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  ONTEM, FRACASSADOS NA ESCOLA; HOJE, GRANDES ESCRITORES

Lilian Cristine Ribeiro Nascimento

Nossa sociedade, cuja característica a escola repete e reforça, tem a norma, a regularidade e a homogeneidade como funções essenciais. É comum, por esta razão, relacionarmos o fracasso escolar com o fracasso profissional e social na vida adulta, ou seja, supormos que haveria uma predeterminação do insucesso ou sucesso na escola com o futuro profissional ou social do indivíduo.
Nosso cotidiano, no entanto, está repleto de exemplos que negam esta relação. Basta observar o grande número de pessoas que à revelia do que lhe previam seus professores, são profissionais bem sucedidos nas atividades que escolheram.
Casos de alguns escritores ilustres nos fazem questionar a afirmação de que o sucesso escolar tenha alguma determinação sobre a vida profissional futura ou mesmo com a relação do sujeito com a linguagem escrita. Poderíamos supor que se fracassaram em seus primeiros contatos com a escrita, esses indivíduos não fariam da escrita sua função laborial. Mas a realidade de muitos escritores contrariam essa suposição.
Foi o que ocorreu com Gabriel Garcia Márquez, o famoso escritor colombiano, Prêmio Nobel de literatura.
Em seu livro Viver para contar o escritor narra sua biografia e nos encanta com a memória de sua infância e adolescência, período onde os relatos sobre a escola são destaque. Fascinante, a narrativa revela que Gabriel Garcia Márquez não teve um contato inicial harmonioso com a língua escrita, mas ao contrário, sua vida escolar foi repleta de percalços e tropeços.
No início da vida escolar, sobre sua alfabetização, ele nos conta:

Eu demorei muito para aprender a ler. Não me parecia lógico que a letra m se chamasse eme, e com a vogal seguinte não fosse emea e sim ma. Para mim, era impossível ler desse jeito. Quando cheguei ao Montessori a professora não me ensinou os nomes e sim o som das consoantes. E assim pude ler o primeiro livro que encontrei no depósito de casa. (Márquez, 2002: 94-95)

O relato me faz ainda refletir como a identificação da criança com o método pode favorecer a aprendizagem. Percebe-se aí a manifestação das singularidades. Para ele, aprender o som das letras fez toda a diferença, o que talvez não fosse significativo para outra criança.
Sobre o método o autor escreve:

Não creio que exista método melhor que o montessoriano para sensibilizar as crianças na beleza e para despertar nelas a curiosidade pelos segredos da vida. (Márquez, 2002: 94)

Não estou aqui querendo fazer uma apologia ao método montessoriano, mas apontar para que a identificação da criança com a proposta da escola pode ser o diferencial para a aprendizagem. É quando o desejo do outro se torna o meu desejo.
Continuando sua narrativa, Márquez chega ao ensino secundário, onde novos sobressaltos o atormentam: a perseguição de um professor que o interroga com questões as quais ele não sabe responder. Sobre este tempo Márquez conta:

...cada vez que eu estava em algum grupo, ele caçoava, morrendo de rir, dizendo que eu era o único do terceiro ano primário que ia bem no secundário. Hoje entendo que ele tinha razão. Principalmente por causa da ortografia, que foi meu calvário ao longo de todos os meus estudos e continua assustando os revisores de meus originais. Os mais benévolos se consolam achando que são tropeços de datilografia. (idem: 1153)

Interessante e intrigante ao mesmo tempo, esta confissão de Márquez sobre sua dificuldade em ortografia, refuta a asserção de que a ortografia se aprende pela abundância de leitura. Desde que aprendeu a ler, Márquez tornou-se um leitor voraz, como ele mesmo refere, sem que isso modificasse sua capacidade de escrever segundo as regras ortográficas:

O vício de ler o que me caísse nas mãos ocupava meu tempo livre e quase todo o tempo as aulas. (...) Lia nas aulas, com o livro aberto sobre os joelhos, e com tamanho descaramento que minha impunidade só parecia possível graças à cumplicidade dos professores (...) ainda não entendo como é que os professores cuidavam tanto de mim sem dar berros de escândalo pela minha ortografia ruim. Era o contrário de minha mãe, que escondia de papai algumas de minhas cartas para mantê-lo vivo, e outras me devolvia corrigidas e às vezes com seus parabéns por certos progressos gramaticais e o bom uso da palavras. Mas depois de dois anos não houve melhoras à vista. Hoje, meu problema continua sendo o mesmo: jamais consegui entender por que se admitem letras mudas ou duas letras diferentes com o mesmo som, e tantas outras normas ociosas. (ìdem: 154- 155)

