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A FRUSTRAÇÃO NA POESIA DE MANUEL BANDEIRA

Máxima de Oliveira Gonçalves - Colégio Pedro II /CPII

1. INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é mostrar como o poeta Manuel Bandeira abordou o tema da frustração em sua obra. Indiscutivelmente, esse sentimento de fracasso está associado a um fato marcante em sua vida pessoal: ter adoecido de tuberculose ainda muito jovem. Assim, a distância entre o que o poeta aspirava a alcançar e o que de fato consegue realizar, mediante o recolhimento forçado pela doença, desencadeia um sentimento de frustração que permeará toda sua poesia.
Como a morte tardasse a chegar, Bandeira busca novas saídas para sua existência, e, por conseqüência, para a sua poesia. A partir daí, desvincula-se dessa vertente romântica e passa a ver a vida não só como sofrimento, mas também como alegria.
Para tanto, Bandeira procura compensações para sua vida tão limitada pela doença, e a primeira grande compensação será a própria poesia. Ela se tornará veículo de sua realização.
Com efeito, essa poesia com poder de preencher sua existência esvaziada ganhará nova roupagem, e passará a tratar o tema da frustração com ironia. Esse tratamento irônico do trágico será uma segunda compensação.
A terceira e última compensação abordada será a tentativa de evasão, de recuperar o tempo da vida plena, a infância. E será por meio da poesia que Bandeira irá resgatar esse tempo de criança.

2. A FRUSTRAÇÃO NA POESIA DE MANUEL BANDEIRA

O poema “Epílogo” de Carnaval, tematiza os projetos frustrados do poeta. Com “Epílogo”, poema conclusivo, Bandeira faz um balanço de seu livro e, melancolicamente, constata que seu saldo é negativo, ou seja, não alcançou o que havia proposto fazer, evidenciando, portanto, a frustração:

Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um Carnaval todo subjetivo:
Um Carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior...

Quando o acabei ? a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta morta-cor
Da senilidade e da amargura...
? O meu Carnaval sem nenhuma alegria!...

A palavra “carnaval”, título do livro, sugere imediatamente uma imagem de alegria, no entanto o poeta termina seu livro negando essa imagem. Manuel Bandeira compara o seu Carnaval com o do compositor Schumann e, segundo ele, a diferença entre os dois é imensa, uma vez que o músico consegue alcançar seu objetivo compondo uma obra subjetiva cujo resultado associa-se plenamente à alegria, enquanto ele, ao voltar-se para o seu interior, obtém como produto somente tristeza e amargura.
O tema distribui-se em dois segmentos: no segmento A, há o desejo do poeta de compor um Carnaval tal como o de Schumann; no segmento B, encontra-se o resultado decepcionante de seu projeto.
O poema compõe-se de duas estrofes: uma quadra e uma sextilha. Seus versos são irregulares e obedecem, respectivamente, o seguinte esquema rímico: abba, abcbca; na verdade, tem-se nessa segunda estrofe quatro versos que seguem o mesmo esquema rímico da quadra anterior, entrecortados por dois versos que formam uma rima interior ? “E de frescura, e de mocidade... (...)/Da senilidade e da amargura...”(v. 7 e 9) — ou seja, a palavra final do verso 7 rima com a palavra que termina o grupo fônico do verso 9, e vice-versa, estabelecendo uma simetria invertida.
Os dois versos iniciais ? “Eu quis um dia, como Schumann, compor/Um Carnaval todo subjetivo” ? revelam, mediante uma linguagem simples e sem rodeios, o intento do poeta compor uma obra que exprimisse seu interior. Os dois últimos versos ? “Um Carnaval em que o só motivo/Fosse o meu próprio ser interior...” — dão continuidade ao primeiro, explicando-os.
A tensão do poema se apresenta com a segunda estrofe, que se contrapõe à primeira. Para tanto, o poeta utilizará antíteses, não só de palavras, mas também pela disposição tipográfica dos versos. Se fossem retirardos os versos 7 e 9, o esquema rímico dessa estrofe seria o mesmo da anterior: dois pares de versos opostos. Os versos 5-7 referem-se à obra de Schumann ? um poema cheio de amor — e os versos 8 e 10 exprimem sua intenção malograda: “E o meu tinha a morta morta-cor/(...)/? O meu Carnaval sem nenhuma alegria!”.
Os versos 7 e 9 são simetricamente invertidos: “E de frescura, e de mocidade...” (verso 7) aponta para o Carnaval de Schumann, enquanto o Carnaval de Bandeira é o “Da senilidade e da amargura...” (verso 9), formando, assim, uma rima interna, em que aparecem as antíteses das palavras frescura/amargura e mocidade/senilidade. O verso 8 fica exatamente no meio desses dois fazendo um jogo de inversão, e é justamente onde se define o Carnaval de Bandeira: “E o meu tinha a morta morta-cor”. Observe-se que palavra “morta” é usada duas vezes, a primeira como adjetivo e a segunda como termo, também com valor adjetivo, de um substantivo composto, enfatizando, assim, o aspecto sombrio e negativo de sua obra.
Contudo, é sabido que o Carnaval de Schumann não é tão alegre como o poeta tenta nos fazer crer. Por isso, é provável que haja o desejo implícito de o poeta despertar nos outros o sentimento de compaixão. Ainda é uma visão romantizada do fracasso.

