Priscila Candeloro Herminio – Pedagogia,
FE, UNICAMP;
Fernanda de Freitas Gonçalves – Ciências Sociais, IFCH,
UNICAMP;
Ana Caldas Lewinsohn – Artes Cênicas, IA, UNICAMP;
Eduardo Carlos Pereira Brasil – Artes Cênicas, IA, UNICAMP;
Paula Vanina Cencig – Ciências Sociais, IFCH, UNICAMP;
Patricia Guerrero – doutorado em Educação, UFSC;
Simone da Silva Aranha – mestrado em Multimeios, IA, UNICAMP.
Apresentação
“Interessante como pessoas diferentes se juntam
para fazer uma mesma coisa!”
A necessidade de nos apresentarmos nessa comunicação
nos remete a situações já vividas em alguns dos primeiros
encontros que tivemos com grupos de educadores com os quais desenvolvemos
os nossos projetos. Encontros em que a presença do grupo despertou
curiosidade no que se refere a sua formação. Muitas perguntas
foram a nós dirigidas no sentido de compreenderem como foi que
tudo começou...
“Mas vocês já eram amigas antes? Como vocês se
conheceram? Qual a formação de vocês? Onde é
que estão as outras Marias? Por que é que elas não
vieram? Vocês se apresentam juntas também?”.
Diante destas e de tantas outras perguntas, demos respostas, saciamos
as curiosidades das pessoas e, ao mesmo tempo, ficamos com a seguinte
pergunta: porque as pessoas se interessam tanto pela gênese do nosso
grupo?
Ainda que não tivéssemos a dimensão do significado
daquelas questões para os educadores, tínhamos que lembrar
que a escola, em especial a escola pública (cuja inserção
se dá por concurso e não por admissão segundo critérios
que visem encontrar profissionais com o perfil da escola, como é
o caso das instituições particulares), é constituída
por pessoas muito diferentes. Além disso, costuma ser uma grande
busca a formação de um grupo, com uma identidade definida,
a partir de um projeto de trabalho...
Colocamos estas questões assim, de início, porque sentimos,
durante os mais diversos trabalhos que realizamos, que o modo como nos
organizamos, o modo como nos referimos uns aos outros, como estabelecemos
as nossas relações de trabalho e porque não dizer
também pessoais, provocaram um repensar sobre a forma como eles
mesmos estabeleciam essas relações.
O grupo Cinco Marias (o nome é uma alusão à brincadeira
das cinco pedrinhas) é, sim, formado por pessoas que já
se conheciam. Ou mais, ou menos, mas que se conheciam: Ana, Patrícia,
Paula, Priscila e Simone, o início do grupo. Uma atriz e arte-educadora,
uma pedagoga, três cientistas sociais, sendo que uma mestre em antropologia
e doutoranda em educação, e outra cientista social mestranda
em multimeios. De algum modo, os trabalhos que já realizávamos
individualmente, eram trilhados no diálogo com a educação,
a arte e a cultura popular: a pesquisa de um teatro popular e de rua;
das histórias e tradições do povo canoeiro do Vale
do Jequitinhonha; o aprendizado e o ensinamento de ritmos e danças
populares brasileiras; o trabalho com memória e tradição
nas casinhas de cultura do Vale do Jequitinhonha; o trabalho na escola
e a procura do lugar da cultura da criança na educação
formal; o trabalho com arte, na rua, com meninos em situação
de risco; a pesquisa com memórias de mulheres migrantes moradoras
da periferia de Campinas: são alguns exemplos nossos de trabalho.
Com essas formações, múltiplas, e desejando dar continuidade
aos nossos estudos sobre educação, arte e cultura popular,
foi que ingressamos no curso “A arte do Brincante para educadores”
, organizado tendo como base a cultura popular, a cultura brasileira e
a cultura da criança: um tempo e um espaço em que vivemos
muitas experiências juntas e amadurecemos nossa proposta de grupo
e trabalho.
Depois vieram mais uma “Maria”, a Fernanda e um “João”,
o Eduardo: ambos com a mesma formação no Brincante. Apesar
de umas pedrinhas a mais nesta nossa brincadeira, mantivemos o nome do
grupo. Mais uma cientista social/educadora e um ator/arte-educador que
já trilhavam caminhos afins: a pesquisa com as figureiras de Taubaté,
o trabalho com educação de jovens e adultos, a pesquisa
de um teatro popular e de rua.
