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  A MEMÓRIA E A TRANSMISSÃO DE SABERES  


Ana Paula Silva Oliveira - PUC-CAMPINAS

 


“(...)
A roda qu’eu fio nela
Ô baiana, oi ai ai
Sabe lê, sabe escrever
Ô baiana, oi ai ai
Também sabe me cont ar
Ô baiana, oi ai ai
Quanto custa um bem querer
Ô baiana, oi ai ai. (...)”


A proposta desta comunicação é refletir a respeito da transmissão de saberes tradicionais por meio da memória. Para isso, serão analisados alguns trechos de depoimentos de tecelãs da cidade de Berilo, localizada no Vale do Jequitinhonha, região situada no noroeste do estado de Minas Gerais. Ao transmitir seu ofício por meio dos fios da própria narrativa, essas educadoras das memórias não formadas nas escolas formais, mas sim no próprio espaço familiar a partir da tradição, tecem suas experiências e compartilham com outras gerações. Ao estudar esses mecanismos de rememoração, percebe-se a memória como produção de conhecimento em que sensibilidades, saberes e identidades se relacionam.

Para tanto, a produção do ofício não pode ser considerada isolada das situações sócio-históricas em que se realiza. Isso implica em situar que algumas imagens do Vale do Jequitinhonha o descrevem como um Vale de Lágrimas, miserável, em que os números referentes ao desemprego, a pobreza e a fome são alarmantes. A região está dividida em Alto, Médio e Baixo Jequitinhonha. Ocupa uma área de mais de 85 mil km2 onde habitam aproximadamente 1 milhão de pessoas, distribuídas em cerca de 80 municípios. Aproximadamente 75% da população vive na área rural praticando agricultura e pecuária. Traz um processo histórico de colonização o que representa um período significativo da história de Minas e do Brasil: o ciclo do ouro e diamante.

O município de Berilo está situado no Médio Jequitinhonha, aproximadamente 660 quilômetros de Belo Horizonte. É drenado por vários córregos, pelo Ribeirão do Altar e pelo Rio Araçuaí que divide a cidade. Sua economia baseia-se na agropecuária, principalmente no rebanho leiteiro. Possui uma média de 13.000 habitantes, cerca de 10.000 na zona rural.

Sua história está ligada à exploração de ouro realizada por bandeirantes paulistas no princípio do século XVIII. Como marcos da cidade existem a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, tombada pelo IPHAN e o casarão colonial de Abreu Vieira, fundador do povoado de Água Suja, hoje Berilo. Com a decadência da mineração, os habitantes passaram a dedicar-se ao cultivo de feijão, milho e algodão. Atualmente, está em construção no local a Usina Hidrelétrica de Irapé, no Rio Jequitinhonha, com 205 metros de altura, reservatório de 134 km2 e capacidade de gerar 360 megawatts de energia.

A escolha desse universo social e cultural deve-se ao fato de haver no lugar todas as etapas referentes ao processo da fiação e tecelagem e também por manter as características artesanais, sem marcas do processo de industrialização.

Foram colhidos depoimentos que salientam a importância dessa arte popular e os procedimentos relacionados a esse fazer. Utilizou-se um diário de campo, um gravador e uma câmera de vídeo. Por meio desses registros, foi possível gravar as palavras e gestos das artesãs. Os relatos, colhidos com a utilização de câmera de vídeo, foram transcritos de maneira a reproduzir com a máxima fidelidade possível o discurso do sertanejo. Além disso, o registro das imagens permitiu observar cuidadosamente a oralidade presente nos relatos, pois, como afirma Paul Zumthor (1997, p.203), “a oralidade não se reduz à ação da voz. Expansão do corpo, embora não o esgote. A oralidade implica tudo o que, em nós, se endereça ao outro: seja um gesto mudo, um olhar”.

