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  LETRAMENTO, AUTORIA E ESTILO

Vanêsa Vieira Silva de Medeiros - Universidade Federal Fluminense - UFF

Minha voz é o modo como vou buscar a realidade; a realidade, antes da minha linguagem, existia como um pensamento que não pensa, mas por fatalidade fui e sou impelida a precisar saber o que o pensamento pensa. A realidade antecede a voz que procura, mas como o mar antecede a visão do mar, a vida antecede o amor, a matéria do corpo antecede o corpo, e por sua vez a linguagem um dia terá antecedido a posse do silêncio.
Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é o buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e o que instantaneamente reconheço. A linguagem é meu esforço humano. Pro destino, volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, obtenho o que ela não conseguiu.
(Lispector, 1997, p. 78)

1 APRESENTAÇÃO DO ESTUDO: ANTECEDENTES E BASE TEÓRICA

As questões que envolvem a leitura e a escrita passaram a me chamar a atenção desde a época da Graduação, quando cursei a disciplina de Alfabetização, o que acabou também motivando o tema de minha monografia, intitulada “Ponto, linha, margem e uma interrogação: alfabetizar é vida?”. Com muita vontade de continuar aprofundando os estudos sobre o aprendizado da leitura e da escrita nas crianças, dei continuidade através de um curso de especialização Lato Sensu de Literatura Infanto-Juvenil. Em outros momentos, buscava outros espaços, dentro e fora da Universidade, em que pudesse estar discutindo/ dialogando as questões observadas ora no trabalho, ora nas leituras.
O presente projeto de pesquisa dá seguimento ao movimento mencionado acima, inserindo-se na temática da Alfabetização vista na perspectiva do letramento. Especificando melhor, o projeto tem como tema o processo de produção de textos em linguagem escrita, na escola. A linguagem é concebida como atividade constitutiva, do sujeito através da qual nos humanizamos e apropriar-se de uma linguagem é também construir um sistema de referências do mundo. Entender a linguagem dessa forma é entender que nós, sujeitos, agimos sobre a linguagem no mesmo sentido que a linguagem age sobre nós. Não podemos deixar de trazer Franchi (1992, p. 12), que tão bem desenvolveu essa questão, deixando marcado seu posicionamento, assumindo que a linguagem:

“é ela mesma um trabalho pelo qual, histórica, social e culturalmente, o homem organiza e dá forma a suas experiências. Nela se produz, do modo mais admirável, o processo dialético entre o que resulta da interação e o que resulta da atividade do sujeito na constituição dos sistemas lingüísticos, as línguas naturais de que nos servimos.”

A importância das interações verbais e do papel da linguagem verbal no processo de aprendizagem vem sendo cada vez mais observada por estudiosos da linguagem. Hoje, influenciados pela leitura de Bakhtin, com sua grande contribuição no estudo das relações entre linguagem e sociedade, aprendemos que “[...] o centro organizador de toda enunciação de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo” (1992, p. 121).
Nesse sentido, as pesquisas sobre a produção de linguagem oral e escrita por alunos nas escolas se mostram relevantes tanto para compreender os modos como os diferentes sujeitos produzem linguagem, como também para refletir como deve ser organizado o trabalho com a linguagem na escola. Nesse contexto, o presente projeto de pesquisa tem como principal objetivo investigar as marcas de estilo individual em textos de um determinado gênero do discurso (a definir) elaborados por alunos de uma escola pública do município do Rio de Janeiro com base no conceito de gênero do discurso proposto por Bakhtin (2003).
Vale acrescentar, porém, que o trabalho a que nos propomos não está sendo principiado por nós. O que temos observado, na literatura, entretanto, é que há poucos trabalhos sobre o tema, ainda que alguns autores venham investindo na análise de textos de alunos, buscando observar se há marcas de autoria na construção do estilo de produção ao longo da história individual de aquisição da linguagem pelo sujeito. Possenti (2001, p.18) vem apontando em seus estudos a possibilidade e a importância desse tipo de pesquisa para a escola, no sentido de estar fundamentando as práticas escolares e não só a análise de textos. Para este autor:
“trata-se de postular não uma espécie de média estatística entre o social e o individual, mas de tentar captar, através de instrumentos teóricos e metodológicos adequados, qual é o modo peculiar de ser social, de enunciar e de enunciar de certa forma, por parte de um certo grupo e,eventualmente, de um certo sujeito.”

