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AMBIENTE DIGITAL COMO DISPOSITIVO DE AUTO-NARRATIVAS E LEITURA Nize
Maria Campos Pellanda - Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC
- nizepe@portoweb.com.br 1. Introdução Nesse artigo, fazemos algumas reflexões sobre uma pesquisa em andamento com 28 jovens procedentes de famílias de baixa renda da zona rural de Santa Cruz do Sul (RS-Brasil) e que apresentam dificuldades de escrita e leitura. Esses jovens estão envolvidos em atividades num ambiente digital. Por ser um trabalho em processo, ainda não concluído, não apresentaremos aqui conclusões ou análises detalhadas mas selecionamos alguns elementos que emergem no fluxo da pesquisa para fazer algumas reflexões teóricas sobre eles. Emergência é um dos conceitos fundamentais no projeto em questão uma vez que trabalhamos com processos de constituição de cognição/subjetividade a partir do pressuposto de que mundo e sujeito se constróem simultâneamente na agência humana. Nessa concepção, não haveria uma realidade pré-dada mas a realidade emerge com a ação efetiva do sujeito. A proposta central desse projeto é pensar novas práticas educativas a partir de um Paradigma Complexo que integre todas as dimensões do humano e enfatize a complexidade do par autonomia/rede na constituição dos seres vivos. A partir do pressuposto oriundo do conceito de Autopoiesis desenvolvido pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela de que a vida é um processo cognitivo (Maturana e Varela, 1990), procuraremos contemplar a inseparabilidade do ser e do conhecer através de um ambiente digital. Tendo em
vista, os pressupostos referidos formulamos nosso problema: Nossa hipótese
principal é a de que o ambiente digital com as possibilidade de
escrita de si (Blogs), de leituras ativas, de navegação
(trajetos não-lineares e Hipertextos) e de pertencimento a uma
rede podem ampliar a experiência autopoiética dos sujeitos
o que redundaria em significativo desenvolvimento afetivo/cognitivo. O principal conceito, como já foi referido, é o de Autopoiesis. Para Maturana e Varela (1990), esse termo se refere ao funcionamento dos seres vivos como seres que se produzem a si mesmos num processo onde o cognitivo é inerente ao processo de viver. Por isso, eles expressam essa situação com o aforismo: “Viver é conhecer. Conhecer é viver” (Idem) Essa teoria leva o nome de Biologia da Cognição exatamente devido ao papel do conhecimento para o processo do viver. A palavra autopoiesis se origina de dois vocábulos gregos: auto que significa por si e poiesis que nos sugere criação. Os seres vivos seriam, segundo essa postura teórica, seres que se auto constróem continuamente sendo que aquilo que vem de fora do sujeito não o determina mas apenas o perturba. Trata-se de um conceito complexo pois nele coexistem duas dimensões que, para uma lógica formal, seriam contraditórias: autonomia e rede. Nos seres humanos esse processo se complexifica ainda mais devido à presença da linguagem e da consciência que carrega a capacidade reflexiva. Isso, por sua vez, implica em vontade e atenção o que potencializa os sujeitos humanos em termos de autoria e escolhas. Implícita na Biologia da Cognição, o que foi sistematizado por Maturana e Mpodozis (1997), está uma teoria da evolução onde acontece um contínuo acoplamento estrutural resultante da relação sujeito/meio. Nesse acoplamento, sujeito e meio vão se transformando de maneira congruente. Esse meio pode ser tanto natural, social como também maquínico (Guattari,1996) Isso nos autoriza a pensar num acoplamento tecnológico num contexto de cultura informatizada. Tivemos a oportunidade de discutir isso com Maturana em encontro recente em Santiago . Nossa questão central está posicionada, portanto, em observar como se dá esse acoplamento em termos de como ocorre a construção de subjetividade/conhecimento de forma integrada no ambiente digital. Cumpre-nos mapear as transformações que vão nos dar essas evidências. Nessa concepção, acreditamos que o computador pode ajudar os sujeitos a se construir autopoieticamente na medida em que estabelecem relações com a máquina formando um sistema dinâmico que age sobre uma realidade plástica (a tela) onde vão se refazendo continuamente, exercendo sua autoria. É exatamente com essa preocupação que introduzimos as auto-narrativas nas ferramentas Blogs, pois acreditamos que