3. A IRONIA COMO COMPENSAÇÃO

Como Bandeira foi sempre um artista receptivo às mudanças, não ficou preso eternamente a essas tendências penumbristas tradutoras perfeitas de seu estado melancólico. Não que sua dor tivesse desaparecido; o que mudou de tom foi a sua compreensão diante da frustração de “uma vida inteira que podia ter sido e que não foi”, entendimento facilitado pelos novos ventos do modernismo:

O importante é verificar que o espírito modernista deu o instrumental necessário para Bandeira livrar-se de um encerramento de caráter melancólico, servindo-se dos elementos mais libertadores para anistiar a si mesmo. (ROSENBAUM, 1993:31)

Um fator, de natureza existencial, obrigou Manuel Bandeira a mudar seu comportamento diante da iminência da morte: a sua chegada tardia.
“Andorinha”, poema de intensa musicalidade, de Libertinagem, sintetiza perfeitamente o sentimento de melancolia tingido pelo humor. O poeta brinca com sua própria tragicidade:

Andorinha lá fora está dizendo:
? “Passei o dia à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...

Este pequeno poema escrito em versos livres (Bandeira foi um dos precursores no emprego dessa técnica) compõe-se de dois dísticos paralelos que dão uma versão irônica para o destino de quem passou a vida esperando por uma morte sempre a sua espreita, amedrontando-o, tal qual está registrado nos versos de “Poemas de finados”, de Liberinagem:
Falta a morte chegar... Ela me espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que já morri quando o que eu fui morria.

Assim, no primeiro dístico de “Andorinha”, há um sujeito lírico na posição de observador e ouve a andorinha lamentar-se da ociosidade de seu dia, por meio de uma linguagem coloquial, muito própria de Bandeira e tão ao gosto da vertente modernista:

Andorinha lá fora está dizendo:
? “Passei o dia à toa, à toa!”

é interessante observar que a melancolia presente nesses versos não tem um tom crepuscular como nos versos de “Desalento”:
O ermo infinito do meu desejo
Alonga, amplia cada pesar...
Pesar doentio... Tudo o que vejo
Tem uma tinta crepuscular..

A assonância da vogal /a/ reitera a idéia de claridade própria do dia, o que de certa forma torna o verso mais leve, menos sombrio, acrescente-se a isso a marcação do ritmo que se dá também em cima dessa vogal.
O segundo dístico forma um paralelismo com o primeiro e, ao mesmo tempo, ironiza-o. Observa-se que a assonância das vogais nasais no verso inicial dessa estrofe sugere uma lentidão muito própria de quem vive uma vida monótona, e, por isso, sua cantiga é mais triste: “Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!”. O segundo verso — “Passei a vida à toa, à toa...” — simétrico ao do dístico anterior debochadamente dialoga com a andorinha, ao afirmar que se ela passou “o dia à toa, à toa” ele, por sua vez, passou a vida inteira. Não obstante a presença do sofrimento, inclusive a palavra dor está contida na palavra andorinha, nome que dá título ao poema e que repete-se três vezes nesse curto poema de quatro versos apenas, o que há, na verdade, é o humor tingido pela melancolia.
Outro poema em que o poeta se apropria do humor para falar do seu “mau destino” é “Pneumotórax”, de Libertinagem, que, segundo o próprio poeta, entre os seus livros é “o que está mais dentro da técnica e da estética do modernismo”(1984:91):

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
? Diga trinta e três.
? Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
? Respire.
......................................................................................................