Foram poucas as vezes em que os 7 integrantes do grupo ministraram uma
oficina juntos, daí o fato dos educadores perguntarem das outras
“Marias” e mais recentemente do “João”.
Em muitos momentos nos divertimos com essas perguntas porque, brincando,
davam a entender que era meio “lendária” a existência
de outras pessoas no grupo. Da mesma maneira muitas vezes fomos surpreendidas
pelas perguntas a respeito de apresentações e CD´s.
Talvez seja interessante ressaltar que os educadores constituem um grupo
bastante assediado também por comerciantes de “espetáculos”
teatrais, “livrinhos”, CD´s, entre outros produtos,
não raras vezes produções realizadas com baixo valor
artístico e ausentes de referências (história, origem,
autoria). Deste modo, não podemos desconsiderar que algumas pessoas
tiveram essa expectativa em relação ao nosso trabalho, ou
seja, de que o levássemos gravado sob a forma de um produto que
pudessem adquirir e reproduzir como suporte para o trabalho em sala de
aula.
Acreditamos no potencial da experiência que é o brincar,
tanto como forma de prazer, de alegria, de conexão com uma infância
já vivida e a reconstrução dela, quanto na capacidade
do corpo de registrar essas experiências. Além de entregarmos
os registros das atividades propostas, incentivamos os educadores a realizarem
outras formas de registro, fossem eles fotográficos, em áudio,
em vídeo, em diário, em desenhos.
Não nos apresentamos e nem temos CD´s gravados... Mas afinal
de contas, o que fazem um “João” e tantas “Marias”
juntas?
Junto às Marias e ao João vem sempre uma mala repleta de
brincadeiras, brinquedos, cantigas, versos, toques, danças. Elementos
da cultura brasileira que viemos experienciando desde muito cedo e que
compõem a nossa cultura lúdica e algumas de nossas referências
em arte; Elementos mais ou menos presentes que a memória faz recordar
e transformar; Elementos recolhidos hoje, a partir das relações
que estabelecemos com o mundo que nos cerca e do qual fazemos parte; Elementos
da cultura brasileira que apaixonadamente perseguimos e insistimos em
aprender.
Não temos a pretensão de unicamente ensinar o que lembramos,
o que muito aprendemos e o que viemos aprendendo. Buscamos o encontro
com outras pessoas e com o repertório que trazem consigo. Apostamos
nesse encontro, de pessoas, de referências culturais, de concepções
de educação como a maior força para a recriação
de novos paradigmas para o humano. É apostando na troca, no diálogo,
que temos construído a base de nossas propostas de formação
de educadores. O ponto de partida tem sido rememorar suas histórias
de infância para daí compreenderem qual o lugar da criança
que foram no adulto-educador que são hoje.
Os projetos
Dos trabalhos que realizamos juntos, escolhemos compartilhar
duas experiências que tivemos com profissionais da educação
infantil da rede municipal de Campinas no ano de 2004.
A primeira delas, o projeto Brincarte, como um dos cursos de formação
continuada oferecidos pelo CEFORMA – Centro de Formação
Continuada para Professores da Rede Municipal de Campinas. Foram duas
turmas, uma no período da manhã e outra no período
da tarde, cada uma delas com cerca de 25 educadores (monitores, professores
de educação infantil e professores de ensino fundamental),
que trabalharam conosco por quatro meses.
A segunda, uma proposta de oficinas nos espaços das formações
continuadas das escolas de educação infantil. A SME, em
parceria com o FNDE e a UNESP, propôs um curso de formação
em Literatura Infantil para educadores. Este curso aconteceu em três
frentes: eventos, aulas semanais e atividades nas FC´s. Atuamos
nesta última frente, na medida em que as escolas se organizavam
e solicitavam o trabalho com o grupo.Por esse projeto realizamos oficinas
em aproximadamente 60 escolas da Rede de Campinas.
Desse modo, no mesmo ano, realizamos propostas de trabalho bastante distintas:
a primeira tendo como premissa um processo contínuo ainda que dentro
de um tempo determinado, e outra extremamente pontual.
