrevistas aquilo que professores podem expressar sobre suas concepções
e práticas pedagógicas.
Alguns resultados
Os objetivos do ensino de língua
Com relação à primeira questão,
pudemos verificar que a concentração maior dos argumentos
apresentados estava relacionada à “questão da leitura
e da escrita”, ou seja, os objetivos giravam em torno de alfabetizar,
formar o leitor, desenvolver a leitura e a escrita “com compreensão”.
Sete das oito professoras entrevistadas afirmaram ter como objetivo alfabetizar
e “formar o leitor e escritor”. Contudo, pudemos perceber
algumas peculiaridades nestes depoimentos. Algumas professoras demonstravam
ter como objetivo maior alfabetizar, levando os alunos a terem domínio
do sistema alfabético e/ou terem “noção dos
padrões silábicos” simples.
“Que eles se apropriem, eles tenham condições de ler
(...). Ou seja, eu quero alfabetizá-los. Que eles cheguem no segundo
ano do segundo ciclo lendo o universo básico deles”.
SL03:P02
Estes argumentos, mesmo estando relacionados a aspectos
de leitura e escrita, demonstram que as professoras estavam mais preocupadas
em assegurar a alfabetização inicial de seus alunos. Isto
foi preponderante entre as docentes de alfabetização, indistintamente
da formação inicial. Este fato parece-nos compreensível,
visto que é nessa série que são implementados maiores
esforços para a alfabetização dos alunos.
Entre as professoras que atuavam em turmas do 2º ano do 2º ciclo,
os objetivos em língua portuguesa, também estavam relacionados
a aspectos de leitura e escrita, contudo a ênfase girava em torno
do “desenvolvimento do leitor e do escritor”, da “leitura
com compreensão” e da “escrita com clareza e coerência".
Eis um depoimento:
“... Então o meu maior objetivo é que eles leiam e
compreendam o que leu. Ou seja, eu gostaria que eles não fossem
mais um grupo de analfabetos funcionais, né? Que a gente... então
meu trabalho maior é em cima da compreensão da interpretação
e da compreensão. Ou da compreensão e da interpretação...
a ordem... eu acho que o importante são (sic) eles compreenderem”.
SP08: P02
Diante deste depoimento podemos afirmar que, entre estas
professoras a preocupação maior consistia em desenvolver
a leitura e a escrita numa perspectiva de consolidação do
processo de alfabetização inicial, exigindo do aluno um
maior grau de letramento.
Dentre as docentes que tinham como objetivo, no ensino de língua,
aspectos relacionados à leitura e a escrita, apenas uma fez menção
à “comunicação”, querendo, provavelmente,
referir-se a uma perspectiva de “atividade”, “interação”.
“Olhe eu tenho tido, pelo menos a orientação que eu
tenho tido na rede, é que o objetivo primordial na área
de língua portuguesa seja justamente utilizar os recursos da língua,
não é? Utilizar as várias... como é que eu
posso dizer assim... as várias utilizações da língua
pra efetuar a comunicação”.
SP08:P02
Acreditamos que isto seja um dado relevante, visto que,
como têm demonstrado outras pesquisas, os docentes já vêm
incorporando as idéias da concepção interacionista
da linguagem, entretanto, desenvolver a “competência comunicativa”
(Travaglia, 1997), não apareceu, explicitamente, como um objetivo
para o ensino de língua para nossas entrevistadas.
Com relação a efeitos da formação inicial
das docentes, dentro desta categoria, não verificamos diferença
significativa, visto que sete das oito professoras declaram ter objetivos
relacionados à leitura e a escrita.
É interessante observarmos que apenas uma (1/8) das professoras
afirmava ter como objetivo primeiro “desenvolver a língua
culta”, sem contudo, fazer menção à leitura
e a escrita.
“Em língua portuguesa? Que eles tenham a
linguagem culta, certo? Por que é o que vai... eu tenho que preparar
os meninos para a escola que vão (sic) recebê-los. (...)”.
SL06:P02
Diante deste quadro, fica questão de como o professor tem explicitamente
o objetivo de assegurar a apropriação da variedade de prestígio.
Parece-nos que, para os docentes estas questões não estariam
relacionadas.