Vale ressaltar o alargamento temporal possibilitado pela gravação dos depoimentos. Essas imagens diferidas permitem uma observação repetida e diferenciada. Dessa maneira, as imagens videográficas estabelecem uma relação temporal com o sujeito estudado, pois será possível adiantar, voltar, pausar a fita e, com isso, criar uma oportunidade de rever as situações. Esse exame repetido e minucioso do material gravado permite um aprofundamento da análise, pois, dessa maneira, é possível observar os tempos fortes, fracos e mortos do ato de tecer.

O método de investigação da pesquisa foi o de ouvir, registrar, ler, analisar e interpretar histórias de vida com o objetivo de compreender o processo de atribuição de significados ocorridos no processo de tecelagem. Para isso, a convivência direta com as artesãs e suas famílias fez da observação participante o principal recurso de trabalho. Dessa maneira, foi realizado o que em Antropologia Social chama-se, a partir das idéias de Clifford Geertz (1989), de “descrição densa”.

Sendo assim, torna-se necessário mostrar como esse saber herdado de mãe para filha aparece nas lembranças desse grupo, principalmente, nas artesãs mais velhas, guardiãs da memória. Dessa maneira, a discussão sobre memória e narrativa permeia toda a pesquisa. Alguns teóricos auxiliarão nesse percurso. São eles: Walter Benjamin, Henri Bergson, Maurice Halbwachs e Michael Pollak.

Ao falar nas “experiências vividas” pelas famílias de artesãs/narradores, um diálogo com Walter Benjamin é estabelecido. Além disso, sua discussão a respeito dos conceitos de memória, modernidade capitalista e história pontua as reflexões.

As obras de Maurice Halbwachs(1990) e Henri Bergson (1990) analisam as lembranças como imagens que não aparecem prontas em nosso pensamento, pois são reconstruídas e atualizadas no presente .

Halbwachs nos anos 1920 e 1930 discute a questão da memória coletiva. Ele considera as lembranças possíveis somente ao nível da consciência e, para evocá-las, é sempre necessário recorrer ao outro, mesmo que não esteja presente, pois depende do grupo. Toma por base a concepção durkheimiana na qual o fato social é exterior ao indivíduo e deve, como tal, ser tratado como coisa.

Em vários momentos, estuda não somente como se dá o processo de seleção dos fatos lembrados, mas também a “negociação” realizada para conciliar as memórias coletiva e individual.

Halbwachs(1990) assim define a lembrança:

A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. Certamente, que se através da memória éramos colocados em contato diretamente com alguma de nossas antigas impressões, a lembrança se distinguia, por definição, dessas idéias mais ou menos precisas que nossa reflexão, ajudada pelos relatos, os depoimentos e as confidências dos outros, permite-nos fazer uma idéia do que foi o nosso passado.(p.71)

Se, por um lado, Halbwachs estuda a memória sob um enfoque social, pois depende do grupo, por outro, Bergson, considera-a em termos individuais, levando em conta a ação possível do corpo no processo de reconstrução da lembrança. A principal tese de sua obra Matéria e Memória(1990) é que o espírito e a matéria se relacionam por meio da memória. Para ele, as imagens dos acontecimentos passados estão completas na parte inconsciente do espírito, tal como foi para os indivíduos. No entanto, o comportamento do cérebro impede a lembrança de todas as suas partes.

Bergson distingue a lembrança pura, a lembrança-imagem e a percepção e, por meio da relação entre elas, mostra o mecanismo da memória. Ressalta a existência de uma lembrança em estado virtual que passa para o atual, desenhando seus contornos e colorindo sua superfície e, dessa forma, imita a percepção. No entanto, “continua presa ao passado por suas raízes profundas” .

Torna-se relevante para este estudo, a noção do tempo bergsoniano em que se tem um presente em função de um passado e de um futuro imediatos. Assim salienta o autor:

A verdade é que a memória não consiste, em absoluto, numa regressão do presente ao passado, mas, pelo contrário, num progresso do passado ao presente. É no passado que nos colocamos de saída. Partimos de um “estado virtual”, que conduzimos pouco a pouco, através de uma série de planos de consciência diferentes, até o termo em que ele se materializa numa percepção atual, isto é, até o ponto em que ele se torna um estado presente e atuante, ou seja, enfim, até esse plano extremo de nossa consciência em que se desenha nosso corpo. Nesse estado virtual consiste a lembrança pura.(p.196-97)

Para entender a memória em sua relação com a identidade, dois textos do sociólogo Michael Pollak serão fundamentais: Memória, Esquecimento e Silêncio (1989) e Memória e Identidade Social (1992).