No primeiro semestre: o Brincarte.
Lugar de Criança
Lugar de criança
É na criança
E nas crianças de todas
as idades
Lugar de “adulto”
É na cabeça dos adultos
Existir a criança no adulto
É fruto do amor
Existir o adulto na criança
É ato de opressão
E haver só adulto
No adulto
É a suprema adulteração do ser.
Petrus
Para cada criança, brincar em plenitude é
encontrar um caminho de possibilidades, de descobertas sobre si mesmo
e sobre as diversas formas de se relacionar com os outros. Quanto mais
amplas e livres forem as experiências dos meninos e meninas com
o brincar, mais rica, variada e diferenciada será a sua compreensão
do mundo e a sua aquisição de conhecimento.
A criança brincando livremente explora o mundo ao seu redor, comunica
sentimentos, idéias, fantasias, intercambiando o real e o imaginário.
Brincando, vive criativamente o mundo.
Para o adulto, o diálogo com a cultura infantil representa a relação
com aspectos de uma história que ele já viveu e que passa
agora a reconstruir, colocando-se novamente em contato com o universo
do brinquedo e com todo esse estado de liberdade e criação
que ele proporciona.
Para os educadores, a cultura infantil poderá se tornar a principal
referência na construção de processos pedagógicos
que sejam carregados de sentidos para as crianças. O exercício
de observar e problematizar a produção de cultura das crianças
cria condições para que repensem o seu fazer pedagógico,
no sentido de estabelecerem com elas um diálogo mais verdadeiro,
uma vez que este se constitui um dos maiores desafios da educação.
Partindo da cultura infantil para as experiências com outras linguagens,
acreditamos que os educadores poderão recuperar, ou ainda, ampliar,
suas possibilidades de expressão e comunicação. Acordando
seus sentidos e compreendendo as mais diferentes possibilidades de comunicação
com as crianças, estarão resgatando, na verdade, capacidades
suas, adormecidas por uma educação que não as consideraram
ou valorizaram.
Sendo assim, o projeto valorizou o encontro de educadores e a troca de
experiências entre eles, entre todos nós, na verdade, uma
vez que apostamos na construção coletiva de conhecimento.
Tal construção se deu a partir da memória e da história
de cada um, dos referenciais que traziam de brinquedo, brincadeira, ou
seja, a partir de sua cultura lúdica.
As atividades foram organizadas a partir da proposta do trabalho com a
memória – com a “re-descoberta” da prática
do brincar; da possibilidade de um crescimento pessoal e social através
do fazer artístico; da reconstrução de tradições
e informações culturais; da construção de
brinquedos a partir de materiais que estão facilmente a seu alcance,
inclusive a natureza, e do fomento à reflexão sobre o significado
da brincadeira na vida da criança.
No segundo semestre: o trabalho nas FC´s.
“Nossa, que surpresa! Surpresa maior foi a M. Eu
não sabia que você sambava desse jeito!”
As formações continuadas são momentos
em que toda a equipe das escolas de educação infantil se
reúne e, portanto, nesse dia não há trabalho com
as crianças, para refletir sobre as questões da instituição.
A decisão do que será posto à reflexão e de
como isso acontecerá fica, na maioria das vezes, a cargo de cada
escola. Assim como ficou a cargo de todas as instituições
de educação infantil da SME a escolha por trabalharem ou
não com o Cinco Marias.
A proposta de trabalho que a SME nos apresentou, assim como a outros profissionais
das áreas de arte-educação, foi a de realizarmos
oficinas (uma, duas, ou três, no máximo, conforme solicitação
das escolas) nas FC´s, incumbidos de “amolecer corpos e desconstruir
resistências”.
Como as nossas atividades estariam inseridas dentro de um projeto maior,
ou seja, estariam integrando a frente Atividades em FC´s do curso
de Literatura Infantil para os educadores da rede, trabalharíamos
dentro da perspectiva da sensibilização de todos os profissionais
da escola para as questões relativas à arte e à cultura
da criança, de modo que esse curso pudesse ter maiores repercussões
e ressonâncias nas escolas dos professores que o estariam fazendo.
Segundo a SME, estaríamos criando maiores e melhores condições
de acolhimento das idéias veiculadas pelo curso.