Como tentativa de responder a essa questão podemos ainda, cogitar
que a apropriação da norma de prestígio faça
parte dos objetivos pedagógicos das professoras, de maneira implícita,
visto que, ao desenvolver a leitura e a escrita do aluno, indiretamente
isto permitirá um progressivo domínio da “língua
culta”. Porém, parece-nos que as docentes não concebiam
isto de modo claro.
Curiosamente, a mesma professora que afirmava ter como objetivo o desenvolvimento
da variedade de prestigio dizia também ter como objetivo preparar
para o mercado de trabalho e/ou para as escolas que iriam recebê-los.
“Em língua portuguesa? Que eles tenham a
linguagem culta, certo? Por que é o que vai... eu tenho que preparar
os meninos para a escola que vão recebê-los. Através
de redação, de texto. (...) A fala e escrita, porque eles
serão excluídos do mercado de trabalho, também da
formação deles”.
SL06:P02.
O fato de apenas uma professora ter explicitado o objetivo
de “desenvolver a língua culta”, parece-nos interessante,
pois o estudo realizado por Sampaio & Ferreiro (1990), concluiu que
os professores aproximavam-se dos valores lingüísticos da
classe dominante, buscando assim priorizar no seu ensino a variedade socialmente
prestigiada, levando a uma incompatibilidade entre os valores da escola
e dos alunos, gerando assim, a evasão e exclusão escolar.
Dentre as professoras que entrevistamos nos pareceu que não havia,
pelo menos explicitamente, a vinculação dos valores da classe
dominante. O trabalho com a língua materna já estaria mais
sensível às questões das diferenças lingüísticas
e do respeito a essas diferenças, porém reconhecendo-se
a necessidade do ensino da variedade de prestígio. Este ensino,
por sua vez, estaria mais incorporado dentro de um trabalho que partisse
do texto. Por outro lado, isto se contrapõe a resultado de outros
trabalhos (Morais, 1999) em que o ensino da língua portuguesa se
justificava por ser uma necessidade para o mercado de trabalho. O fato
de apenas uma professora demonstrar interesse em desenvolver a “língua
culta”, de maneira explicita e com o argumento da exigência
do mercado de trabalho, pode soar um pouco tradicional e antiquado, porém
esta mesma professora demonstrava preocupar-se em não agredir a
cultura do aluno. Parece-nos que, segundo a docente, o domínio
da norma de prestígio daria melhores condições para
o desenvolvimento da leitura com compreensão, tendo como fim maior
a “construção do cidadão”:
“... E também a maneira que eles... a fala
também é importante. Sem a agredir a cultura que ele vem,
né? Mas, isso é importante. Respeitando a origem, (...)”.
SP06:P02
Outro ponto que constituía um objetivo para as docentes foi a “socialização
dos alunos”. Mesmo não sendo um aspecto especifico do ensino
de língua, este também foi mencionado como objetivo a ser
desenvolvido. Porém, isto foi apresentado apenas por uma professora
de alfabetização, o que talvez se justifique por ser, para
muitas crianças, o primeiro contato com o universo escolar.
“(...) Se expressar, a questão da convivência, uma
melhor convivência entre eles. Eu acho que talvez o objetivo maior,
até por que eles também só são grupo cinco”.
SP02:P01
Por fim, outro objetivo, apresentado por apenas duas docentes, foi o desenvolvimento
da oralidade e da comunicação. Não podemos afirmar,
ainda, que isto demonstre uma menor preocupação com o desenvolvimento
da modalidade oral na escola, porém parece-nos que, quando falam
em oralidade, as professoras tendem a referir-se ao desenvolvimento e/ou
aquisição da fala. E, quando se referem à “comunicação”,
tenderiam a remeter-se à comunicação na escrita,
fazendo uso das mais diversas possibilidades do sistema de escrita e da
diversidade textual.
“(...)
Utilizar as várias... como eu posso dizer assim... as várias
utilizações da língua para efetuar a comunicação.
Então o meu maior objetivo é que eles leiam e compreendam
o que leu”.
SP08:P02
Enfim, com ralação aos objetivos indicados pelas professoras
para o ensino de língua, o que pareceu se destacar foram os objetivos
de “alfabetizar” e “formar o leitor e escritor com compreensão”,
sendo a categoria com maior índice de ocorrência. O primeiro
objetivo mais enfatizado pelas docentes de alfabetização
e, o segundo, pelas docentes de 4ª série. Não observamos
diferenças com relação à formação
inicial do professor. Tanto docentes com formação em Pedagogia,
como professores com formação em letras demonstraram ter,
praticamente, os mesmos objetivos.