O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o direito [infiltrado.
? Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
? Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Manuel Bandeira, a respeito desse poema, confessa literalmente seu novo estado de espírito, agora, irônico e debochado:
Descobriram os meus paraguaios — não sei como, na Bahia — que sou poeta. Saidenstein sabe poemas e poemas de cor, desde Gutierre de Cetina até Neruda. Recitou-me outro dia versos de um paraguaio já falecido. Casati me informa:
— Era leproso.
— E morreu de lepra?
— Morreu. Mas além de leproso era tuberculoso.
— Coitado!
— E tinha sífilis também.
— Era exagerado.
Saidenstein solta uma risada, Casati fica interdito. Para amenizar a minha dureza, recito-lhe o meu “Pneumotórax” (MORAES, 1962:168)

Escrito em versos livres, com exceção dos três primeiros versos cuja construção é de natureza puramente poética, transforma elementos do cotidiano do poeta em poesia, como esta cena prosaica do diálogo entre ele e seu médico durante uma consulta:

O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o direito [infiltrado.
? Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
? Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Essa capacidade de extrair poesia das coisas banais e cotidianas foi uma das heranças que Bandeira deixou para a poesia brasileira. Além disso,o poema contém um dos mais famosos e emblemáticos versos da poética bandeiriana — “A vida inteira que podia ter sido e que não foi.”—, denotador aqui da mais completa tranqüilidade, pois sabe o poeta que, diante de seu destino trágico que lhe provocou tantas frustrações, “a única coisa a fazer é tocar um tango argentino”.

4. A POESIA COMO MEDIAÇÃO PARA A VIDA

A poesia de Manuel Bandeira está intimamente ligada a sua existência, por isso fica difícil falar dela sem relacioná-la com sua trajetória de vida, uma vez que as fatalidades ocorridas em sua vida, como a doença, na época, fatal, a luta contra a morte, a perda de seu pai, de sua mãe, de sua irmã, a solidão, tudo isso deixou marcas profundas em sua obra. Na verdade, a poesia, que na sua adolescência fora apenas divertimento, com a chegada da doença tornou-se necessidade:

Mas eu não me destinava à literatura e não tratei de suprir por mim mesmo as deficiências dos meus professores (...) Não era minha ambição ser poeta e sim ser arquiteto(...) Se eu escrevia versos, era com o mesmo espírito desportivo com que me equilibrava sobre um barril lançado a toda a força das pernas, o que de modo nenhum me fazia sentir com vocação para artista de circo. Em todo o tempo do Ginásio duas vezes experimentei o desejo de publicidade, pelo menos a ponto de tomar inciativa para isso. Da primeira foi mandando a uma nova revista literária (...) um soneto em louvor de Chateaubriand (...). O soneto não foi publicado e pela caixa de respostas da revista o redator sentenciou: “O seu soneto não está mau. Também não está bom. Enfim, continue!” Da outra vez fui mais feliz, enviando a Antônio Sales, redator influente do Correio da Manhã, um soneto (...). A publicação desses versos na primeira página do Correio como que me saciou por completo a fome de glória. Pouco tempo depois partia eu para São Paulo, onde ia matricular-se no curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica. Pensava que a idade dos versos estava definitivamente encerrada. Ia começar para mim outra vida. Começou de fato, mas durou pouco. No fim do ano letivo adoeci e tive de abandonar os estudos, sem saber que seria para sempre. Sem saber que os versos, que eu fizera em menino por divertimento, principiaria então a fazê-los por necessidade, por fatalidade.(BANDEIRA, 1984:27-28)

Num primeiro momento, a poesia serviu literalmente para preencher o tempo ocioso do sanatório, depois ganhou uma dimensão muito maior: preencheu sua própria vida.

Nascendo junto com a circunstância adversa, a poesia é então percebida como um desabafo momentâneo, como se brotasse por uma necessidade íntima de resposta, por uma urgência do ser em risco, afirmando-se diante da morte onipresente.(ARRIGUCCI, 1990:133)

O poema “Canção do vento e da minha vida” de Lira dos cinqüent’anos, demonstra muito claramente como a arte da poesia deu sentido à vida do poeta Manuel Bandeira:

O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos
E varria as amizades...
O vento varria as mulheres.
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.

O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos...
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.