Aceitamos a proposta e o desafio. Um grande desafio, que imediatamente
passamos a ponderar, a reconhecer nele os seus limites. Sensibilizar os
educadores para as questões relativas à cultura da criança
e à arte, para nós sempre veio associado à idéia
de processo contínuo, considerando inclusive a necessidade de tempo
e condições para conhecer o quanto é que esses educadores
já se encontram sensibilizados a elas. Como tecer um diálogo
que se propõe a ser tão intenso em tão pouco tempo?
Colocamos essas questões como forma de reconhecer os limites do
que nos foi proposto e que aceitamos realizar.
Sendo assim, chegávamos às escolas com uma proposta de trabalho,
com um repertório de rodas de verso, brincadeiras de roda, de pega,
de mão, de barbante, de brinquedos a serem construídos.A
esse repertório cabia convidar todos ao livre-brincar, de modo
que pudessem experienciar a brincadeira de forma espontânea, encontrando
nesse movimento o prazer, a alegria. O estarem juntos, de mãos
dadas, olhando-se nos olhos, tocando-se, convidando o outro a entrar na
roda, a ser o centro das atenções, abraçando-se,
correndo, dançando, cantando, criando suas próprias estratégias
para chegarem ao final de uma brincadeira: são todos movimentos
que acabam por despertar memórias nos participantes, que passam
a trazer para a roda suas histórias de infância, suas brincadeiras,
seus brinquedos, suas referências culturais...
“Olha lá, vocês agitaram o pessoal!”
Organizávamos dinâmicas por meio das quais
as pessoas pudessem falar dos seus lugares de origem e de onde foi que
passaram a infância... Quando trazíamos uma brincadeira para
a roda, sempre cuidávamos para que ela viesse com as suas referências:
essa brincadeira a Ana, das “Marias", aprendeu com crianças
de Cajueiro Novo, MA... Essa outra quem nos ensinou foi a Lydia Hortélio,
em um curso que fizemos... Essa de roda a Priscila aprendeu com as crianças
de Uarini, AM... Essa aprendemos com a Professora Carmem em uma oficina
que demos na EMEI em que ela trabalha...
Esse cuidado com as referências das brincadeiras sempre tivemos,
inclusive como um valor a ser com elas compartilhado. Quando ensinamos
uma brincadeira, perguntamos se alguém a conhece e são muitas
as vezes em que a resposta é afirmativa e que nos chegam versões
distintas dela, vindas de regiões diferentes do Brasil: do interior
de São Paulo, do Paraná, de Minas Gerais, da Bahia, de Pernambuco.
Nestes momentos, as pessoas acabam contando um pouquinho de sua história,
se não espontaneamente, motivadas por nós, que as incentivamos
inclusive a puxar a brincadeira, na versão que elas conhecem. O
movimento de se lembrarem de uma brincadeira que faziam na infância
se tornou, na maioria das vezes, uma festa e se constituiu um dos momentos
de maior intensidade do trabalho. Segue abaixo alguns exemplos destes
momentos:
“Eu sou rica, rica, rica, de marré, marré,
marré...
Eu sou rica, rica, rica, de marré desci...”
¬_Eu canto igual ao que você cantou, só
que quando a rica for dizer o nome da filha da pobre que ela quer, a mãe
pobre responde: Essa filha eu não dou, de marré, marré,
marré, essa filha eu não dou de marré desci. Quando
você terminar de tentar comprar as filhas, a mãe pobre diz:
Minhas filhas eu não dou, nem por ouro nem por prata, nem por sangue
de lagarta.
_E você brincava desde criança...
_Desde criança, até os doze anos. Eu sou do Paraná,
mas eu sou filha de índio. O meu avô era escravo e a minha
avó era índia.
_E essa brincadeira você aprendeu lá no Paraná, então?
_Lá no Paraná, com o meu pai, porque eles brincavam. Diz
que na tribo lá eles brincavam... que o meu vô ficava catando
lenha lá na senzala, né, e a minha vó... e a minha
vó saiu pra pegar lenha e eles pegaram ela de cachorro... Aí
misturou e a gente sabia todas essas brincadeiras de roda...
_ E você se lembra de outras brincadeiras também?
Lembro, lembro de muitas brincadeiras... Eu vou conversar com a minha
mãe, que a minha mãe que lembra mais, assim...