Para Pollak a memória é seletiva, quase herdada e sofre flutuações dependendo do momento em que é articulada e expressa. Pode ser entendida como um fenômeno construído socialmente, no qual a interpretação se faz necessária. Estabelece seus elementos constitutivos em acontecimentos, pessoas e lugares, sendo possível haver projeções e transferências em relação a estes.

De acordo com seus estudos, a memória é uma operação coletiva das interpretações e acontecimentos do passado, entendida como um fenômeno construído tanto consciente quanto inconscientemente, submetido à flutuações, transformações e mudanças constantes .

Além disso, Pollak discute memória e identidade como valores negociados e disputados, havendo uma ligação fenomenológica muito estreita entre elas. Neste caso, toma-se o sentido de identidade na sua forma mais superficial, como o sentido da imagem de si, para si e para os outros.

As mestras do ofício

O interesse por esse tema surgiu a partir da leitura do artigo Os Ofícios Tradicionais (1996) da Profª Jerusa Pires Ferreira que enfoca a questão dos saberes tradicionais por meio dos relatos de um ferreiro, de um jardineiro cego e de uma tipógrafa. De acordo com a autora:

(...) o mestre de um ofício é sempre um sabedor, é alguém bastante diferenciado que encarna um semideus, um pactuante com o sobrenatural, um detentor de um tipo de liderança, sobretudo por ser aquele que transforma, que inaugura um novo estado cultural. É da sua memória que se projeta a construção do mundo.(p.103)

São três as “mestras de um ofício” apontadas pelos próprios habitantes de Berilo. Essas mestras, educadoras das memórias, não formadas nos saberes formais, mas sim nos aprendidos no próprio espaço familiar a partir da tradição, transmitem seu ofício por meio dos fios da própria narrativa. Trabalham a “matéria-prima da experiência” tecendo seus saberes e compartilhando com outras gerações.

Ao perguntar aos moradores da cidade de Berilo quem é a primeira tecelã, a resposta é quase sempre a mesma: dona Antônia de Isaac. O de é sinal de pertencimento e indica que Antônia é filha de Isaac. Cheguei em sua casa pela manhã. Estava sentada em frente à porta tomando um pouco de ar, pois não se sentia bem. Apertou minhas mãos e pediu para que rezasse juntamente com ela.

Dona Antônia tem 78 anos. Foi uma exímia tecelã, parteira, benzedeira e conselheira. Por um problema de saúde, não tece mais, dedicando-se às duas últimas atividades. Em meio a versos jogados, cantigas e lágrimas, lembra-se de quando lavava roupa nas águas do rio Araçuaí , deixava “alvinha” e seu canto podia ser ouvido do outro lado do rio.

O tempo todo gostava de enfatizar: “Não tenho leitura, mas tenho muita experiência”, ou então, “não sei bem, mas penso pra falar”. Entre um verso jogado e outro, lembra-se de como aprendeu a tecer:

Eu aprendi a tecer assim...eu aprendi tecer no tealzinho estreito que minha mãe tecia paninho, esses pano dessa largura(aponta para um pano de prato que estava bordando) as coberta cerrada no meio, não é? Depois que eu casei, que eu fiquei viúva, foi que eu fiz o tear largo. Eu mandei fazer. O moço já morreu. Morava em Francisco Badaró. Eu soube das coberta aí, que tinha uns tear largo. Eu garrei, mandei ele fazer o tear pra mim. O tear eu comprei. O tealzinho ele veio e concertou tudo pra mim. Aí eu comprei o pente, o liço...tem tudo lá em casa, né? Aí eu fui tecendo, mas ruim, ruim...com pouco, peguei tecer mesmo. Deus me ajudou. Eu vim assim, que ninguém nunca botava defeito.Olha aqui, ó. A primeira colcha que eu fiz pra Codevale .(Mostra uma foto) É Deus no céu e a Codevale na terra.