O papel do
ensino de língua na escola
Com relação ao papel que o ensino de língua tem na
escola, as repostas das professoras se apresentaram de forma bem distribuída,
não existindo uma categoria de resposta predominante. Porém,
pudemos observar a presença de argumentos que apresentam a “comunicação”
e a “formação do leitor e produtor de texto”
(3/8), como uma das finalidades mais mencionadas para o estudo da língua
na escola.
“Olha,
na minha opinião, eu acho que é pra... é até
pra se comunicar melhor. Eu acho que seja isso. Pra comunicar melhor se
fazer entender eu acredito que seja isso. (...)”.
SP01:P04
É
interessante observarmos que tal argumento foi apenas mencionado entre
as professoras com formação em pedagogia e a incidência
maior foi entre as professoras que atuavam no 2º ano do 2º ciclo
(2/3). Talvez isto esteja ligado ao fato de haver uma preocupação
maior em desenvolver mais a capacidade de leitura e de produção
nesta etapa da escolarização. Apenas uma professora de alfabetização
informou ser este o papel do ensino de língua na escola.
Tendo um mesmo número de ocorrências (3/8), a justificativa
de “ampliar o conhecimento que o aluno já possui quando entra
na escola”, sistematizá-lo, para com isso haver um melhor
aprendizado, foi mencionada apenas por professoras de alfabetização.
“Eu
acredito que seja por conta das regras, né? Até pra você
sistematizar as coisas. Todas as regras você sistematiza aquilo
ali, pra pode você conseguir... deixa ver como é que eu posso
dizer... aprender melhor. Eu acredito que seja por aí”.
SP02:05
Diante deste
depoimento, podemos observar que o aspecto normativo, de certa forma,
se apresenta, pois parece que é necessário sistematizar
e organizar de maneira lógica as regras do bem falar. Este argumento
parecia fundamentado, de certa forma, na idéia de que o aluno já
chega à escola com um certo conhecimento sobre a língua,
mas que seria importante que este conhecimento fosse “re-organizado”.
Mesmo não colocando isto de forma explicita, podemos inferir que
a professora percebe a língua como objeto de conhecimento que precisaria
ser sistematizado pela escola, ou seja, que caberia a escola ordenar e
explicitar o conhecimento que o aluno já traz sobre a língua.
Em contrapartida, apenas docentes que atuavam no 2º ano do 2º
ciclo afirmavam ser papel do ensino de língua na escola a “formação
do cidadão”, “o desenvolvimento do senso crítico”
(2/8).
“(...)
Olhe quando eu penso no ensino da língua portuguesa na escola,
principalmente do nível social de alguns alunos da gente que é
de escola publica (...) Eu penso mais na parte assim... de desenvolver
o senso critico dele, entendeu?”.
SL05:P12
É interessante observarmos que esta justificativa foi mencionada
apenas por professoras com formação inicial em letras. Esta
mudança de eixo nos argumentos das docentes de alfabetização
e 4º série parecem-nos interessante. Enquanto, num primeiro
momento, a escola deveria buscar no ensino de língua a sistematização
e ampliação do conhecimento do aluno, em outra etapa a finalidade
se restringiria menos aos aspectos lingüísticos e seria buscada
uma formação mais política e social.
Dentre as docentes que explicavam o ensino de língua como instrumento
para o desenvolvimento do cidadão e do senso crítico, uma
declarou ser também finalidade para o ensino de língua,
o desenvolvimento do raciocínio lógico. Esta professora
tinha formação inicial em letras e atuava em uma 4ª
série.
“Rapaz, já pensou se ele não desenvolver o... raciocínio
lógico deles, (...)”.
SL05:P11
Mesmo não
sendo uma quantidade expressiva, o fato de uma professora apresentar este
argumento, nos parece importante, visto que, tal idéia, poderia
estar filiada à concepção que vê a língua
como expressão do pensamento. Sendo assim, mesmo verificando que
os professores têm se apropriado das novas concepções
de linguagem, ainda podemos observar velhas concepções presentes
em seu ideário.