Seria Gabriel Garcia Márquez considerado pela escola atual, com todo seu olhar dominado pela medicina, uma criança com "dificuldade de aprendizagem"? Seriam tão benevolentes os professores se o encontrassem hoje nos bancos escolares? Teria ele persistido em seu desejo de ser escritor caso não tivesse tido a cumplicidade dos professores que "cuidavam dele", como ele refere, professores estes que valorizaram seus conhecimentos, sua capacidade de oratória, de desenho, de escrever poemas, independente da forma ortográfica?
Além da ortografia, a aritmética era também o padecimento de Gabriel Garcia Márquez:

Até hoje, para fazer uma soma mental, preciso desbaratar os números em seus componentes mais fáceis, em especial o sete e o nove, cujas tabuadas jamais consegui decorar. Assim, para somar sete e quatro tiro dois do sete, somo quatro ao cinco que me sobrou e no final torno a somar o dois: onze! A multiplicação sempre me falhou porque nunca pude recordar os números que levava na memória. Dediquei à álgebra meus melhores esforços, não só por respeito à estirpe clássica mas também pelo carinho e terror que sentia pelo professor. Tudo inútil. Fui reprovado em cada trimestre, tentei reabilitá-la duas vezes e a perdi em outra tentativa ilícita que me concederam por caridade.

É admirável a forma como Gabriel Garcia Márquez, devido à sua dificuldade, cria uma estratégia para somar, atestando mais uma vez sua capacidade intelectual, pois ao invés de tentar se adequar à forma de somar ensinada na escola, o faz de maneira criativa.
Outro personagem ilustre da literatura, este nosso conterrâneo, porém não contemporâneo como Garcia Márquez, é o também premiado escritor Graciliano Ramos. Este alagoano nascido em 1892, pouco após a libertação da escravatura - embora na prática a liberdade não se fizesse realidade para muitos negros, como bem nos relata no seu livro Infância - e da proclamação da república, viveu também experiências terríveis no seus contatos iniciais com a escrita.
Na obra acima citada, Graciliano Ramos nos conta que, tendo tido como primeiro mestre o severo e autoritário pai, sofreu as dores da incapacidade de relacionar os sons e as letras, vividas não só moralmente, como também fisicamente, recebendo com freqüência castigos físicos, realizados com a palmatória ou o côvado, como ele relata:

Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou - e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me. Atirava rápido meia dúzia de letras, ia jogar solo. À tarde pegava um côvado, levava-me para a sala de visitas - e a lição era tempestuosa. Se não visse o côvado, eu ainda poderia dizer qualquer coisa. Vendo-o, calava-me. Um pedaço de madeira, negro, pesado, da largura de quatro dedos. (Ramos, 1995: 96)

E o pai, diante de sua inabilidade, talvez própria de leitor iniciante, imprimia-lhe o brutal castigo, batendo-lhe nas mãos, como o autor nos conta:

As pobres mãos inchadas, as palmas vermelhas, arroxeadas, os dedos grossos mal se movendo. Latejavam, como se funcionassem relógios dentro delas. Era preciso erguê-las. Finda a tortura, sentava-me num banco da sala de jantar, estirava os braços em cima da mesa, procurando esquecer as palpitações dolorosas. (Ramos, 1995, 98)

Após tentativas vãs de ensino doméstico, o menino Graciliano é colocado na escola e inúmeros professores que tentam lhe ensinar a dar sons às letras, não conseguem seu intento. Muda-se diversas vezes de escola, por mudança da família de endereço, mas o sofrimento se arrasta, pois ler lhe parece impossível. Para ele era impossível diferenciar principalmente as letras T e D. Sobre aquele momento relata:

Enfim consegui familiarizar-me com as letras quase todas. Aí me exibiram outras vinte e cinco, diferentes das primeiras e com os mesmos nomes delas (...) Um inferno. Resignei-me venci as malvadas. Duas, porém, se defenderam: as miseráveis dentais que ainda hoje me causam dissabores quando escrevo. (Ramos, 1995: 97)