Outros trabalhos como os de Abaurre (1993), Goulart (2003), que apresentamos na próxima seção, e Mayrink-Sabinson (1993; 1998), cada qual com seu foco de interesse, todos partilham a mesma concepção sócio-histórica de linguagem e nos apontam como este é um tema promissor e que ainda há muito a ser pesquisado.

1.1 Estilo, autoria e gêneros do discurso

Para prosseguirmos com a proposta de trabalho a que nos propomos precisamos antes de tudo repensar o estilo e a autoria fora do domínio exclusivo da arte-literatura. Devemos retirar o estilo do domínio exclusivo da concepção romântica, ou de vê-lo como desvio, ou idiossincrasia. Retornamos a Possenti (2001, p.16-17) e partilhamos com ele a opção pela concepção de estilo como marca de trabalho com a linguagem. O autor nos propõe, ainda, uma forma alternativa de conceber o estilo
“como efeito de uma multiplicidade de alternativas – decorrentes de concepções de língua como objetos heterogêneos - , diante das quais escolher não é um ato de liberdade, mas o efeito de uma inscrição (seja genérica, seja social, seja discursiva).”
Com esta proposta é possível unir o individual e o social. Também devemos redefinir o conceito de autoria para que não se aplique de forma restrita à personalidade. Este conceito também está fortemente ligado a conotações românticas, já que são a um autor a que as obras são referidas. Não é difícil a associação da palavra autor a um escritor, principalmente aos autores de grandes obras literárias, conotando quase sempre uma pessoa, um indivíduo, um Eu. Por outro lado não basta escrever/ falar para ser um autor. Estamos considerando como autor o sujeito que dá forma ao conteúdo, ele não é passivo, mas age imprimindo nas suas ações um modo ser particular.
Outro trabalho que vem nos auxiliando o pensar e o repensar sobre o tema em questão é desenvolvido por Abaurre (1999), envolvendo a emergência do estilo como marca da construção da autoria, em que analisa e observa o material escrito de um único sujeito desde a pré-escola até o final do 2º grau. O material coletado foi fruto espontâneo da escrita de uma estudante em ambiente doméstico e escolar. A autora, em seus estudos, chegou a conclusões preliminares significativas sobre vários aspectos. Destacamos, porém, apenas um, no qual relaciona as marcas estilísticas aos gêneros do discurso: “a questão da emergência do estilo individual parece estar intimamente relacionada à questão do que se podem tomar como estilos específicos de gêneros discursivos particulares [...]” (1999, p.17).
Ressaltamos, ainda, um outro trabalho, desenvolvido por Goulart (2003). Nesse trabalho, a autora analisa sinopses de livros literários. Os textos foram elaborados por alunos de 3ª série do ensino fundamental que, ao longo de um período do ano, vinham trabalhando com esse gênero discursivo. Ali, nos foram apontadas várias questões que devem ser consideradas posteriormente em nosso estudo. Uma delas é no sentido de optarmos por um único gênero discursivo, o que poderá tornar o trabalho revelador das marcas textuais. O gênero discursivo escolhido deve ser do conhecimento dos alunos, para que possam produzir seus textos com competência e segurança. Outro apontamento interessante feito pela autora, com base em Possenti, revela-se na perspectiva de ligar a questão do estilo à questão da autoria, “[...] no sentido de que os discursos apresentam marcas históricas e sociais, que os inscrevem na memória social, bem como marcas do próprio sujeito enunciador, isto é, de alguma singularidade” (p. 78)
Consideramos um importante ponto de partida observar a questão das marcas estilísticas, buscando relacioná-las à questão dos gêneros discursivos, com base em Bakhtin e pretendemos organizar nosso trabalho partindo de alguns aspectos apontados nos estudos dos autores acima, ligando a questão do estilo individual aos gêneros do discurso associando estes achados à condição letrada.
Durante nossa leitura percebemos que, em vários momentos, alguns aspectos da teoria da enunciação de Bakhtin serão fundamentais para o desenvolvimento de nosso trabalho. Nesse sentido, faremos agora um pequeno apanhado de alguns elementos de seu estudo que nos vêm chamando a atenção e que acreditamos serem norteadores, principalmente no que se refere ao trabalho com os enunciados e com os gêneros do discurso.
Para Bakhtin, toda atividade humana passa pela linguagem e as formas de uso dessa atividade humana são multiformes. Sua multiplicidade de formas não contradiz a unidade nacional de uma língua. A língua é empregada através de enunciados, sejam eles produzidos nos discursos orais ou nos discursos escritos. Os enunciados são concretos, únicos e não se repetem. Segundo Bakhtin (2003, p. 261):
“Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional.”

