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AMBIENTE DIGITAL COMO DISPOSITIVO DE AUTO-NARRATIVAS E LEITURA

Nize Maria Campos Pellanda - Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC - nizepe@portoweb.com.br

Partindo de uma perspectiva de complexidade onde o sujeito do conhecimento é inseparável do mundo que observa e constrói usamos os referenciais da Teoria da Biologia da Cognição (Humberto Maturana e Francisco Varela) e outros a eles articulados para observar o processo de construção de conhecimento/subjetividade em 28 adolescentes oriúndos de famílias de baixa renda na zona rural de Santa Cruz do Sul (RS- Brasil) Os dispositivos usados são escritas de si, leituras na web e hipertexto. As ferramentas são Blogs, e- mails e navegação na Internet

1. Introdução

Nesse artigo, fazemos algumas reflexões sobre uma pesquisa em andamento com 28 jovens procedentes de famílias de baixa renda da zona rural de Santa Cruz do Sul (RS-Brasil) e que apresentam dificuldades de escrita e leitura. Esses jovens estão envolvidos em atividades num ambiente digital.

Por ser um trabalho em processo, ainda não concluído, não apresentaremos aqui conclusões ou análises detalhadas mas selecionamos alguns elementos que emergem no fluxo da pesquisa para fazer algumas reflexões teóricas sobre eles. Emergência é um dos conceitos fundamentais no projeto em questão uma vez que trabalhamos com processos de constituição de cognição/subjetividade a partir do pressuposto de que mundo e sujeito se constróem simultâneamente na agência humana. Nessa concepção, não haveria uma realidade pré-dada mas a realidade emerge com a ação efetiva do sujeito.

A proposta central desse projeto é pensar novas práticas educativas a partir de um Paradigma Complexo que integre todas as dimensões do humano e enfatize a complexidade do par autonomia/rede na constituição dos seres vivos. A partir do pressuposto oriundo do conceito de Autopoiesis desenvolvido pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela de que a vida é um processo cognitivo (Maturana e Varela, 1990), procuraremos contemplar a inseparabilidade do ser e do conhecer através de um ambiente digital.

Tendo em vista, os pressupostos referidos formulamos nosso problema:
– como as atividades com o computador podem potencializar o processo de construção conhecimento/sujeito transformando-se em práticas emancipatórias voltadas para a formação de seres autônomos (autores) e solidários?

Nossa hipótese principal é a de que o ambiente digital com as possibilidade de escrita de si (Blogs), de leituras ativas, de navegação (trajetos não-lineares e Hipertextos) e de pertencimento a uma rede podem ampliar a experiência autopoiética dos sujeitos o que redundaria em significativo desenvolvimento afetivo/cognitivo.
2 Arcabouço teórico

O principal conceito, como já foi referido, é o de Autopoiesis. Para Maturana e Varela (1990), esse termo se refere ao funcionamento dos seres vivos como seres que se produzem a si mesmos num processo onde o cognitivo é inerente ao processo de viver. Por isso, eles expressam essa situação com o aforismo: “Viver é conhecer. Conhecer é viver” (Idem) Essa teoria leva o nome de Biologia da Cognição exatamente devido ao papel do conhecimento para o processo do viver.

A palavra autopoiesis se origina de dois vocábulos gregos: auto que significa por si e poiesis que nos sugere criação. Os seres vivos seriam, segundo essa postura teórica, seres que se auto constróem continuamente sendo que aquilo que vem de fora do sujeito não o determina mas apenas o perturba. Trata-se de um conceito complexo pois nele coexistem duas dimensões que, para uma lógica formal, seriam contraditórias: autonomia e rede.

Nos seres humanos esse processo se complexifica ainda mais devido à presença da linguagem e da consciência que carrega a capacidade reflexiva. Isso, por sua vez, implica em vontade e atenção o que potencializa os sujeitos humanos em termos de autoria e escolhas.

Implícita na Biologia da Cognição, o que foi sistematizado por Maturana e Mpodozis (1997), está uma teoria da evolução onde acontece um contínuo acoplamento estrutural resultante da relação sujeito/meio. Nesse acoplamento, sujeito e meio vão se transformando de maneira congruente. Esse meio pode ser tanto natural, social como também maquínico (Guattari,1996) Isso nos autoriza a pensar num acoplamento tecnológico num contexto de cultura informatizada. Tivemos a oportunidade de discutir isso com Maturana em encontro recente em Santiago . Nossa questão central está posicionada, portanto, em observar como se dá esse acoplamento em termos de como ocorre a construção de subjetividade/conhecimento de forma integrada no ambiente digital. Cumpre-nos mapear as transformações que vão nos dar essas evidências.