Em outro trecho, volta a comentar sobre o sofrível contato com as letras:

Vozes impacientes subiam, transformavam-se em gritos, furavam-me os ouvidos; as minhas mãos suadas se encolhiam, experimentando nas palmas o rigor das pancadas, suprimia a fala; e as duas consoantes inimigas dançavam: d, t. esforçava-me por esquecê-las revolvendo a terra, construindo montes, abrindo rios e açudes. (Ramos, 1995: 101)

Já na escola, seu desalento continua: Avizinhava-me dos sete anos, não conseguia ler e meus rascunhos eram pavorosos (Ramos, 1995: 120). Mesmo dois ou três anos após o início de seu contato com a escrita, ainda não é possível para ele dar sentido ao que lê. Ele diz: Aos nove anos, era quase analfabeto (Ramos, 1995: 187). Interessante, porém, é verificar que ao narrar, já adulto, estes fatos de sua infância, Graciliano pôde enfim, determinar o causador de seu fracasso: o Barão de Macaúbas. Relata que ao receber o segundo livro na escola, após ter vencido com muita dificuldade a primeira carta (livro que ensinava as letras), imaginava a possibilidade de ler histórias interessantes. No entanto, depara-se com contos estranhos e enfadonhos, nos quais a personagem principal, um menino, conversa com um passarinho e uma aranha, que lhe ditam preceitos morais, escritos em linguagem inacessível por um tal Barão de Macaúbas. Seu fracasso é atribuído à falta de sentido da leitura que lhe ofereceram.

Certamente não foi o segundo livro a causa única do meu infortúnio. Houve outras, sem dúvida. Julgo, porém, que o maior culpado foi ele. (Ramos, 1995: 115).

Corroboram esta conclusão, os fatos que se seguiram após seus nove anos. Por imposição de seu pai, iniciou a leitura de um livro de aventuras, o qual lia em voz alta ... mastigando as palavras, gaguejando, gemendo uma cantinela medonha, indiferente à pontuação, saltando linhas e repisando linhas (ídem: 188). Sob a escuta de seu pai, foi interessando-se pela história, que narrava sobre um casal que andava na floresta com seus filhos, perseguidos por lobos e cachorros selvagens. A história vai causando-lhe fascínio, lida um pouco a cada noite. Após quatro dias, no entanto, seu pai desistiu da tarefa que lhe havia atribuído, ou seja, de que lesse em voz alta trechos do livro diariamente, e o garoto sentiu imensa decepção. Procurou, então, por sua prima Emília, um pouco mais velha que ele, e pediu-lhe que o auxiliasse na leitura. Sua prima nega-lhe ajuda e propõe que o faça sozinho. Graciliano tenta argumentar:

Longamente lhe expus a minha fraqueza mental, a impossibilidade de compreender as palavras difíceis, sobretudo na ordem terrível em que se juntavam. Se eu fosse como os outros, bem; mas era bruto em demasia, todos me achavam bruto em demasia.
Emília combateu a minha convicção, falou-me dos astrônomos, indivíduos que liam no céu, percebiam tudo quanto há no céu (...) Ora, se eles enxergavam coisas tão distantes, porque não conseguiria eu adivinhar a página aberta diante de meus olhos? Não distinguia as letras? Não sabia reuni-las e formar palavras? (Ramos, 1995: 191)

E assim, seguindo ao conselho da prima, Graciliano Ramos embrenhou-se no mundo da literatura, desvendando-a com dificuldade, consultando o dicionário até torná-la familiar. Criou até mesmo coragem, contrariando sua timidez, para pedir emprestados livros ao tabelião da cidade, que de bom grado lhe emprestou obras clássicas como O Guarani. Tornou-se um leitor voraz. Por esta época, novamente mudou-se de escola e sobre este tempo nos conta:

Surgiu na cidade uma espécie de colégio e introduziram-me nele. Quando cheguei, o diretor, insinuante, macio, ditou meia dúzia de linhas a diversos novatos. Emendou e classificou os ditados; pegou o meu, horrorizou-se, escreveu na margem larga do almaço: incorrigível. Esta dura sentença não me abalou. Até me envaideci um pouco vendo a minha escrita diferentes das outras. (Ramos, 1995: 213).