O conteúdo temático, o estilo, a construção composicional são elementos determinados pela especificidade de uso no campo da comunicação. O enunciado particular é individual, mas os campos de utilização da língua elaboram seus tipos de enunciados relativamente estáveis, os quais Bakhtin denomina gêneros do discurso. Logo, sempre que enunciamos, o fazemos por meio de um gênero discursivo que pode ser tanto oral como escrito.
O autor salienta a heterogeneidade dos gêneros discursivos, desde os mais simples diálogos do cotidiano (gêneros primários do discurso) a formas mais elaboradas (gêneros secundários do discurso). É importante ressaltar tal divisão de dois grandes tipos de gêneros do discurso, primários e secundários, porém essa diferença não deve ser considerada como funcionalidade.
Os gêneros primários do discurso (simples), em geral, estão ligados à linguagem do cotidiano. Alguns autores vêm apontando em seus estudos que os gêneros primários estariam mais presentes na oralidade. Esta questão está relacionada à discussão sobre a relação entre oralidade e escrita que pretendemos aprofundar posteriormente. Os gêneros secundários (complexos) são fruto das condições de acesso a atividades culturais mais complexas sendo, relativamente muito desenvolvidas e organizadas, nas palavras de Bakhtin predominantemente por escrito. Talvez por esse motivo, a associação de gêneros do discurso primários à oralidade e gêneros discursivos secundários serem associados à escrita.

1.2 Letramento

Com alguns avanços e retrocessos, continuamos a discutir questões relativas à alfabetização porém, hoje, nos deparamos com um novo termo: letramento. Para alguns, nome novo para uma coisa antiga. Para outros, uma nova perspectiva para encarar o contexto do processo de alfabetização escolar. Por que falamos, hoje, de letramento? Alfabetização e letramento são sinônimos?
Com relação à primeira questão acima, há cerca de vinte anos atrás, estamos nos deparando com o termo, porém alguns estudiosos vêm se mostrando contrários ao uso do termo, por entenderem que não é possível pensar sobre alfabetização fora do contexto sócio-político. Em uma sociedade letrada como a nossa, organizada fundamentalmente por meio de práticas escritas, encontramos sujeitos não-alfabetizados nela vivendo. Isto é, mesmo sem saber ler e escrever essas pessoas dão conta de suas vidas seja trabalhando, pegando condução para locomoções várias, fazendo compras e isto implica escolha por produtos, marcas e preço, Seja dando conta da educação de sues filhos. Tfouni, por exemplo, apercebe-se da falta “[...] de uma palavra que pudesse ser usada para designar esse processo de estar exposto aos usos sociais da escrita, sem no entanto saber ler nem escrever”(1997, p. 7). O letramento designaria, então, os processos envolvidos na aquisição de um sistema escrito, os usos sociais que fazemos com o sistema da escrita e as funções sociais que a linguagem escrita têm nos diferentes espaços e comunidades. Para Magda Soares (1995, p. 7)
“Na verdade, só recentemente esse termo se tem mostrado necessário, porque só recentemente começamos a encontrar uma realidade social em que não basta simplesmente “saber ler e escrever”: dos indivíduos já se requer não apenas que dominem a tecnologia do ler e do escrever, mas também que saibam fazer uso dela, incorporando-a a seu viver, transformando-se assim seu “estado” ou “condição”, como conseqüência do domínio dessa tecnologia.”