O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos...
O vento varria tudo!
E a minha ficava
Cada vez mais cheia
De tudo

Esse poema de intensa musicalidade, já anunciada pelo título — “Canção do vento e da minha vida” —, compõe-se de versos encadeados e paralelísticos. Cada estrofe é formada de seis versos que se distribuem em dois grupos, dividindo-a ao meio.
Na primeira metade, há redondilhas maiores que exprimem a existência do poeta esvaziada pela doença. A aliteração do fonema /v/ reitera a idéia da ação destruidora do vento. Em contrapartida, os três versos da segunda metade, também encadeados e dispostos graficamente de maneira antitética em relação aos primeiros, revelam que os vazios deixados pela existência são proporcionalmente preenchidos pela poesia, capaz de transformar o que, a princípio, era perda num resgate de tudo.
É possível observar também como esses elementos de perda que aparecem numa gradação que vai de “frutos”, passando por “flores, folhas, luzes, músicas, aromas, sonhos, amizades, mulheres, meses, sorrisos”, até culminar em “tudo”, ganham um sentido poético maior na segunda metade de cada sextilha. Comprova-se, assim, a afirmação de Bandeira de “que a poesia está em tudo ? tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas.”(1984:19).
A poesia foi a grande saída encontrada por Bandeira para sua vida mutilada pela doença, não só como poeta alumbrado, mas também como estudioso, como aquele que acredita que poesia se faz com palavras. E ela, a poesia, desempenhou plenamente a função de tradutora de seu mundo, foi por meio dela que Bandeira fez uma leitura otimista de sua existência. Possivelmente, ela muito contribuiu para que seu fim chegasse, contrariamente ao que se esperava, tão tarde. Assim, a poesia, para ele, teve o papel de mediadora para a vida.

5. A INFÂNCIA: EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

O resgate da infância foi mais uma das tendências que a poesia bandeiriana seguiu após a tomada de consciência de que a morte, esperada desde os dezoitos anos estava tardando demais a chegar e que, por causa disso, era preciso encontrar saídas para sua existência. Essa volta ao passado só foi possível através da poesia:
Ao evocar as cenas e as personagens que estruturam vida e obra do poeta, a poesia reconstrói epifanicamente a infância enquanto fenômeno iluminado. A memória se abre para o que há de mais recôndito na esfera íntima e reacende cantos biográficos escuros, mas nunca esquecidos. São mais do que lembranças. Elas parecem pertencer tanto a um universo mágico, quase mítico, quanto à dimensão do que há de mais real em Bandeira. A vida adulta, então, torna-se um constante aceno ao passado, a esse passado que hoje está desaparecido na realidade, vívido no imaginário e reatualizado enquanto ausência que se materializa na poesia.( ROSENBAUM, 1993:42)

Desse modo, a infância não é retomada de uma forma idealizada, mas representa um tempo concreto vivido plenamente pelo poeta:a infância é o lugar da felicidade. Na busca de compensações para sua vida permeada de perdas e frustrações, Bandeira se volta para a sua meninice e transforma em matéria artística toda a magia desse tempo. É o que se percebe em “Cotovia”, de Opus 10:

? Alô, cotovia!
Aonde voaste,
Por onde andaste,
Que tantas saudades me deixaste?

? Andei onde deu o vento.
Onde foi meu pensamento.
Em sítios, que nunca viste,
De um país que não existe...
Voltei, te trouxe a alegria.

? Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste.

? Líbia ardente, Cítia fria,
Europa, França, Bahia...

? E esqueceste Pernambuco,
Distraída?

?Voei ao Recife, no Cais
Pousei da Rua Aurora.

? Aurora da minha vida,
Que os anos não trazem mais!

? Os anos não, nem os dias,
Que isso cabe às cotovias.
Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é deste mundo:
Se enche com uma gota de água.
Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
? Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.

A estrutura de “Cotovia” é composta de um diálogo em que as estrofes alternam as falas entre o poeta e uma ave migratória, a cotovia. Durante esse diálogo, o poeta interroga cotovia sobre os lugares visitados ? “Por onde andaste,/Que tantas saudades me deixaste?”, e ela, por sua vez, responde que andou por terras distantes. Ao listar esses lugares — “— Líbia ardente, Cítia fria,/Europa, França, Bahia...” —, Bandeira apropria-se do texto alheio, pois “? Líbia ardente, Cítia fria,” refere-se a Camões:

Põe-me em perpétuo e mísero desterro
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente (CAMÕES, 1988:87)

e “Europa, França e Bahia” a Carlos Drummond de Andrade, pois esse verso é título de um de seus poemas. Mais adiante incorpora em seu poema versos de Casimiro de Abreu: “ ? Aurora da minha vida,/Que os anos não trazem mais.
Ao ouvir da cotovia que ela esteve na rua Aurora ? “Voei ao Recife, no Cais/Pousei na Rua Aurora”—, desencadeia em sua memória a lembrança do tempo feliz de sua meninice “? Aurora da minha vida,/Que os anos não trazem mais!”.
Sendo assim, é possível interpretar a cotovia como a própria poesia, uma vez que foi no plano poético que Manuel Bandeira recuperou a alegria da infância:

Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
? Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.