A ajuda recebida por Deus a que dona Antônia se refere é uma promessa que fez para Nossa Senhora dos Pobres, santa padroeira de Berilo. Viúva e com sete filhos pequenos, prometeu à santa que se ela lhe ajudasse a criar as crianças, ela faria a mais bonita das colchas em sua homenagem.

Outra mestra do ofício lembrada pelos moradores é dona Leontina. Tem 65 e tece há 52. Afirma que foi a primeira artesã de Berilo e que ensinou muitas das “meninas” de Roça Grande. Orgulha-se em dizer que “fiz até a 4ª série e com boas notas ainda”. Quando pergunto quem lhe ensinou a tecer, a resposta é a seguinte:

Minha mãe. Minha vó ensinou minha mãe, minha mãe me ensinou e nós vamos tocando o barco pra ver. E eu já ensinei minhas filhas todas.Nos intervalos delas estão sempre grudada mais eu. Ela falou assim:

- Mãe, duas coisas que a senhora deu pra nós que nós não vamos deixar de lado.Uma dessa filha minha, que dá aula e tece lá em Guaranilânda , perto de Jequitinhonha. Tem uma outra em Virgem da Lapa que trabalha no escritório de Contabilidade, mas ela tem o tearzinho dela lá no quintal dela. Ela tece também e tem uma outra que é evangélica e tece também. Ela tem o tear dela na casa dela, ou seja, ela tinha o tear dela na casa dela, mas ela tirou o tear e prefere tecer aqui comigo e daí por diante...mas minhas meninas falou pra mim. São duas coisas que a senhora me deu que nós não queremos deixar pra trás: uma é nosso estudo e também nossa tecelagem.

A partir dos relatos acima é possível notar que há uma disputa pelo domínio do saber. Percebe-se a memória como produção de conhecimento em que sensibilidades, saberes e identidades se relacionam. Dessa maneira, esses saberes socialmente produzidos são vistos a partir do sujeito produtor de conhecimentos, ou seja, do próprio mestre sabedor, no caso, o artesão. Na busca de um olhar educacional relativo à memória, pode-se pensar numa pedagogia da memória e da narrativa.

Nesse contexto, nota-se o entrelaçamento entre memória, cultura popular e educação. De acordo com Sônia Kramer (1993), “falar em educação é necessariamente tratar de ciência e de cultura” . No entanto, é necessário salientar que ao tratar-se de educação, leva-se em conta tanto a formal quanto a informal, pois esta “abrange todas as possibilidades educativas no decurso da vida do indivíduo, constituindo um processo permanente e não organizado.”

No entanto, tão importantes quanto os conhecimentos adquiridos na escola formal, institucionalizada, são aqueles aprendidos na escola informal dos “mestres sabedores”. Nela, costumes e tradições próprios da comunidade, advindos da cultura popular são transmitidos e compartilhados por diferentes gerações a partir da experiência vivida. Um exemplo de escolarização dessa prática social é dado por dona Leontina:

Essa menina minha que tece aí em Jequitinhonha (...) ela dá aula assim, pelo Estado, mas mesmo sendo as aulas dela pelo Estado, ela dá aula de tecelagem também naqueles horários e ganha pelo estado... Ela tem tantas horas que ela dá todo dia pelos alunos da tecelagem. Ela montou um bocado de tear lá(...)a aula dela de educação artística é no tear... Olha que coisa bonita, né? Olha que coisa linda.(...)Guaranilândia, fica pra lá de Jequitinhonha 60 kilômetros, Marlice. Ô filha, você enxerga o trabalho, você dá vontade ó, de abraçar e carregar tudo e coitadinha... ela agora tá sem poder trabalhar porque não tem matéria-prima. Ela teve aqui no final de semana e pediu: ô mãe, o que a senhora tiver aí, mãe passa pra mim que eu tô com umas colchas de encomenda e tô sem saber como é que eu faço e eu fui no pouquinho que eu tinha e tirei pra ela. O poquinho que tá sabendo, tá passando pros alunos.