Algo que nos chamou atenção, com relação à
questão anterior, foi o fato de um maior número de professoras
(3/8) ter agora apresentado o argumento da necessidade da formação
profissional e para a vida prática, do uso da língua no
di-a-dia.
“É.
Eu acho que tem... eu acho que tem a função prática
na vida deles. Eles vão precisar. Por que como a gente vê
uma pessoa que é analfabeta, ele fica dependente, né? Ele
fica dependente dos outros, né?”.
SP01:P15
Também é curioso destacar que, tais depoimentos foram apresentados
por professoras com formação em pedagogia e, mais por professoras
que atuavam na alfabetização. Isto nos surpreende visto
que, a questão pragmática e de profissionalização
estaria mais presente na realidade das docentes que atuavam no 2º
ano do 2º ciclo. Apenas uma professora do 2º ano do 2º
ciclo apresentou tal justificativa.
“(...) Deixa eu pensar.... outra coisa é porque você
precisa na sua vida. No seu dia-a-dia, (...) E também pra crescer
na sua vida profissional”.
SP07:P05
Outra resposta
apresentada pelos professores foi a necessidade de o aluno dominar a língua
materna. Diante da questão feita às professoras, nenhuma
docente demonstrou ter a clareza de que, o aluno mesmo não tendo
domínio da norma de prestígio, domina a sua língua
materna. Parece-nos que “dominar” a língua materna
era sinônimo de dominar a gramática normativa.
“Ah!
Pra ser... pra ter o domínio da língua mãe, não
é? Pra eles também ter o domínio... Primeiro ter
o domínio da língua mãe. (...)”.
SP07:P05
Esta concepção
foi apresentada por duas docentes, uma de alfabetização
com formação em letras e, outra de 4ª série
com formação em pedagogia.
Apenas uma docente colocou ser dever da escola ensinar o português.
Contudo, esta não fez referência à língua culta.
Parece-nos que por tradição é dever da escolar ensinar
o português (disciplina) e não ensinar a língua culta.
Desta forma, podemos verificar que, em nosso pequeno universo, poucas
professoras consideravam a escola como a instituição que
deveria “vincular a língua padrão”. Mesmo tendo
as professoras demonstrado, em outros momentos, certa preocupação
em “corrigir” a língua do aluno, não nos pareceu
que as professoras relacionassem isto como sendo de responsabilidade da
escola.
Dificuldades
acerca do ensino e da aprendizagem de língua
Para entendermos
mais detalhadamente o trabalho pedagógico com a língua materna,
faz-se necessário examinar as representações que
o professor faz a respeito daquilo que dificulta a aprendizagem da variedade
de prestígio pelo aluno e quais são as ações
realizadas na sala de aula como estratégias de superação
dessas dificuldades.
Assim, perguntamos aos nossos sujeitos quais as causas/motivos que dificultavam
a aprendizagem da língua portuguesa pelos alunos e que estratégias
eram implementadas com o intuito de superar tais dificuldades.
Por que os
alunos têm dificuldade de aprender a variedade de prestígio?
Pudemos observar
que a justificativa mais freqüente foi a que apontava a “influência
dos pais e da comunidade” (5/8), como maior obstáculo para
apropriação da variedade prestigiada.
“Eu
acho que... que é a questão da audição que
ele vai aprender muito na escuta, né? Em casa. Mesmo os que aprendem
a falar certinho, direitinho, a língua padrão como a gente
chama, quando chega em casa e fica ouvindo a avó, a tia, à
própria comunidade falar aquilo ali ele continua a falar. Eu acho
que é a questão da escuta mesmo. As pessoas... não
sei de é falta de atenção. (...) Influenciam. (...)
Do mesmo jeito que em casa. Eles têm isso muito forte. O que eles
falam em casa...”.
SP01:43
Vejamos um outro Depoimento:
“... eu acho que é mais dificuldade. Eu acho que já
vem de casa mesmo, assim... eu acho que a falta de costume que eles têm
desde pequeno...”.
SL05:44
Por outro
lado, é interessante destacarmos que duas professoras afirmaram
que seus alunos “não” tinham dificuldades no aprendizado
da língua. Isto contraria todo o imaginário do senso comum
que vem sendo comprovado em pesquisas anteriores (Sampaio & Ferreiro,
1990; Soares, 1996; Morais, 1999) demonstravam que os índices de
reprovação estariam justamente baseados na atribuição
de uma dificuldade dos alunos se apropriarem da língua de prestígio.