Em resposta à segunda questão, partilhamos do posicionamento defendido por teóricos como Magda Soares, Ângela Kleiman, Leda Tfouni e Cecília Goulart, de que alfabetização e letramento, designam processos indissoluvelmente ligados entre si, mas são conceitos diferentes.
Assim, o surgimento do termo letramento estaria inserido também no contexto de se perceber o sujeito não alfabetizado vivendo numa sociedade altamente letrada. Muitas outras questões emergem sobre sua noção e compreensão. Outras tantas questões nos instigam a pensá-lo: há diferença de níveis de letramento? O letramento é um processo individual ou coletivo? Como conceituá-lo? Podemos discutir autoria e letramento com base na análise de textos dos alunos?
Sobre tais questionamentos, alguns trabalhos têm mostrado resultados bastante promissores. A pesquisa realizada por Goulart (1997) sobre o processo de alfabetização de crianças durante dois anos (CA e 1ª série) mostra resultados instigantes, quais sejam, os de que, em nenhum momento, foram encontrados textos orais escritos, isto é, com base no que seria sua produção oral. No trabalho da mesma autora, em 2003, foram encontradas marcas sociais e singulares de estilo que devem estar relacionadas à experiência de vida, visões e interpretações de mundo as quais vão sendo compostas e recompostas nos enunciados do sujeito com os outros:
“Os alunos formularão novas perguntas às “outras formas de ser racional”, a outros modos de ser letrado, que essas formas/modos nem cogitavam. A formulação de novas perguntas permite que as formas “alheias” respondam, assumindo faces novas de sentido. Somente ao formularmos perguntas próprias (próprias de outras formas de ver o mundo), participamos de uma compreensão ativa de tudo que é outro e alheio e nos constituímos como autores”(GOULART, 2003, p. ).

Os resultados daquele trabalho, apesar de bastante promissores, ficaram limitados, a um restrito material de análise. Assim, pensamos poder ser possível expandir esta linha de trabalho, desta vez com material mais amplo, enfocando a questão da autoria. No trabalho em foco, ao serem depreendidas marcas de estilo na escrita das crianças investigadas, associamos esse achado com a concepção de letramento de Tfouni (1997).
A referida autora observou, em sua pesquisa, que, nas sociedades letradas, o discurso oral de adultos não alfabetizados está perpassado por características que geralmente encontramos no discurso escrito. O trabalho desenvolvido pela autora vem contribuindo para a refutação da teoria da grande divisa. Longe de defender uma posição romântica, idealista, e muito menos de comparar os recursos estilísticos utilizados pelos grandes escritores, a pesquisa de Tfouni nos mostra, em relação a pessoa analfabeta numa sociedade letrada, que:
“Ora, sendo ela analfabeta, e portanto, sem uma história interacional que inclua práticas de contato direto com textos escritos, pode-se concluir que seu discurso oral está atravessado por características que geralmente são atribuídas ao discurso escrito, sendo a função autoria o critério central que define essa posição. Ao mesmo tempo esses argumentos funcionam contra a teoria da grande divisa, quer em sua versão “clássica”, quer em sua versão “moderna”” (1997, p. 62).

A presença de elementos da escrita no discurso oral de uma pessoa adulta não alfabetizada contribui para redefinir a concepção de letramento. A partir de então, a autora defende a posição de que a explicação para esses fatos deve ser buscada em uma concepção sócio-histórica de letramento, tendo como critério central a concepção discursiva da autoria.
Os temas e as questões acima abordados são a base para o desenvolvimento do projeto de pesquisa cujos objetivos apresentamos a seguir.