As referências a poetas como Camões, Carlos Drummond de Andrade e Casimiro de Abreu reforçam essa tese de que a poesia fala por meio da cotovia, pois o arcabouço poético de Bandeira se formou a partir da leitura e da apropriação dos textos de grandes mestres. Outro dado deste poema que reitera essa leitura é a possível alusão feita a Pasárgada: “Em sítios, que nunca viste,/De um país que não existe.../Voltei te trouxe a alegria.”

6. CONCLUSÃO

Pretendeu-se mostrar neste trabalho que Manuel Bandeira, por conta de sua saúde frágil, foi obrigado a levar uma vida bastante limitada, que o impediu de realizar as coisas mais banais, que toda pessoa é capaz de fazer e que para ele só se tornaram possíveis no mundo sonhado de Pasárgada. A tuberculose não o matou, no entanto sua condição de tísico o impediu de realizar muitos de seus projetos. Em carta a Mário de Andrade, confessa sua frustração diante dessa impossibilidade:

Perguntas pelos meus poemas e pelos meus projetos. Não tem projetos quem vive como eu ao Deus dará do amanhã. Sabes o que me disse o médico de Cladavel quando me auscultou pela última vez em 1914? Que eu tinha lesões teoricamente incompatíveis com a vida . O meu organismo acabou espontaneamente vacinado contra a infecção tuberculosa, mas fiquei um inválido. Sou incapaz de um esforço seguido. Se essa mesma arte fragmentária dos meus poemetos me desnerva? Cada uma dessas pequenas coisas que já fiz representa um momento de paixão. Como eu teria vontade de fazer prosa, de escrever dois ou três romances! Isto então é completamente impossível.(MORAES, 2000:94)

Contudo, as limitações físicas e existenciais impostas pela tuberculose não foram as únicas matrizes de suas frustrações. Seu destino foi mais cruel: a morte levou muito cedo toda sua família, seguidamente morreram sua mãe, sua irmã, seu pai e seu irmão. Essas mortes ficaram registradas em seus poemas, como “A minha irmã”, “Elegia para minha mãe”, “Sonho branco” e “A dama branca”.
Desse modo, Manuel Bandeira foi acumulando ao longo de sua vida uma série de frustrações. A primeira delas foi ter deixado de lado o sonho, tal como desejava seu pai, de ser arquiteto; Bandeira adoece quando inicia seus estudos, em São Paulo, na Escola Politécnica. Por causa da doença é obrigado a abandonar os estudos para se tratar e, a fim de ocupar seu tempo ocioso, resolve dar continuidade a sua antiga e diletante atividade de fazer poemas. Assim, acaba tornando-se poeta acidentalmente, por fatalidade, como ele mesmo afirmou em Itinerário de Pasárgada. De uma certa forma, o arquiteto não morreu de todo, uma vez que passou a criar outras realidades, tornando-se um arquiteto da palavra. A poesia tornou-se, talvez, a mais importante compensação para as frustrações de sua vida.
Manuel Bandeira entra definitivamente para o mundo poético tendo como via de acesso uma contingência de sua vida pessoal; inevitavelmente a frustração foi uma temática recorrente em sua obra, e coube a ela desencadear outros temas.
Num primeiro momento, o da publicação, em 1917, de A cinza das horas, vê-se um poeta profundamente melancólico com o seu destino trágico; seus versos estão impregnados de tristeza. Estabelece-se uma correspondência, em sua obra, entre sua vida e estética literária, uma vez que, nas primeiras décadas do século passado, ainda estava em voga o penumbrismo das tendências parnaso-simbolistas.
Com a chegada do modernismo, Manuel Bandeira, poeta antenado com seu tempo, foi obrigado a mudar o tom de sua poesia melancólica, pois não havia mais espaço, na nova escola poética, para os versos desesperançosos de A cinza das horas.
Como a sua vida, a princípio provisória, foi ficando permanente demais, Bandeira sentiu a necessidade de encontrar uma maneira de viver mais prazerosamente e, para tanto, encontrou na poesia um forte motivo para viver; ela se tornou, talvez, a mais importante compensação para sua vida permeada de ausências.
No entanto, fazer apenas poesias cuja temática fosse sempre a dor, a desesperança, não acrescentou muita coisa à sua vida; só isso não bastava, era preciso se tornar indiferente à presença constante da morte e ao tédio de seus dias; para tanto, buscou várias tendências para sua poesia. Este trabalho incumbiu-se de apenas duas tendências: a presença da ironia compensando as inevitáveis frustrações e o resgate da infância, tentativa de o poeta trazer para o presente um tempo em que foi plenamente feliz.

BIBLIOGRAFIA

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