Contudo, se realizarmos uma analise mais apurada das duas docentes em
pauta, podemos concluir que, mesmo afirmando não observarem dificuldades
nos alunos, as mestras argumentavam que os mesmos estariam predispostos
a se “contaminarem” com vícios:
“Olhe eu acho que eles não têm essa dificuldade não.
Por que veja só é... a casa deles, né? É onde
eles têm o primeiro contato, então logicamente se o pai dele
é... usa palavras que não tão de acordo com a norma
culta, ele também vai pegar esse tipo de vício, essas coisas,
certo?”.
SL04:P28
O que está
por trás do depoimento desta professora não parece ser simplesmente
a crença de que o aluno não tem dificuldade em se apropriar
da variedade de prestígio, mas, sim, o fato de aceitar que os alunos
possuiriam vícios adquiridos “na família e na comunidade”.
Outra professora, que declarou não observar dificuldades em seus
alunos, justificou que estes não necessitavam fazer uso desta variedade
(de prestígio), mas que, quando solicitados, tinham competência
para utilizar a “língua culta”:
“Eles
não têm necessidade da chamada língua de prestigio.
É questão de necessidade. Que eles... mas dificuldade de
se apropriar, se eu disser pra eles assim... se eu encaminhar a situação
didática dentro da sala de aula de forma que eles tenham que usar
a linguagem de prestigio, a linguagem padrão. (...) Não.
Eles não têm necessidade, eles não vivem em ambientes
que requeiram isso”.
SL03:P43,44
Isto nos
pareceu um pouco contraditório, pois como atuava em turmas do primeiro
ano do primeiro ciclo (alfabetização), nos questionamos
como estes alunos teriam competência para lidar com a variedade
de prestigio, se eles ainda não tinham se apropriado da leitura,
da escrita e desta variedade?
Vejamos mais um depoimento:
“(...) Mas, só que os meus meninos ainda também não
sabem nem falar direito. Assim... eles... direito que eu digo assim...
empregar o verbo, né? Eu... eu... vamos dizer ‘eu gostei’,
‘eu gosti’, entendeu? Quer dizer, aí não é
nem por conta de pai ou de mãe...”.
SL04:28
Diante deste
exemplo, podemos inferir que o fato dos alunos ainda estarem se apropriando
da fala levaria algumas professoras a afirmarem que seus alunos não
têm dificuldade no aprendizado da língua, porém não
deixariam de colocar que há a possibilidade de influência
dos pais no aprendizado da mesma.
Algumas mestras, ao focalizarem o “problema” na família,
na comunidade de origem do aluno, referiam-se não só às
variedades dialetais dos familiares e vizinhos, mas às dificuldades
de acesso a bens escritos e práticas de leitura e escrita. Podemos
observar, no depoimento abaixo, a explicitação de que a
dificuldade dos alunos se apropriarem da língua de prestigio estaria
não só na variedade lingüística de que são
portadores, mas num amálgama de fatores ligados à origem:
“Eu acho que é mais dificuldade, eu acho que já vem
de casa mesmo. Assim... eu acho que a falta de costume que eles têm
desde pequeno né? De leitura. Eles não têm acesso
a livros assim... nada disso, só tem na escola. São tantos
fatores. Tem o desinteresse mesmo, que por mais que os teóricos
falem aí, é muito grande o desinteresse. Falta de estimulo,
né? Da própria família que eles não tem. Então
quando chega na escola eles... (...) Com certeza. Porque geralmente eles
escrevem como falam”.
SL05:P44/46
Este tipo
de justificativa foi mencionada em sua maioria por professoras que atuavam
em turmas de alfabetização (3/5). Isto nos parece coerente,
uma vez que é nesta etapa de escolarização em que
se percebe mais claramente a influência da fala da comunidade no
aluno. Com relação à formação inicial,
os professores que mais se utilizaram de tal justificativa foram aqueles
com formação em letras (3/4).
Tal como aparece no depoimento acima, foi apontado pelas professoras a
falta de acesso a portadores de textos (revistas, jornais, livros) como
um dos fatores que dificultaria na aprendizagem da língua materna.