2 OBJETIVO E JUSTIFICATIVA

Porque é relevante estudar o processo de autoria e ou estilo nos textos dos alunos? Em que contexto o letramento vem a contribuir para a construção da autoria? Qual o papel da oralidade, leitura e autoria num contexto de letramento? O interesse pelas questões acima explicitadas reside no pressuposto de que, investigando as marcas e os caminhos percorridos pelo sujeito, encontramos indícios singulares que jamais serão repetidos. Estes indícios nos dão pistas de como esses sujeitos autores estão realizando a interlocução através de seus textos e vêm se apropriando e fazendo uso da linguagem escrita. Tfouni justifica a importância de estudos envolvendo a autoria e o letramento por oferecerem argumentos favoráveis à hipótese de que o discurso oral, nas sociedades letradas, pode estar trazendo marcas que são características do discurso escrito. Fazendo emergir esses argumentos podemos estar contribuindo contra a teoria da “grande divisa”, que num sentido muito amplo e grosseiro pode ser traduzido como: aquelas pessoas que não aprenderam a ler e a escrever não tem raciocínio analítico, abstrato etc.
Pretendemos com a pesquisa ampliar a discussão das questões que já existem sobre o estilo e a autoria encontradas em estudos como o de Abaurre, Goulart e Tfouni. Por tratar-se o letramento de uma questão apenas recentemente posta em evidência no Brasil, acredito que um estudo exploratório venha a contribuir no fornecimento de subsídios para a construção de uma teoria que dê conta do fenômeno nos seus diversos aspectos. A partir do exposto nos itens anteriores, com base na noção de letramento, o objetivo geral do presente estudo é compreender como se constrói o processo de autoria, por meio da caracterização do estilo dos textos escritos de crianças que serão analisados. Para tanto, defino o seguinte objetivo específico:
* identificar em um corpus representativo do processo de escrita de alunos de uma série inicial do Ensino Fundamental, dados significativos que caracterizem o gênero do discurso selecionado e, nesse contexto, a caracterização de indícios do estilo individual que estaremos relacionando à construção da autoria. Para alcançar o objetivo acima, buscarei conhecimentos sobre as características do gênero do discurso selecionado; ampliarei a discussão sobre as noções de estilo e de autoria; assim como aprofundarei o conhecimento das relações entre oralidade e escrita na perspectiva de compreender melhor o desenvolvimento do processo de letramento, conforme já vem sendo discutido em Goulart et alii (2005). Outras necessidades de estudo poderão ser consideradas ao longo do caminho da pesquisa.

3 ENCAMINHAMENTO METODOLÓGICO

Sabemos o quão importante é a escolha de uma metodologia que dê conta do objeto a ser investigado, bem como o é a revisão bibliográfica que perpassa e orienta o trabalho. Na leitura que venho realizando a abordagem qualitativa tem me chamado a atenção principalmente no sentido de que a “[...] investigação qualitativa exige que o mundo seja examinado com a idéia de que nada é trivial, que tudo tem potencial para construir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objeto de estudo” (BOGDAN; BIKLEN, 1999, p. 49). Neste sentido, considerando o objetivo da pesquisa e as questões envolvidas, o caráter qualitativo parece essencial.
Continuando a pensar na abordagem qualitativa destaco que na obra de Bogdan e Biklen, são levantadas cinco características a ela atribuída. São elas: 1) tendo como fonte direta os dados o ambiente natural, 2) a importância da descrição, 3) o interesse pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos, 4) a analise dos dados deve ser tratada de forma indutiva e 5) a importância do significado. Esses cinco pontos levantados por esses autores faz com que a abordagem qualitativa seja pensada como a metodologia que norteará a pesquisa.
A proposta é, então, buscar identificar indícios das marcas de estilo e de autoria nos textos de alunos. Estamos considerando como indícios as marcas deixadas no texto que aparentemente são consideradas como “detalhes”, passando em alguns momentos despercebidas ao olhar do leitor comum. Considerando a dificuldade de investigar determinados aspectos do processo de produção de textos por crianças, trazemos o paradigma indiciário de pesquisa, encaminhado por Ginzburg (1989), em que a busca pelos detalhes singulares é reveladora para o objeto que se busca conhecer. “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifra-la” (GINZBURG, 1989, p. 177). Observamos que nos trabalhos de (ABAURRE, 1999; PACHECO, 1997) o uso do paradigma indiciário de pesquisa se mostrou produtivo.
Será, em suma, um estudo de caráter qualitativo, exploratório (em razão de existirem poucos estudos sobre o tema proposto), onde o tratamento e análise das marcas e indícios levantados contribuirão para o alcance dos objetivos e para a contextualização do estudo que estamos pretendendo desenvolver, sobre o estilo, a autoria e o letramento.
Considerando que, em educação, a dimensão qualitativa da abordagem é essencial, não se exclui, porém, a possibilidade de trabalho com alguns dados quantitativos que poderão vir a ser importante para nossa compreensão.

