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ONTEM,
FRACASSADOS NA ESCOLA; HOJE, GRANDES ESCRITORES
Lilian Cristine Ribeiro Nascimento Nossa sociedade, cuja característica a escola repete
e reforça, tem a norma, a regularidade e a homogeneidade como funções
essenciais. É comum, por esta razão, relacionarmos o fracasso
escolar com o fracasso profissional e social na vida adulta, ou seja,
supormos que haveria uma predeterminação do insucesso ou
sucesso na escola com o futuro profissional ou social do indivíduo. Eu demorei muito para aprender a ler. Não me parecia lógico que a letra m se chamasse eme, e com a vogal seguinte não fosse emea e sim ma. Para mim, era impossível ler desse jeito. Quando cheguei ao Montessori a professora não me ensinou os nomes e sim o som das consoantes. E assim pude ler o primeiro livro que encontrei no depósito de casa. (Márquez, 2002: 94-95) O relato me faz ainda refletir como a identificação
da criança com o método pode favorecer a aprendizagem. Percebe-se
aí a manifestação das singularidades. Para ele, aprender
o som das letras fez toda a diferença, o que talvez não
fosse significativo para outra criança. Não creio que exista método melhor que o montessoriano para sensibilizar as crianças na beleza e para despertar nelas a curiosidade pelos segredos da vida. (Márquez, 2002: 94) Não estou aqui querendo fazer uma apologia ao método
montessoriano, mas apontar para que a identificação da criança
com a proposta da escola pode ser o diferencial para a aprendizagem. É
quando o desejo do outro se torna o meu desejo. ...cada vez que eu estava em algum grupo, ele caçoava, morrendo de rir, dizendo que eu era o único do terceiro ano primário que ia bem no secundário. Hoje entendo que ele tinha razão. Principalmente por causa da ortografia, que foi meu calvário ao longo de todos os meus estudos e continua assustando os revisores de meus originais. Os mais benévolos se consolam achando que são tropeços de datilografia. (idem: 1153) Interessante e intrigante ao mesmo tempo, esta confissão de Márquez sobre sua dificuldade em ortografia, refuta a asserção de que a ortografia se aprende pela abundância de leitura. Desde que aprendeu a ler, Márquez tornou-se um leitor voraz, como ele mesmo refere, sem que isso modificasse sua capacidade de escrever segundo as regras ortográficas: O vício de ler o que me caísse nas mãos ocupava meu tempo livre e quase todo o tempo as aulas. (...) Lia nas aulas, com o livro aberto sobre os joelhos, e com tamanho descaramento que minha impunidade só parecia possível graças à cumplicidade dos professores (...) ainda não entendo como é que os professores cuidavam tanto de mim sem dar berros de escândalo pela minha ortografia ruim. Era o contrário de minha mãe, que escondia de papai algumas de minhas cartas para mantê-lo vivo, e outras me devolvia corrigidas e às vezes com seus parabéns por certos progressos gramaticais e o bom uso da palavras. Mas depois de dois anos não houve melhoras à vista. Hoje, meu problema continua sendo o mesmo: jamais consegui entender por que se admitem letras mudas ou duas letras diferentes com o mesmo som, e tantas outras normas ociosas. (ìdem: 154- 155) Seria Gabriel Garcia Márquez considerado pela
escola atual, com todo seu olhar dominado pela medicina, uma criança
com "dificuldade de aprendizagem"? Seriam tão benevolentes
os professores se o encontrassem hoje nos bancos escolares? Teria ele
persistido em seu desejo de ser escritor caso não tivesse tido
a cumplicidade dos professores que "cuidavam dele", como ele
refere, professores estes que valorizaram seus conhecimentos, sua capacidade
de oratória, de desenho, de escrever poemas, independente da forma
ortográfica? É
admirável a forma como Gabriel Garcia Márquez, devido à
sua dificuldade, cria uma estratégia para somar, atestando mais
uma vez sua capacidade intelectual, pois ao invés de tentar se
adequar à forma de somar ensinada na escola, o faz de maneira criativa.
Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou - e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me. Atirava rápido meia dúzia de letras, ia jogar solo. À tarde pegava um côvado, levava-me para a sala de visitas - e a lição era tempestuosa. Se não visse o côvado, eu ainda poderia dizer qualquer coisa. Vendo-o, calava-me. Um pedaço de madeira, negro, pesado, da largura de quatro dedos. (Ramos, 1995: 96) E o pai, diante de sua inabilidade, talvez própria de leitor iniciante, imprimia-lhe o brutal castigo, batendo-lhe nas mãos, como o autor nos conta: As pobres mãos inchadas, as palmas vermelhas, arroxeadas, os dedos grossos mal se movendo. Latejavam, como se funcionassem relógios dentro delas. Era preciso erguê-las. Finda a tortura, sentava-me num banco da sala de jantar, estirava os braços em cima da mesa, procurando esquecer as palpitações dolorosas. (Ramos, 1995, 98) Após tentativas vãs de ensino doméstico, o menino Graciliano é colocado na escola e inúmeros professores que tentam lhe ensinar a dar sons às letras, não conseguem seu intento. Muda-se diversas vezes de escola, por mudança da família de endereço, mas o sofrimento se arrasta, pois ler lhe parece impossível. Para ele era impossível diferenciar principalmente as letras T e D. Sobre aquele momento relata: Enfim consegui familiarizar-me com as letras quase todas. Aí me exibiram outras vinte e cinco, diferentes das primeiras e com os mesmos nomes delas (...) Um inferno. Resignei-me venci as malvadas. Duas, porém, se defenderam: as miseráveis dentais que ainda hoje me causam dissabores quando escrevo. (Ramos, 1995: 97) Em outro trecho, volta a comentar sobre o sofrível contato com as letras: Vozes impacientes subiam, transformavam-se em gritos, furavam-me os ouvidos; as minhas mãos suadas se encolhiam, experimentando nas palmas o rigor das pancadas, suprimia a fala; e as duas consoantes inimigas dançavam: d, t. esforçava-me por esquecê-las revolvendo a terra, construindo montes, abrindo rios e açudes. (Ramos, 1995: 101) Já
na escola, seu desalento continua: Avizinhava-me dos sete anos, não
conseguia ler e meus rascunhos eram pavorosos (Ramos, 1995: 120). Mesmo
dois ou três anos após o início de seu contato com
a escrita, ainda não é possível para ele dar sentido
ao que lê. Ele diz: Aos nove anos, era quase analfabeto (Ramos,
1995: 187). Interessante, porém, é verificar que ao narrar,
já adulto, estes fatos de sua infância, Graciliano pôde
enfim, determinar o causador de seu fracasso: o Barão de Macaúbas.