contar nossa vida é dar sentido a nós mesmos, é constituir uma auto-realidade, apossar-se dela para agir no mundo interno e externo. Além disso, a escrita digital nos permite ampliar nosso mundo pois teremos leitores ao mesmo tempo que seremos leitores de nós mesmos e dos outros. Como diz Pierre Lévy (1996, p.39): “A tela apresenta-se então como uma pequena janela a partir da qual o leitor explora uma reserva potencial” . É interessante observar que no trabalho em ambiente digital, o sujeito tem a possibilidade de refletir continuamente sobre seu processo, podendo então, pensar sobre seu pensar o que o faz ter controle de seu próprio processo cognitivo. Poderíamos falar, portanto, em metacognição. Profundamente articulados com esses pressupostos autopoiéticos trazemos também as elaborações de Sherry Turkle que nos acena com um processo de subjetivação que emerge na relação com o computador. Diz ela: “Nesta realidade virtual, nós nos auto-fazemos e nos auto-criamos” (Turkle, 1997, p, 180). Em consonância
com essa abordagem que rompe com o pensamento clássico separando
em estatutos opostos tecnologia e seres humanos podemos trazer as reflexões
de Guattari que nos dirige a atenção para novos processos
de subjetivação numa cultura informatizada mostrando que
nem mesmo a narratividade pode escapar desse novo acoplamento. (Guattari,
1996) Para esse filósofo, essas novas interações
podem levar a expansões significativas dos seres humanos em termos
complexos o que, no fundo, estaria convergindo para as concepções
de Maturana e Varela em termos da complexidade autoria/rede. Vejamos as
palavras de Guattari: Com isso, articulamos nossos referenciais teóricos para poder abordar o processo de pesquisa em sua vitalidade no processo em fluxo. 3. Emergências Com os pressupostos teóricos descritos vamos analisando as emergências e, ao mesmo tempo, com base neles e nos fatos emergentes vamos reconfigurando nossa caminhada que não é um programa tipo passo por passo, mas uma carta de navegação. (Morin, 1996) Por esse motivo, o que mais nos importa nesse projeto não são os produtos acabados, como já referido, mas as emergências. Emergências tem a ver com o resultado das interações a partir do ambiente que construímos. Nesse sentido, o conceito de Ecologia Cognitiva de Lévy (1994), tem sido de grande valor operatório pois vamos podendo entender o funcionamento em sistema, com o papel da recursividade e da auto-organização em ação transformando-se em reconfigurações e, portanto, em aprendizagens. O que é
fundamental em nosso quadro teórico e, portanto, as repercussões
na metodologia é que não estamos com essa pesquisa almejando
captar dados “lá fora” ou querendo que os meninos sujeitos
de nossa investigação aprendam “conteúdos”
externos à sua realidade. O que queremos é entender como
os sujeitos se transformam nessa relação sujeito/máquina
na qual eles configuram uma outra realidade constituindo conhecimento/subjetividade
e não simplesmente aprendam “coisas”. Essas transformações não são lineares como não são lineares os caminhos no texto. Por isso, o que vamos observando nos sujeitos da pesquisa são processos de construções/desconstruções que surgem a partir do uso das ferramentas que vão proporcionando coordenações interiores que podem ser pensadas em termos das abstrações reflexivas de Piaget (Piaget, 1977). A ferramenta Blogger tem a função de oportunizar “ecologia cognitiva” proporcionando essas relações referidas potencializando o sistema cognitivo dos sujeitos. Vejamos em que sentido as coisas vão se constituindo. Os meninos elaboram a sua própria página e a usam para narrativas de si e outras criações e, ao mesmo tempo, usam isso para interagir com outros companheiros virtuais. O que vamos constatando no decorrer do processo é uma transformação dos sujeitos no sentido de textos cada vez mais elaborados e, ao mesmo tempo, uma facilidade para ir se contando/reconfigurando. Vamos observando no processo nítidos sinais de mudanças nas formas como esses jovens vão se relacionando com o aprender, com os outros e com eles próprios. Essa apropriação de si pela autoria com o auxílio de uma ferramenta digital vai potencializando os sujeitos como podemos ver na evolução dos textos. Eles não
ficam apenas nos Blogs porque precisam checar seus e mails para receber
mensagens que, algumas vezes, procedem da leitura de outros de seus blogs.