3.1 Local de realização da pesquisa

Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – IAp/UERJ, localizado num bairro da Zona Norte do município do Rio de Janeiro. Sendo este o Colégio de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, são encontradas algumas peculiaridades tanto de ordem administrativa quanto de procedimentos pedagógicos. A seleção de professores com graduação completa é realizada através de concurso. A partir do ano de 2003, passou-se a exigir o grau de Mestre. O ingresso dos alunos na escola pode ocorrer de duas formas: sorteio público, realizado para a Classe de Alfabetização , e para a 5ª série do ensino fundamental, através prova escrita.
O trabalho pedagógico realizado nessa escola vem se destacando no Estado do Rio de Janeiro como um trabalho diferente dos encontrados nas demais escolas. Residindo principalmente, no fato de os professores pensarem e repensarem continuamente a prática pedagógica vem contribuindo para que o trabalho seja aprimorado numa perspectiva de “casamento” da teoria com a prática, contribuindo no aprimoramento da construção da escola e do ensino.

3.2 Sujeitos envolvidos

Será realizado um estudo transversal com dez alunos de CA, 2ª e 4ª séries do ensino fundamental e seus professores. Um estudo com tal característica pode revelar aspectos do processo de construção do estilo e da autoria. O processo se amplia e se aprofunda ao longo das séries? Como isso acontece? Ou não acontece?
Penso, como um critério para a escolha dos sujeitos envolvidos na pesquisa, a seleção de alunos oriundos de diferentes segmentos sociais. Para tanto, farei um questionário sócio-econômico. Pretendo estar realizando a seleção desses alunos através de conversa com as professoras e de consulta às fichas escolares.

3.3 Material de pesquisa

Observação em sala de aula, textos escritos na escola pelos alunos selecionados, durante o desenvolvimento de um projeto de trabalho a ser combinado com as professoras; entrevistas com os alunos; e levantamento das condições de letramento das famílias em fichas da escola e, se necessário, entrevista com os pais dos alunos selecionados.

3.4 Procedimentos de coleta dos dados

1) Conversa com as professoras de CA, 2ª e 4ª séries, para explicar a pesquisa e definição conjunta de um projeto de trabalho que envolva a produção de textos pelos alunos de um determinado gênero do discurso;
2) Seleção dos alunos;
3) Observação das aulas com a finalidade de acompanhar o desenvolvimento das atividades de produção de textos escritos;
4) Levantamento dos dados das crianças em fichas da escola;
5) Entrevistas com os alunos e professores;
6) Conversa com os alunos envolvidos na pesquisa sobre algumas de suas produções.

Questões iniciais estão sendo consideradas: Como os gêneros do discurso são construções sociais, é preciso que os alunos se familiarizem com o gênero selecionado para que venham a produzir textos neste gênero. Estamos considerando que, para alcançar o objetivo do estudo, devemos selecionar um gênero cuja discursividade característica não seja a narrativa, já que alguns desses gêneros, como os contos, por exemplo, apresentam uma certa estereotipia. Outra consideração importante reside no fato de não ter a intenção de mudar o planejamento de trabalho da turma no sentido de oferecer um tipo de gênero a ser trabalhado para a pesquisa. Na verdade, escolherei um tipo de gênero discursivo que será (ou estará sendo) trabalhado no decorrer do ano letivo. Então, a partir das possibilidades oferecidas pelas professoras, vou trabalhar com dois gêneros: o fichamento e o relato.

REFERÊNCIAS

ABAURRE, Maria Bernadete Marques. A emergência do estilo: as marcas de construção de autoria em textos representativos da aquisição da linguagem de um mesmo sujeito, da pré-escola ao segundo grau. (Relatório Parcial de Projeto de Pesquisa)–Universidade de Campinas, Campinas, SP, 1999.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.
BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1999.
FRANCHI, Carlos. Linguagem: atividade constitutiva. In: ______. Almanaque 5. São Paulo: Brasiliense, 1977. p. 9-27.
GINZBURG, C. Mitos emblemas e sinais-morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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KLEIMAN, Ângela B. (Org.) Os significados do letramento. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1995.
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SOARES, M. B. Leitura, escrita, sociedade e cultura. Relações, dimensões e perspectiva. Revista Brasileira de Educação, n. zero, Caxambu, set./dez. 1995, p. 5-16.
SOARES, M. B. Letramento um tema em três gêneros. 2. ed. 3. reimp., Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e alfabetização. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2004. (Coleção Questões de Nossa Época, v. 47).

 
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