Nessa concepção, acreditamos que o computador pode ajudar os sujeitos a se construir autopoieticamente na medida em que estabelecem relações com a máquina formando um sistema dinâmico que age sobre uma realidade plástica (a tela) onde vão se refazendo continuamente, exercendo sua autoria. É exatamente com essa preocupação que introduzimos as auto-narrativas nas ferramentas Blogs, pois acreditamos que contar nossa vida é dar sentido a nós mesmos, é constituir uma auto-realidade, apossar-se dela para agir no mundo interno e externo. Além disso, a escrita digital nos permite ampliar nosso mundo pois teremos leitores ao mesmo tempo que seremos leitores de nós mesmos e dos outros. Como diz Pierre Lévy (1996, p.39): “A tela apresenta-se então como uma pequena janela a partir da qual o leitor explora uma reserva potencial” .

É interessante observar que no trabalho em ambiente digital, o sujeito tem a possibilidade de refletir continuamente sobre seu processo, podendo então, pensar sobre seu pensar o que o faz ter controle de seu próprio processo cognitivo. Poderíamos falar, portanto, em metacognição.

Profundamente articulados com esses pressupostos autopoiéticos trazemos também as elaborações de Sherry Turkle que nos acena com um processo de subjetivação que emerge na relação com o computador. Diz ela: “Nesta realidade virtual, nós nos auto-fazemos e nos auto-criamos” (Turkle, 1997, p, 180).

Em consonância com essa abordagem que rompe com o pensamento clássico separando em estatutos opostos tecnologia e seres humanos podemos trazer as reflexões de Guattari que nos dirige a atenção para novos processos de subjetivação numa cultura informatizada mostrando que nem mesmo a narratividade pode escapar desse novo acoplamento. (Guattari, 1996) Para esse filósofo, essas novas interações podem levar a expansões significativas dos seres humanos em termos complexos o que, no fundo, estaria convergindo para as concepções de Maturana e Varela em termos da complexidade autoria/rede. Vejamos as palavras de Guattari:

Esta dupla capacidade de traços intensivos de singularizar e transversalizar a existência, de lhe conferir, por um lado uma persistência local e, por outro, uma consistência transversalista- uma transistência- não pode ser plenamente captada pelos modos racionais do conhecimento discursivo. Ela só pode ser dada através de uma apreensão da ordem do afecto, uma captura transferencial global. (Idem, p. 180)

Com isso, articulamos nossos referenciais teóricos para poder abordar o processo de pesquisa em sua vitalidade no processo em fluxo.

3. Emergências

Com os pressupostos teóricos descritos vamos analisando as emergências e, ao mesmo tempo, com base neles e nos fatos emergentes vamos reconfigurando nossa caminhada que não é um programa tipo passo por passo, mas uma carta de navegação. (Morin, 1996) Por esse motivo, o que mais nos importa nesse projeto não são os produtos acabados, como já referido, mas as emergências.

Emergências tem a ver com o resultado das interações a partir do ambiente que construímos. Nesse sentido, o conceito de Ecologia Cognitiva de Lévy (1994), tem sido de grande valor operatório pois vamos podendo entender o funcionamento em sistema, com o papel da recursividade e da auto-organização em ação transformando-se em reconfigurações e, portanto, em aprendizagens.

O que é fundamental em nosso quadro teórico e, portanto, as repercussões na metodologia é que não estamos com essa pesquisa almejando captar dados “lá fora” ou querendo que os meninos sujeitos de nossa investigação aprendam “conteúdos” externos à sua realidade. O que queremos é entender como os sujeitos se transformam nessa relação sujeito/máquina na qual eles configuram uma outra realidade constituindo conhecimento/subjetividade e não simplesmente aprendam “coisas”.
Recolocamos a questão para entender o que se passa com os sujeitos da pesquisa: como as tecnologias engendram essas transformações cognitivas/subjetivas? Para Lévy (1994), as tecnologias podem funcionar como tecnologias da inteligência. Nesse sentido, as tecnologias se acoplam com nosso sistema cognitivo resultando daí novas configurações do sujeito. O que acontece nesse acoplamento é uma ampliação das capacidades humanas. Nessa “ecologia cognitiva”, nessa relação sujeito/máquina, são constituidos novos agenciamentos que vão ampliando a relação do sujeito consigo mesmo, como os outros e com a realidade em geral.

Essas transformações não são lineares como não são lineares os caminhos no texto. Por isso, o que vamos observando nos sujeitos da pesquisa são processos de construções/desconstruções que surgem a partir do uso das ferramentas que vão proporcionando coordenações interiores que podem ser pensadas em termos das abstrações reflexivas de Piaget (Piaget, 1977).

A ferramenta Blogger tem a função de oportunizar “ecologia cognitiva” proporcionando essas relações referidas potencializando o sistema cognitivo dos sujeitos. Vejamos em que sentido as coisas vão se constituindo.

Os meninos elaboram a sua própria página e a usam para narrativas de si e outras criações e, ao mesmo tempo, usam isso para interagir com outros companheiros virtuais. O que vamos constatando no decorrer do processo é uma transformação dos sujeitos no sentido de textos cada vez mais elaborados e, ao mesmo tempo, uma facilidade para ir se contando/reconfigurando. Vamos observando no processo nítidos sinais de mudanças nas formas como esses jovens vão se relacionando com o aprender, com os outros e com eles próprios. Essa apropriação de si pela autoria com o auxílio de uma ferramenta digital vai potencializando os sujeitos como podemos ver na evolução dos textos.