Eles leem outros blogs como ainda navegam pela Internet em busca de dados
para seus diários virtuais ou simplesmente para navegar. Nessas
leituras digitais é interessante observar que a relação
texto/leitor é muito ativa. A fronteira entre o texto e leitor
tende a se diluir o que aproxima as duas partes de maneira a contemplar
aquele mecanismo biólogico que vimos analisando que é o
acoplamento estrutural. A todo o
tempo nos perguntamos: que tipo de cognição está
emergindo aí e que subjetividades? Para Turkle (1997), o computador
implica uma mudança profunda na maneira como pensamos a nós
mesmos. Para ela, o computador é um objeto para nos ajudar a pensar
e a nos pensar. O que pretendemos com esse trabalho é construir um quadro de referência para pensar em intervenções pedagógicas que possam mudar os rumos da educação no sentido de práticas emancipatórias e solidárias. Esse quadro de referências será construído a partir da articulação dos conceitos teóricos envolvidos com o processo vivo dos sujeitos se auto-experimentando. Para Maturana, educar é criar um ambiente de convivência o que ele expressa nas seguintes palavras: Pensamos que é tarefa do âmbito escolar criar as condições que permitam ao menino ou à menina ampliar sua capacidade de ação e reflexão no mundo em que vive, de modo que possa contribuir para a sua conservação e transformação de maneira responsável em coerência com a comunidade e entorno natural a que pertence. (Maturana, 1997, p.18) Essas condições correspondem àquele ambiente onde os alunos e alunas possam se experimentar num ambiente de relações solidárias que servem de perturbações constantes para o desenvolvimento. O processo de aprendizagem não pode ser nunca estabilizador mas fonte de perturbações e de novos agenciamentos. Os espaços a serem oferecidos aos educadandos precisaram ser espaços relacionais que privilegiem a ordem dos afectos. Aqui, uso afectos no sentido espinosiano das capacidades de “ser afectado” (Espinosa, 1983), de entrar em ressonância com os outros. E, para completar, mais um critério para construção desse ambiente de cognição concreta e ações efetivas: um espaço problemático em contraposição a um ambiente esplanador. Acredito com Bergson, que conhecer é inventar problemas. ( Bergson, 1979) O Hipertexto pode funcionar com ferramenta de invenção de problemas na medida em que pedimos aos jovens que inventam situações de procura a partir de elementos que os afectam. Os fenômenos que vão emergindo no fluir do processo estão nos autorizando a ir sistematizando nossos achados e pressupostos rumo a uma teoria complexa em educação onde o computador é instrumento técnico que amplia a inteligência porque permite a articulação profunda entre viver e aprender, entre conhecer e tornar-se. Encerro com Turkle (1984,p.13): “A Tecnologia cataliza mudanças não somente no que nós fazemos, mas em como nós pensamos.” 5. Bibliografia GUATTARI,
Félix. Da produção de subjetividade. In: PARENTE,
André. (org.) Imagem Máquina. São Paulo: Ed. 34,
1996. |
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