“...as minhas brincadeiras eu aprendi tudo na roça...”
_E o que eu vou ensinar agora é uma brincadeirinha
assim que eu tinha no tempo meu de infância, da roça. Não
é da cidade não.”
_Mas roça de onde?
_Do estado de São Paulo. É Marília. E eu aprendi
tudo da... minha infância eu passei naquela região lá,
eu não tive outra região. Meus pais eram baiano e mineiro
e aí eu aprendi tudo do sítio, eu criei no sítio.
Aí, a gente... é... eu... as minhas brincadeiras eu aprendi
tudo na roça, não tem nada da cidade assim. Na cidade eu
trago pra minhas crianças que eu trabalho com elas assim coisas
que a gente aprende uma com a outra, troca de experiência mesmo,
mas um pouco também de dentro de mim, da criança que eu
sou, eu acredito.
1,2,3,4
cara de macaco
quem saiu foi tu
cara de tatu .
_Aí, aquele que saiu né, vai passando pro
outro. Aquele que saiu vai pra dentro da roda, vai juntando outra roda
dentro daquela roda grande que a gente está fazendo. E vai... Começa
os de dentro também a brincar...
“Cabritinho caburé
Qual é que se quer
O de cima
Ou de baixo”
_Essa brincadeira é pra criança pequenininha!
Um objeto na mão, numa das mãos, fecha as mãos e
põe uma em cima e uma em baixo. E a mão que a criança
acertar é a brincadeira realizada.
A ha ha minha machadinha
A ha ha minha machadinha
Quem te pôs a mão sabendo que és minha
Quem te pôs a mão sabendo que és minha
Se és minha eu também sou sua
Se és minha eu também sou sua
Pula Ana Maria para o meio da rua
Pula Ana Maria para o meio da rua
_Como começa essa brincadeira? É uma roda
grande...
_É uma roda grande com uma pessoa do lado de fora.
_Uma só...
_...que vai estar respondendo a segunda música, né? É
a segunda que tá respondendo e tá chamando uma da roda grande,
que vai se estendendo até que a roda grande se torne uma pessoa
só.
_Então ela que responde: “Sabendo que és minha eu
também...” Aí ela chama alguém para pular...
Isto, ela vai selecionando, ela vai escolhendo, como a do “Neném
tu vai” ...
_E essa brincadeira você brincava quando era criança...?
Brincava quando era criança na rua com os meus irmãos, primos,
amigos... crianças de todas as idades...
“Nossa, eu também cantava essa música,
mas não brincava! Eu não me lembro de brincar, só
de cantar mesmo, de mãos dadas, em roda!”, “Eu brincava,
mas de um jeito diferente!”, “Quem me ensinou eu não
lembro, só lembro que eu brincava com os meus irmãos e os
meus primos!”. Frases como essas são reveladoras de como
é que as pessoas, a partir dos fragmentos das memórias de
outras, vão reconstruindo as suas próprias memórias
e lançando também novos fragmentos nesse processo.
Ressaltamos a importância de viverem coletivamente essas experiências
no espaço da escola, uma vez que nele observamos a busca por um
grupo, com uma identidade, organizado em torno de um projeto de trabalho,
projeto esse que se fundamenta na cultura da criança. Reconstruir
a sua infância, para cada profissional de educação,
tem, ou poderá ter, uma profunda ligação com a infância
que se quer garantir às crianças no espaço da escola.
“Não tem importância que a gente saiba,
é bom porque a gente vai lembrando.
O que a gente fizer vai ser muito legal!”
Ao mesmo tempo em que surgiram falas acolhedoras desse processo que nos
propomos a detonar, surgiram falas que procuraram orientar o nosso trabalho
por outros caminhos... “Ai, está bom! Chega!” Frases
como essas ouvimos em meio a algumas brincadeiras de roda, consideradas
muito repetitivas por alguns educadores.