Eles não ficam apenas nos Blogs porque precisam checar seus e mails para receber mensagens que, algumas vezes, procedem da leitura de outros de seus blogs. Eles leem outros blogs como ainda navegam pela Internet em busca de dados para seus diários virtuais ou simplesmente para navegar. Nessas leituras digitais é interessante observar que a relação texto/leitor é muito ativa. A fronteira entre o texto e leitor tende a se diluir o que aproxima as duas partes de maneira a contemplar aquele mecanismo biólogico que vimos analisando que é o acoplamento estrutural.
Um outro elemento a ser destacado é o princípio topológico que subjaz a esses caminhos na rede. Não existem caminhos prévios, já traçados, mas “o caminho vai se fazendo ao caminhar” como diria o poeta. Nesses percursos não-lineares vai havendo uma flexibilização cada vez maior dos sujeitos ao mesmo tempo em que vão sendo capazes de fazer novas abstrações reflexivas.
Esse desenhos dos caminhos dos sujeitos é um dos elementos mais fortes de nossa pesquisa pois aqui coletamos os dados mais importantes. Para fazer essa coleta usamos a ferramenta das redes semânticas. Todos os caminhos que os meninos percorrem ficam registrados nos “cookies”. Analisamos então, esses registros destacando os mecanismos recursivos e a volta aos Blogs.
Nesse momento, estamos iniciando o trabalho com Hipertexto. Os meninos relêem seus textos e escolhem palavras que tem um forte significado para eles. Essas palavras são transformadas em links que eles escolhem na rede. O objetivo dessa ferramenta é complexificar ainda mais os caminhos na rede levando-os a inventar caminhos de forma não- linear.

A todo o tempo nos perguntamos: que tipo de cognição está emergindo aí e que subjetividades? Para Turkle (1997), o computador implica uma mudança profunda na maneira como pensamos a nós mesmos. Para ela, o computador é um objeto para nos ajudar a pensar e a nos pensar.

4. Perspectivas

O que pretendemos com esse trabalho é construir um quadro de referência para pensar em intervenções pedagógicas que possam mudar os rumos da educação no sentido de práticas emancipatórias e solidárias. Esse quadro de referências será construído a partir da articulação dos conceitos teóricos envolvidos com o processo vivo dos sujeitos se auto-experimentando. Para Maturana, educar é criar um ambiente de convivência o que ele expressa nas seguintes palavras:

Pensamos que é tarefa do âmbito escolar criar as condições que permitam ao menino ou à menina ampliar sua capacidade de ação e reflexão no mundo em que vive, de modo que possa contribuir para a sua conservação e transformação de maneira responsável em coerência com a comunidade e entorno natural a que pertence. (Maturana, 1997, p.18)

Essas condições correspondem àquele ambiente onde os alunos e alunas possam se experimentar num ambiente de relações solidárias que servem de perturbações constantes para o desenvolvimento. O processo de aprendizagem não pode ser nunca estabilizador mas fonte de perturbações e de novos agenciamentos. Os espaços a serem oferecidos aos educadandos precisaram ser espaços relacionais que privilegiem a ordem dos afectos. Aqui, uso afectos no sentido espinosiano das capacidades de “ser afectado” (Espinosa, 1983), de entrar em ressonância com os outros. E, para completar, mais um critério para construção desse ambiente de cognição concreta e ações efetivas: um espaço problemático em contraposição a um ambiente esplanador. Acredito com Bergson, que conhecer é inventar problemas. ( Bergson, 1979) O Hipertexto pode funcionar com ferramenta de invenção de problemas na medida em que pedimos aos jovens que inventam situações de procura a partir de elementos que os afectam.

Os fenômenos que vão emergindo no fluir do processo estão nos autorizando a ir sistematizando nossos achados e pressupostos rumo a uma teoria complexa em educação onde o computador é instrumento técnico que amplia a inteligência porque permite a articulação profunda entre viver e aprender, entre conhecer e tornar-se.

Encerro com Turkle (1984,p.13): “A Tecnologia cataliza mudanças não somente no que nós fazemos, mas em como nós pensamos.”

5. Bibliografia

GUATTARI, Félix. Da produção de subjetividade. In: PARENTE, André. (org.) Imagem Máquina. São Paulo: Ed. 34, 1996.

GERALDI, João Wandereley (2000). Anais da Conferência Sócio-Cultural. Unicamp.www.fae.unicamp
GORCZEVSKI D., PELLANDA, N. (2000). A engenharia do laço social sobe o morro. IN: PELLANDA, N.M. e PELLANDA, E.C. (orgs). Ciberespaço: um hipertexto com Pierre Levy. Porto Alegre, Artes & Ofícios.

LEVY, Pierre (1993). As Tecnologias da Inteligência. São Paulo, Ed.34.

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MATURANA, Humberto (1999). Transformación. Santiago, Dólmen.

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MATURANA, H., VARELA, F. (1991). El árbol del conocimiento. Santiago, Universitária.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.

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____ (1984). The second self-computers and the human spirit. New York, Simon and Shuster.

 
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