Porém, é interessante observar que esta justificativa ocorreu
apenas entre duas professoras (2/8). Acreditamos que isto demonstra algo
significativo, pois nos parece, que a falta de acesso a bens e práticas
com materiais escritos seria julgada como menos relevante para a aquisição
da variedade de prestígio, em comparação com a idéia
da influencia dos dialetos orais dos pais e da comunidade. O que predominaria,
ainda, seria a crença na força da variedade que o aluno
traz de casa e de sua comunidade.
Por outro lado, as professoras também argumentaram que a falta
de interesse dos alunos era um dificultador na aprendizagem (2/8). Mesmo
não sendo algo muito freqüente, é importante destacarmos
este fato, pois, nesta categoria, mais uma vez, se colocava o aluno como
responsável por sua não-aprendizagem e, não se questionava
o papel da instituição escolar.
Enfim, se observarmos os depoimentos apresentados, todos culpabilizam
o a comunidade, a família e o próprio aluno como responsáveis
pelas dificuldades de aprendizagem da língua de prestígio.
Quanto à formação inicial e à série
de atuação das professoras, não verificamos diferenças.
É inegável que o capital cultural (Bourdieu, 1996) herdado
pelos indivíduos explica, de certa forma, o fracasso dos alunos
de camadas populares. Porém, não podemos deixar de perceber
o papel da escola como agente de transformação. O professor,
em nosso entendimento, não pode se eximir e eximir a escola no
desenvolvimento desta finalidade.
O que se
realiza em sala de aula para ajudar o aluno a se apropriar da norma de
prestígio
Ao analisarmos
as respostas a essa questão, uma das estratégias mais mencionadas
foi à “busca de desenvolver” o hábito da leitura
em sala de aula (4/8). Porém, isto foi mais expressivo entre as
docentes do 2º ano do 2º ciclo, indistintamente do curso de
formação inicial (pedagogia ou letras).
Entre as docentes que atuavam em turmas de alfabetização,
a estratégia mais mencionada para o ensino da variante de prestígio
seria o de a professora “falar corretamente” diante do aluno
(4/4). As professoras procuravam “falar corretamente” e solicitar,
em alguns casos, que estes repetissem a “maneira concreta”.
“Eu falo direito, eu falo correto, a forma adequada pra que eles
comecem a perceber e eu digo: ‘não é assim que a gente
diz não’. Veja como as outras pessoas falam. Eu vejo por
aí. (...)”.
SP02:42
“Eu
repito pra ele, peço pra ele repetir bem devagarzinho a palavrinha,
certo? Vamos lá! De O-L-Í-M-P-I-A... aí depois eu
digo: agora diga. Entendeu?(...)”.
SL04:P34
Verificamos
já uma preocupação em não dizer que a expressão
do aluno está “errada”, percebemos a sensibilidade
do professor em procurar não discriminar, porém corrigir,
na expectativa de levar o aluno a substituir uma variedade dialetal por
outra, sem levar à tomada de consciência.
O que podemos inferir com relação a esta justificativa é
que ainda há resquício de uma concepção pedagógica
que acredita na aprendizagem por repetição. Não queremos
dizer que isto seja consciente e planejado, mas, sim, que muitas das práticas
escolares são reflexo das experiências das professoras enquanto
alunas. A teoria da construção dos saberes (Chartier, 1998),
nos permite entender que, mesmo tendo conscientemente abraçado
determinada teoria pedagógica, muitas das ações em
sala de aula são guiadas inconscientemente pelas próprias
práticas e experiências dos docentes, enquanto estudantes.
Quanto à formação inicial, não observamos
distinção nas respostas dadas por quem tinha cursado letras
ou pedagogia.
A natureza em si das atividades desenvolvidas não era explicitada
pelas professoras, sendo mencionado apenas os recursos utilizados como:
poesia, música, folclore, sem definir especificamente o que o aluno
era provocado a fazer, que tipo de atividade cognitiva era levado a assumir
com relação à língua. O ensino descrito não
era explicito quanto à distinção entre as diferentes
variedades lingüísticas, ao contrário do que verificamos
no trabalho de Franchi (1984), em que os alunos eram levados a tomar consciência
deste fenômeno da língua.