Assim, ao pensar a escola como uma prática social e coletiva, torna-se necessário analisar sua participação na transmissão dos saberes relativos ao ofício dentro da sociedade rural pesquisada. Isso implica em entender de que maneira a percepção de mundo, costumes e valores das famílias são transmitidos às crianças e jovens por meio da escola, pensando nesses sujeitos como cidadãos incluídos na história local.

A outra mestra lembrada pelos moradores foi dona Maria Joana. No entanto, não foi possível colher seu depoimento, pois estava atarefada com os preparativos para a ordenação presbiterial do seu filho Delmiro, realizada no período em que fiz a pesquisa de campo no local.

“Não pode deixar acabar as coisas que têm no lugar”

Embora se entenda que a memória e seu processo transmissivo garantam a permanência desse saber tradicional, o que aparece no relato das artesãs é o medo de que o ofício desapareça. Para dona Antônia, há o risco dessa arte acabar, pois “hoje, as tecelonas são poucas. As mais velhas morreu e as mais novas foi pra São Paulo.”

Dona Estela, 54 anos, aprendeu a tecer com dona Antônia. Mora em Roça Grande desde os três anos de idade. Lembro-me do dia em que cheguei em sua casa, me apresentei e fui convidada a entrar com o tradicional “chegue pra cá”. Trabalhando no tear, no quintal de sua casa, entre uma laçada e outra dizia que “pessoa que não tem leitura não sabe falar as coisas”. Em seu depoimento, nota-se a mesma preocupação que dona Antônia, quando fala a respeito do desinteresse das pessoas mais jovens em aprender o ofício:

Vai novelar uma meada assim e não sabe. Não quer. Quem ver a gente fazer, diz assim - Dá muito trabalho, então, vai caçar um outro jeito de viver ou ir pra fora, pra São Paulo, Belo Horizonte. Muitas aí pega revistinha pra vender e vai sobrevivendo de outra coisa, mas de artesanato não quer. Aqui mais é professora. É uma briga quando é no fim do ano pra arrumar vaga! Porque todo mundo aqui, os novato é estudado, forma pra professora, mas é pra professora que forma. Aí tem o serviço.(...) Igual eu mesmo, sinceramente, eu não procurei outro, outra coisa pra mim por causa do estudo que eu não tenho, sinceramente, eu não to agüentando mais isso aqui, puxar o tear na roça.Tem dia que eu não guento tecer de jeito nenhum, o braço não quer mais, a perna não quer. Ainda com o problema que eu tenho, né?

Dona Leontina também reclama do ofício, no entanto, aponta uma saída para que a tecelagem não acabe: a escola. Assim narrou:

Não tem futuro pra gente não. Porque eu acho muito custosa. Muito demorada, muito pesada. Não é todo mundo que fazem, que compra uma colcha dessa nossa que nós faz. Tem que ficar pra relíquia, porque a juventude de hoje não que mais mexer com a tecelagem.(...)O governo é que tinha que olhar isso, né? Escolher, né um local que a gente pudesse dar um curso. Além de ser uma escola, o que eu queria que ao invés de ser uma escola pra me dar, uma escola de escrever, dasse , criasse uma escola só pra gente ensinar a juventude.(...)Aqueles que não tivessem mais força pra puxar o tear, ia ensinar.(...) Mas aqui, minha filha, o negócio é ruim pra nós trabalhar, porque não tem ajuda de prefeitura. Nós não temos ajuda de nada nesse mundo a não ser a nossa criatividade na cabeça e nosso esforço e nossa carreira pra correr atrás. Por isso que não sobra pra nós, porque quando a gente tem uma pessoa pra nos ajudar...nós temos a cooperativa aqui, mas a cooperativa é meio devagar, meio devagar. A cooperativa é devagarinho.

O processo de criação

Ao entender o modo como os atores sociais interpretam a dinâmica do seu processo de criação, é feita a análise dos seguintes procedimentos: o processo de produção do tecido, os gestos e cantos de trabalho e o domínio das técnicas e dos materiais.