“Vocês podiam diminuir o tempo da brincadeira pra que a gente
possa aprender mais!” Observamos em situações como
essas uma maior preocupação, por parte dos educadores, em
aprenderem um repertório que pudesse depois ser diretamente ensinado
às crianças, o que vai ao encontro da expectativa de estarmos
lá para ensinar, numa via de mão única. Para essas
pessoas, contarem suas histórias, reconstruírem suas memórias
e ouvirem histórias de outras pessoas pareceu um pouco, na verdade,
perda de tempo. Foi muito comum o fato de esses mesmos educadores, ao
manifestarem o desejo de que a brincadeira logo acabasse, manifestassem
a preocupação com o registro delas. “Como é
que a gente vai guardar essas brincadeiras todas?” Compartilhamos
com os educadores a reflexão de que as crianças quando estão
brincando estão inteiras e vivem a repetição como
um elemento da própria brincadeira, que também é
uma forma de aprendê-las, de a terem registrada como memória
corporal. Alguns desses educadores respondiam timidamente: “É,
eu nunca tinha pensado nisso!!!”
“Mas eu não posso dar uma coisa dessas para
as crianças, porque elas podem engolir! Como é que a gente
faz então?!”
Esta frase é de uma orientadora pedagógica
e ela está se referindo a um apito que construímos com um
fruto de uma árvore. Ele seco, fica só uma casquinha bem
firme, com uma semente bem dura e redonda dentro. Se tirarmos um pedacinho
da casca em sua parte superior e assoprarmos, sai um som muito bonito,
que lembra o canto de um pássaro.
Sempre que construímos algo, seja um apito ou qualquer outro brinquedo,
atentamos para o fato de estarmos transformando materiais e, a partir
deles, criando algo novo, portador de novos símbolos e capaz de
despertar novas imagens, algo que as crianças fazem tão
bem. Além do mais, atentamos, neste caso, para o fato de a natureza
nos oferecer elementos para a construção de brinquedos.
Ainda assim, a OP questionou o fato de terem aprendido a construir aquele
apito que considera perigoso para as crianças, já que podem
engoli-lo. Esse fato revela a sua compreensão de que tudo o que
vier a aprender na oficina pode e deve ser transferível às
crianças.
A nossa conversa, nesse e em outros casos, prosseguiu no sentido de ampliar
a compreensão das educadoras de que antes de querer ensinar para
as crianças o que estavam “aprendendo” com a gente,
pudessem captar o sentido real de estarmos ali, que era o de proporcionar
um livre brincar, espontâneo (dentro do possível) e intenso,
com muita entrega, para que dessa forma se aproximassem da experiência
do brincar que as crianças vivem, que se aproximassem de sua própria
infância e cultura lúdica.
Nesse dia, uma das monitoras virou-se e disse à OP: “Eu não
disse, M., que pra brincar com as crianças a gente antes tem que
brincar!”
E a OP finalizou assim: “É, eu tenho que reconhecer! Tiro
o meu chapéu!”
Eu sinto que as crianças hoje não sabem
mais brincar!
Esta frase foi dita por uma educadora quando, em um dia
de trabalho, organizados em pequenos grupos, trocávamos experiências
sobre o brincar: experiências nossas quando crianças, experiências
das crianças com quem trabalhamos, até mesmo experiências
outras captadas por nossos olhares...
Esta não foi a primeira vez que nos encontramos com tal afirmação,
aliás, ela tem sido uma constante em nossos trabalhos. Vale ressaltar
que ao aparecer recebe por parte das demais educadoras bastante acolhimento.
Nosso movimento tem sido sugerir a troca desse ponto de exclamação
por um ponto de interrogação. (...)As crianças hoje
não sabem mais brincar?
“Então, onde estão a inquietação,
o questionamento e o vazio, se a infância já foi explicada
pelos nossos saberes, submetida por nossas práticas e capturada
por nossas instituições, e se aquilo que ainda não
foi explicado ou submetido já está medido e assinalado segundo
os critérios metódicos de nossa vontade de saber e de nossa
vontade de poder?”
(LARROSA, 2003: 185)
“É que hoje, quando elas brincam soltas,
sem a nossa interferência, só querem saber das brincadeiras
de luta. Daí, a gente tem que interferir para elas não se
machucarem! As brincadeiras de roda, por exemplo, que a gente fazia, elas
só brincam se a gente propõe. Você não vê
as crianças brincando espontaneamente de roda!”
“É que tem uma coisa que a gente não
pode desconsiderar que é a televisão, que são os
desenhos, que são os super-heróis...”