Relata que ao receber o segundo livro na escola, após ter vencido
com muita dificuldade a primeira carta (livro que ensinava as letras),
imaginava a possibilidade de ler histórias interessantes. No entanto,
depara-se com contos estranhos e enfadonhos, nos quais a personagem principal,
um menino, conversa com um passarinho e uma aranha, que lhe ditam preceitos
morais, escritos em linguagem inacessível por um tal Barão
de Macaúbas. Seu fracasso é atribuído à falta
de sentido da leitura que lhe ofereceram. Corroboram esta conclusão, os fatos que se seguiram após seus nove anos. Por imposição de seu pai, iniciou a leitura de um livro de aventuras, o qual lia em voz alta ... mastigando as palavras, gaguejando, gemendo uma cantinela medonha, indiferente à pontuação, saltando linhas e repisando linhas (ídem: 188). Sob a escuta de seu pai, foi interessando-se pela história, que narrava sobre um casal que andava na floresta com seus filhos, perseguidos por lobos e cachorros selvagens. A história vai causando-lhe fascínio, lida um pouco a cada noite. Após quatro dias, no entanto, seu pai desistiu da tarefa que lhe havia atribuído, ou seja, de que lesse em voz alta trechos do livro diariamente, e o garoto sentiu imensa decepção. Procurou, então, por sua prima Emília, um pouco mais velha que ele, e pediu-lhe que o auxiliasse na leitura. Sua prima nega-lhe ajuda e propõe que o faça sozinho. Graciliano tenta argumentar: Longamente
lhe expus a minha fraqueza mental, a impossibilidade de compreender as
palavras difíceis, sobretudo na ordem terrível em que se
juntavam. Se eu fosse como os outros, bem; mas era bruto em demasia, todos
me achavam bruto em demasia. A partir
deste momento, acredito que Graciliano Ramos subverteu seu destino de
fracassado. Não lhe importava mais os qualificativos que lhe atribuíam
os professores, seu pacto com a leitura se fizera por outro caminho, se
fizera pelo prazer de desvendar os mistérios da literatura. Aos
doze anos tornou-se diretor de um jornal da escola, onde publicou sua
primeira história: O pequeno mendigo, definindo de vez qual seria
seu relacionamento com a escrita, bem diferente do que lhe impunham na
escola. Ao mesmo tempo, além do problema de déficit de atenção, havia sintomas de hiperatividade - naquela época não se sabia o que era isso - eu ainda babava (...) Meu apelido é Gil Babão (...) Eu não aprendia, não entendia a minha letra, não conseguia reter nada. (...) Eu não conseguia ficar parado em sala de aula. Tentava ter caderno, mas não conseguia manejar a idéia de ter um caderno. Então matemática era uma tragédia, português era uma tragédia, todas as matérias eram uma tragédia. A vida escolar, para mim, era a história de um fracasso. (Dimenstein e Alves, 2003: 15-16) Já Rubem Alves, não teve problemas de se adequar ao que dele esperavam na escola, mas seu desinteresse pelos assuntos escolares foi crescente e a discriminação que sentia era mais por falar de maneira diferente (era mineiro numa escola do Rio de Janeiro): Foi a fase mais difícil da minha vida. Eu era ridicularizado. Não babava, mas falava carhne. Não tinha amigos, não me interessava pelas disciplinas, tinha raiva dos professores...Os professores não tinham o menor interesse pelas coisas da gente...Naquele tempo, o professor entrava na sala e começava a andar de um lado para o outro, ditando a matéria. A função do aluno era copiar a matéria. (Dimenstein e Alves, 2003: 25) Os dois
meninos crescem e tornam-se escritores, e mais do que isto envolvem-se
com a educação. Rubem Alves tem inúmeros livros sobre
o assunto e o jornalista Dimenstein desenvolve um projeto educacional,
um laboratório de pedagogia comunitária em São Paulo,
denominado Aprendiz. Rubem: (...)
Eu já tive essa experiência: eu fracassei, mas vejam, agora,
eu triunfei a despeito de vocês. Psicanaliticamente falando, é
uma forma de exercer uma vingança de uma maneira inversa: Não
precisei da escola para fazer o que faço. O relato
destes escritores me faz pensar sobre quantos escritores brilhantes estão
escondidos atrás de crianças que consideramos com "dificuldades",
a quem talvez inibimos a possibilidade de mostrar o conteúdo de
sua escrita, por exigirmos a forma correta. A preocupação com os problemas de aprendizagem de leitura e da escrita na escola moderna é tão grande, que muitos educadores acabam por reduzir a imensa capacidade de aprender de uma criança ao seu repertório de habilidades para ler e escrever. (p. 116)
DIMENSTEIN,
G. e ALVES, R. Fomos maus alunos. Campinas: Papirus: 2003 |
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