Para a compreensão do processo de produção do tecido é necessário descrever cada uma das atividades relacionadas à sua produção (plantar, colher, descaroçar, cardar, fiar, fazer novelos, tingir, urdir, tecer) e a relação entre elas. Torna-se relevante, também, analisar qual o significado de cada uma das etapas para o processo como um todo e perceber o tempo interno do trabalho.

Dona Estela explica algumas etapas do processo:

É assim ó, vou só começar pra você ver que trabalho que dá. Agora aqui já é feita no braço, porque não tem um fazedor de meada, já tem até o nozinho aqui no começo, ó. E por aqui afora. Até terminar esse novelo. Termina o novelo fazendo... além da fiata que a gente compra o novelo lá em Badaró assim, novelado, branco, branquinho. Aí ele chega aqui, depois que a gente vai lá e compra ele R$14,00 o quilo do pavio, 14. A gente vem com ele, aí vai fazendo ele aqui ó no braço, de novo. Aí depois vai com isso... a água, passa um sabãozinho pra tira a sujeira pra depois...fora que a gente vai no mato , torra as casca, usa o produto, que a gente compra o produto e não é muito baratin, vai com isso lá, móia, passa o sabão, depois lava de novo, depois coloca isso lá tinta, depois vem torna a lavar, põe pra secar... igual, eu tô com umas lá secando, lá na sombrinha, você viu , né? Pra depois voltar, novelar isso, depois volta na canelinha pra encher a canela de novo, desnovela de novo...É vida? Veja bem, vou encher a canela lá pra você ver desse novelinho aqui. Dá pra imaginar? Se a pessoa pegar do começo, esses novato fala assim: eu? Isso não é comigo não!

E começa a tecer. Gosta de dizer que o trabalho das tecelãs é como o da aranha, pois é um eterno fazer e desmanchar e, dessa maneira, “não vai pra trás e nem pra frente”.

Os cantos de trabalho das fiandeiras têm duas funções: dar força para as artesãs e marcar o ritmo para que se organizem os movimentos do trabalho. Sendo assim, o registro das imagens permitiu a observação cuidadosa dessas vozes e gestos presentes no ato de criação do tecido.

Em relação ao ritmo de trabalho, é importante notar a sonoridade do ato de bater o algodão. Colocado sob uma almofada, o algodão é batido pra ficar ”limpinho”, como afirmam as artesãs.

Ao refletir sobre o domínio das técnicas e dos materiais e o significado atribuído pelas artesãs, pretende-se compreender como se dá o processo de construção simbólica do mundo e compreensão do universo em que vivem. Por meio de sua relação com os materiais, é possível analisar os aspectos simbólicos ligados ao material utilizado na tessitura e sua respectiva significação para o grupo.

Sendo assim, é possível afirmar que a técnica da produção do tecido remete a uma constelação de significados elaborados no urdir, tingir e tecer (Bittencourt,1995). Dessa maneira, a tecelagem pode ser entendida como um processo de simbolização próprio do universo cultural dos habitantes das cidades que coloca em movimento um conjunto de relações sociais.

Considerações finais

Dessa maneira, é possível afirmar que a memória está contida no próprio bem simbólico produzido, pois o tecido elaborado por esse grupo social não apenas conta toda uma série de saberes necessários à sua confecção, mas também contém a construção do mundo das artesãs.

Por meio da feitura desse artefato, nota-se a importância que a tradição representa para esse grupo, pois, apesar da modernização dos processos de tecelagem, a permanência do trabalho manual realizado pelas artesãs mostra como a memória é transmitida de uma geração para outra com alto grau de identificação. Isso evidencia as marcas deixadas pela tradição do ofício, transmitida oralmente de mãe para filha.

Vale ressaltar que essas visões de mundo e sensibilidades tecidas na trama das histórias de vida narradas são compreendidas a partir do contexto sócio-econômico e político a que pertencem essas artesãs. Isso significa entender que ao falar-se no Vale do Jequitinhonha, as associações feitas a essa região estão ligadas à miséria.

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