Encaminhamos as discussões no sentido de compreenderem
as brincadeiras realizadas pelas crianças e os brinquedos com os
quais brincam como elementos de uma cultura (na qual se inserem e que
ao mesmo tempo produzem), perguntando-nos sempre por suas dimensões
simbólicas, sobre as imagens que trazem e que são capazes
de despertar.
Acreditamos que o maior desafio que está colocado para nós
é o reconhecimento da existência de uma cultura da infância
e o diálogo nosso com ela. E no movimento desse diálogo,
perguntarmo-nos quais os significados das brincadeiras tradicionais para
as crianças e para nós, ou seja, qual o porquê da
escolha de trabalho com esse repertório. O que é que estamos
garantindo às crianças quando trabalhamos com esse universo
de brinquedos e brincadeiras? Será que, experienciando-os as crianças
experienciam a cultura brasileira? Será que estão em contato
com valores opostos à sociedade de consumo: a brincadeira e o brinquedo
que se perpetuam entre as crianças por seu valor intrínseco
e não por valores agregados a eles pela indústria e mercado,
a possibilidade do encontro, da constituição de grupo, de
ocupação de espaços públicos para brincar,
o dar as mãos, o cantar junto...?
Quando Lydia Hortélio nos fala da música tradicional da
infância, traz contribuições para essas nossas reflexões.
“Acho que a música tradicional da infância
é o que de mais sensível e mais essencial existe na cultura
de um povo. É o nascedouro da cultura brasileira. Nessas músicas
do disco ...podemos perceber heranças da cultura africana, ibérica
e indígena. Você percebe um substrato e reconhece que aquilo
é Brasil. Gosto de dizer: “Qual é o verso que queremos
cantar na roda das crianças do mundo?. O Brasil é para ser
cantado e dançado. Se não cantar e dançar, não
se sabe o Brasil...”(Pátio Educação Infantil,
Dez 2003/mar 2004, pg. 23).
“A gente falou que as crianças não
sabem mais brincar e que se a gente não propor as brincadeiras
tradicionais elas não brincam. Mas depois que eu comecei a fazer
o curso eu passei a prestar mais atenção nelas e vi que
elas conhecem muitas dessas brincadeiras. As crianças com quem
eu trabalho, por exemplo, adoram as brincadeiras de mão e eu vi
que elas conheciam algumas das que vocês nos ensinaram na semana
passada.”
“Na medida em que encarna o surgimento da alteridade,
a infância nunca é o que sabemos (é o outro dos nossos
saberes), mas, por outro lado, é portadora de uma verdade à
qual devemos nos colocar à disposição de escutar,
nunca é aquilo apreendido pelo nosso poder (é o outro que
não pode ser submetido), mas ao mesmo tempo requer nossa iniciativa;
nunca está no lugar que a ela reservamos (é o outro que
não pode ser abarcado), mas devemos abrir um lugar para recebê-la.
Isso é a experiência da criança como um outro: o encontro
de uma verdade que não aceita a medida do nosso saber, com uma
demanda de iniciativa que não aceita a medida do nosso poder, e
com uma exigência de hospitalidade que não aceita a medida
da nossa casa. A experiência da criança como um outro é
a atenção à presença enigmática da
infância...” (LARROSA, 2003: 187)
“Quando a gente era pequena, subia em árvore
e tudo! Hoje, se a gente vê um aluno subindo em árvore, já
fala: Desce daí, se não você cai!!! Por que é
que a gente faz isso!?”
“Acho que se deve estabelecer uma alfabetização
ao contrário. Nós temos de nos alfabetizar na cultura da
criança. É isso que ainda não está acontecendo,
com poucas exceções. A gente vê menino e quer ensinar.
Primeiramente, você precisa viver – conviver – com ele
e, nesse diálogo, nesse estar com ele”, as coisas vão
acontecendo. Agora, para que isso aconteça, é preciso que
esse professor tenha andado muito na sua própria consciência,
precisa estar em busca de si mesmo.” (HORTÉLIO, Pátio
Educação Infantil, Dez 2003/mar 2004, pg. 23).
“Quando criança, eu fui super-protegida e
isso me fez mal. Hoje eu faço de tudo para que os meus alunos sejam
o mais autônomos o possível.”