A partir deste momento, acredito que Graciliano Ramos subverteu seu destino de fracassado. Não lhe importava mais os qualificativos que lhe atribuíam os professores, seu pacto com a leitura se fizera por outro caminho, se fizera pelo prazer de desvendar os mistérios da literatura. Aos doze anos tornou-se diretor de um jornal da escola, onde publicou sua primeira história: O pequeno mendigo, definindo de vez qual seria seu relacionamento com a escrita, bem diferente do que lhe impunham na escola.
Mais críticos à escola que Gabriel Garcia Márquez e Graciliano Ramos, os escritores brasileiros Gilberto Dimenstein e Rubem Alves também contam a história de suas infâncias no livro Fomos maus alunos. Neste livro, os autores dialogam contando suas dificuldades de se enquadrarem àquilo que esperavam deles na escola. Giberto Dimenstein conta:

Ao mesmo tempo, além do problema de déficit de atenção, havia sintomas de hiperatividade - naquela época não se sabia o que era isso - eu ainda babava (...) Meu apelido é Gil Babão (...) Eu não aprendia, não entendia a minha letra, não conseguia reter nada. (...) Eu não conseguia ficar parado em sala de aula. Tentava ter caderno, mas não conseguia manejar a idéia de ter um caderno. Então matemática era uma tragédia, português era uma tragédia, todas as matérias eram uma tragédia. A vida escolar, para mim, era a história de um fracasso. (Dimenstein e Alves, 2003: 15-16)

Já Rubem Alves, não teve problemas de se adequar ao que dele esperavam na escola, mas seu desinteresse pelos assuntos escolares foi crescente e a discriminação que sentia era mais por falar de maneira diferente (era mineiro numa escola do Rio de Janeiro):

Foi a fase mais difícil da minha vida. Eu era ridicularizado. Não babava, mas falava carhne. Não tinha amigos, não me interessava pelas disciplinas, tinha raiva dos professores...Os professores não tinham o menor interesse pelas coisas da gente...Naquele tempo, o professor entrava na sala e começava a andar de um lado para o outro, ditando a matéria. A função do aluno era copiar a matéria. (Dimenstein e Alves, 2003: 25)

Os dois meninos crescem e tornam-se escritores, e mais do que isto envolvem-se com a educação. Rubem Alves tem inúmeros livros sobre o assunto e o jornalista Dimenstein desenvolve um projeto educacional, um laboratório de pedagogia comunitária em São Paulo, denominado Aprendiz.
Ambos acreditam que escola erra ao matar na criança a curiosidade, ou como escreve Dimenstein: A escola é o antiprazer da incógnita.
Sobre o fato de terem se tornado escritores apesar da experiência fracassada na escola, os autores analisam como uma superação ou até mesmo como uma vingança:

Rubem: (...) Eu já tive essa experiência: eu fracassei, mas vejam, agora, eu triunfei a despeito de vocês. Psicanaliticamente falando, é uma forma de exercer uma vingança de uma maneira inversa: Não precisei da escola para fazer o que faço.
Gilberto: Pior do que não precisar, tive que matar a escola dentro de mim - como você tem que matar o seu pai para poder crescer - para poder exercer esse papel de palhaço educativo.(...) (Dimenstein e Alves, 2003: 79)

O relato destes escritores me faz pensar sobre quantos escritores brilhantes estão escondidos atrás de crianças que consideramos com "dificuldades", a quem talvez inibimos a possibilidade de mostrar o conteúdo de sua escrita, por exigirmos a forma correta.
Kupfer e Petri (2000) nos ajudam a refletir sobre isso quando afirmam:

A preocupação com os problemas de aprendizagem de leitura e da escrita na escola moderna é tão grande, que muitos educadores acabam por reduzir a imensa capacidade de aprender de uma criança ao seu repertório de habilidades para ler e escrever. (p. 116)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DIMENSTEIN, G. e ALVES, R. Fomos maus alunos. Campinas: Papirus: 2003

KUPFER, M. C. M. E PETRI, R. "Porque ensinar a quem não aprende". Estilos da clínica. Vol. V, nº 9, 2º semestre de 2000

MÁRQUEZ, GABRIEL GARCIA. Viver para contar. Tradução de Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro - São Paulo: Record, 2003

RAMOS, G. Infância. .São Paulo: Record, 1994

 
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