A categoria mais expressiva nas respostas a esta questão foi aquela
em que as professoras informavam utilizar “materiais diversos”
(6/8). Os mais diversos “materiais” (gêneros ou suportes)
foram citados. Trabalhos com poesia, música, histórias infantis
(literatura), textos de uma maneira em geral. Também foi mencionado
o uso de livros, revistas, jornais e gibis. Vejamos alguns depoimentos:
“(...)
Por isso eu trabalho sempre com música, entendeu? Com poesia. Agora
mesmo que a gente tá na época do folclore, a gente vai trabalhar
parlendas, trava-línguas, tudo isso que é pra eles também
começarem a ter, né?”
SL04:P34
“Pronto. Porque tudo que eu faço com eles... eu trabalho
muito com texto, sabe? Tudo que... qualquer coisa que ele leve pra eles...
qualquer assunto que eu vou dar é texto (...)”.
SP01:P58
Entre as
professoras de alfabetização, todas afirmavam usar “materiais
diversificados”. Isto talvez indique que nesta etapa de escolarização,
as professoras buscariam realizar um ensino “mais atraente e lúdico”.
Como podemos observar, as professoras informavam trabalhar com textos,
porém não colocavam de forma clara como se dava este trabalho.
Elas atuavam em turmas de alfabetização e assim, o trabalho
de produção textual, parece-nos que ocorria coletivamente,
porém em nenhum momento houve menção a reelaboração
da produção textual. Parece-nos que o trabalho com textos,
neste aspecto, ocorria quando surgia, de maneira espontânea, na
aula. Quando o texto permitia tratar do assunto. Parece que não
havia um trabalho sistemático e/ou planejado.
Verificamos que apenas duas professoras informaram ter preocupação
de aproveitar oportunidades, para trabalhar dentro de um contexto, procurando
ajudar os alunos e adequar a linguagem ao contexto.
“Começa por aí. Começo a estabelecer as diferenças
assim: que tipo de linguagem é apropriado pra cada lugar”.
SP07:P51
“É.
Sempre que a gente tem oportunidade. Agora mesmo a gente tá fazendo
o correio da amizade e esse tema, essa carta tem permitido a gente fazer
esse trabalho, não é? Como a gente deve tratar uma pessoa
amiga e sempre que aparece. Não tem uma coisa programada não.
Viu Dilian!”.
SP08:P40
Isto nos
pareceu bastante positivo, pois indicava a sensibilidade para a questão
da adequação e, assim, de desenvolver a competência
de uso da linguagem em seus diversos contextos, isto é, a competência
comunicativa, (Travaglia, 1996). Porém, este fato só foi
observado em professoras com formação em Pedagogia e que
atuavam no 2º ano do 2º ciclo.
Apenas uma professora informou realizar produção de textos
para ajudar os alunos a se apropriarem da norma de prestígio. Esta
também declarou se utilizar da leitura, assim, seu trabalho era
baseado na leitura e produção de texto.
Ela não nos mencionou, no entanto se fazia revisão, reelaboração
e/ou reescrita dos textos.
Acreditamos que a simples produção textual não garante
a apropriação da variedade de prestígio. É
necessário, como nos diz Morais (1999), apresentar bons modelos
(isto pode ser garantido através da leitura de bons textos), porém
ainda é mais relevante garantir ao aluno a oportunidade de refletir
sobre os recursos lingüísticos presentes naqueles modelos
e em seus próprios textos de autoria, nas ocasiões de reelaboração
textual.
Uma das estratégias utilizadas que nos chamou atenção
foi o uso do dicionário. Mesmo tendo sido mencionada por apenas
uma professora, é interessante destacar, pois é o dicionário
um instrumento, com maior reconhecimento social, que veicula a norma ortográfica
e, conseqüentemente, a variedade de prestígio.
“Dicionário,
trabalho, deixa eu ver mais... dicionário, ortografia... é...”.
SL05:P60.
Uma outra
estratégia mencionada por apenas uma docente foi o de realizar
exercícios de ortografia. Ao contrário do que mostraram
pesquisas anteriores (Morais, 1999), a realização de atividades
de ortografia nas séries iniciais foi pouquíssimo mencionada.
“É, com exercícios! (...) De ortografia, é...
tu queres que eu diga o quê os tipos de exercício? (...)
Às vezes coloco um com outro, pra corrigir...”.
SL05:51,52,53
A professora
em pauta atuava no 2º ano do 2º ciclo e tinha formação
em letras. Comparando com que o que verificamos anteriormente, parece-nos
que os professores com formação em letras estavam mais preocupados
com os aspectos formais da língua, não demonstrando, de
certa forma, priorizar as situações e/ou os contextos de
produção de linguagem, ao ensinar.
De certa forma, o investimento em ortografia, revelava uma preocupação
maior com a correção da notação escrita, e
não com o domínio da variedade de prestígio, em sentido
mais amplo. O fato de a professora ter como justificativa para o ensino
da norma de prestígio, o trabalho com ortografia, sugere que, para
ela, apropriar-se da norma de prestígio seria escrever ortograficamente.
Se somarmos, a esta professora, a docente que informou utilizar o dicionário.
Podemos observar que ambas pareciam pensar que o aluno que escreve ortograficamente
teria se apropriado da variedade de prestígio. Talvez estas docentes
a tomar como sinônimos “escrever ortograficamente” e
ter “domínio da variedade de prestígio”.
Diante do quadro descrito, podemos concluir que os professores vinham
se utilizando de variadas estratégias na tentativa de desenvolver
um ensino que contemplasse as questões mais atuais, ou seja, as
prescrições dos textos do saber. Porém, utilizar
“recursos variados” , como analisamos, não significa
inovação pedagógica e muito menos um tratamento explícito
da variação lingüística.
Considerações
Finais
Ao final
do nosso trabalho pudemos conhecer melhor aquilo que permeia o trabalho
docente no que se refere ao ensino de língua e, sobretudo, no que
corresponde a questão da variedade lingüística.
Sabemos que o trabalho pedagógico é algo complexo e que,
explicá-lo requer um estudo multidisciplinar. Porém, nosso
objetivo maior foi apreender aspectos ligados a concepções
docentes que norteiam seu trabalho didático. Portando, acreditamos
fornecer algumas respostas sobre aquilo em que acredita (concepções)
e o que faz (prática) o professor em sala de aula.
A analise que realizamos evidenciou que os objetivos determinados pelas
professoras para o ensino de língua portuguesa não levavam
em consideração a questão da variedade lingüística.
As docentes estavam mais preocupadas, em alguns momentos em garantir a
“alfabetização” das crianças. Porém,
é curioso observar que dentro do processo de alfabetização
estas não se preocupassem em considerar tal questão, uma
vez que é algo relevante neste momento. Quando o processo de alfabetização
já estava garantido, ou seja, nos 2º anos do 2º ciclo
o objetivo maior das docentes era formar o aluno leitor e produtor de
texto. Como mostramos anteriormente apenas uma mestra mencionou desenvolver
a língua culta. Com isto, podemos verificar que pouco o professor
tem considerado a variedade lingüística. O que se configura
como objetivo maior para o ensino de língua portuguesa na escola
entre os professores das séries inicias, assim como nos mostrou
Morais (1999), é a formação do leitor e produtor
de texto.
Considerando que o objetivo para o ensino de língua na escola apresentado
pelas professoras seja a formação do leitor e produtor de
texto “maduro”, é surpreendentemente que estas não
façam menção ao conceito de competência comunicativa,
nem a idéia de adequação. Isto vem reafirmar mais
uma vez a pouca consideração dada a questão da variedade
lingüística no desenvolvimento das atividades de língua
na escola.
Sobre as dificuldades dos alunos verificamos que o problema maior, apresentado
pelas professoras, estava no aluno e/ou na sua família e comunidade.
Isto nos leva a entender que mesmo não tendo com objetivo o desenvolvimento
da língua de prestígio, o fato de o aluno ter dificuldade
no aprendizado de língua se devesse a sua variedade lingüística.
Ou seja, a escola não seria responsável pelo aprendizado
de outras variedades lingüísticas? Por outro lado, as estratégias
de superação das dificuldades do aluno no aprendizado de
língua, demonstraram que ainda é forte a idéia de
uma língua “correta” que deva ser seguida, sem contudo,
se considerar o conceito de competência comunicativa, nem a noção
de adequação. Parece prevalecer, mesmo que inconscientemente,
a idéia de uma língua única e hegemônica.
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