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  CONTOS E CONTAS: UM TAPETE DE MUITOS FIOS

Isilda Lozano Perez
Profa. do curso de Pedagogia da Unicid, na disciplina Àrea de conhecimento Língua Portuguesa; Mestre em Educação pela USP.

Liliam Ferreira Manocchi;
Professora do curso de Pedagogia da Unicid, na disciplina Área de conhecimento Matemática; Mestranda em Filosofia pela PUC/SP

“ ... mas professora, afinal, você é professora de quê?” (1) Em que contexto se dá essa fala? Primeiro dia de aulas e as costumeiras apresentações. Bate-papo para descontrair. Após meia hora, a proposta: um jogo de nome “ Torto”. É esse tipo de jogo que aparece nas revistas de palavras cruzadas, em que são dadas algumas letras, em três colunas e algumas linhas. O objetivo é formar palavras, segundo determinadas regras. O jogo se inicia e se desenvolve sob as comandas da professora: as regras, o que pode ou não ser escrito, os sentidos, enfim. A aula termina. Nova classe. A mesma proposta. Terminada a aula, a professora de saída, um garoto sorridente e de cabelos encaracolados, absolutamente simpático e de olhos espertos, a indaga: “ ... mas professora, afinal, você é professora de quê?” Ao que a professora responde: “ De matemática, ué!”. Ainda sem entender , o aluno de ar esperto prossegue: “mas nós estamos escrevendo!” Isto chama a atenção da professora, que retoma a questão com a classe. Pergunta como os alunos dividem as atividades do dia, a partir do momento em que levantam ; em que momento” fazem português” e em que momento “ fazem matemática” ou geografia. Procura explicar aos alunos , que essa divisão é uma invenção da escola, que as ciências – em geral – trabalham assim, mas que esse isolamento não permite que se conheça o objeto em um contexto. A conversa dura uma aula toda; e muito produtiva , porque permite uma reflexão sobre outras formas de organizar o conhecimento. Situação real vivida em uma classe da 5ª série de Escola da Rede Estadual de Ensino de São Paulo Eis um relato que desencadeia a discussão deste capítulo: Contos e contas: um tapete de muitos fios”. O que está presente na indagação do aluninho de 5a. Série, de ar esperto? Fica claro que a extraordinariedade que ele revela é a de que Matemática tem um conteúdo específico, traduzido em operações, números, equações e tantas coisas mais, que se opõem às letras, à leitura, à escrita. Prosseguimos, então, na tentativa de ajudá-lo na resolução de um problema, sobre o qual ele pensou, colocou hipóteses e comunicou através da Linguagem que – em qualquer forma de manifestação – seja oral, escrita , gestual é lugar de interlocução. A questão que esta discussão coloca é a das relações entre a Linguagem , manifestada através da abordagem da Língua Portuguesa e da Literatura infantil e juvenil, na escola básica e da Matemática, com a sua especificidade e, todas , com os seus mitos. Para não perdermos de vista o aluno sorridente, retomemos a questão, agora sob o ponto de vista dos próprios professores que argumentam, em relação à associação língua/literatura/matemática, bem no sentido do aluno personagem desse relato. Os argumentos trazem a idéia de certas relações de dependência, como: “ os alunos não resolvem problemas porque não sabem ler o enunciado”. Só para problematizar: e se invertêssemos a relação de reciprocidade anterior para: os alunos não sabem ler porque não conseguem resolver problemas?” São dessas afirmações, que podemos retirar alguns “ mitos” que cercam a Matemática. E por falar em mitos, quem já não ouviu falar que o gosto e a facilidade para a Matemática são inatos? Se concordarmos com essa colocação, temos – também – que admitir que a possibilidade de pensar, de estabelecer relações, de tirar conclusões, de encadear idéias segundo uma lógica de raciocínio não são capacidades humanas, mas de alguns humanos. Aqueles que “ nasceram” com esse talento especial. E a identificação da matemática com a exatidão, não é, também , um outro mito? Se considerarmos essa colocação “ tão certa como dois e dois são quatro”, estamos dizendo que todas as outras áreas do saber carecem de exatidão. A matemática é abstrata. Outro mito. Dizer que a matemática é abstrata remete a um questionamento assim: “ É possível conhecimento sem abstração?” Na verdade, o que é o concreto e o que é o abstrato? Para uma criança de três anos não há nada mais concreto do que o amiguinho imaginário com quem conversa quando está sozinha. Assim como não há nada de mais concreto do que a figura de Deus, para os crentes de qualquer religião. Os mitos são construções que atribuem à Matemática características que lhe não são exclusivas. As habilidades de pensar, de raciocinar logicamente, de abstrair e de concretizar determinadas situações são mecanismos tão presentes na área matemática quanto em outras áreas, habilidades essas, aliás, conduzidas pelo fio da linguagem. O advento das tecnologias tem reforçado ainda mais essas idéias. Será que as inovações tecnológicas não são instrumentos que facilitam a resolução de problemas, entendidos como formas de organização do pensamento, de diálogo entre conceitos, de uso de diferentes linguagens que remetem à compreensão de determinados fatos, fenômenos e situações? Lembremos do menino sorridente. Ele apresentou à professora um problema: “ Como a matemática trabalha com letras”? Um problema de difícil solução para alguém, como ele, que foi levado a enxergar as questões matemáticas sob a perspectiva da exatidão, da abstração, da lógica. O necessário é conduzí-lo à compreensão de que as “contas” se revelam através “ dos contos” ou: as habilidades de pensamento são reveladas e desveladas pela linguagem e por todas interações e interlocuções que ela permite. A linguagem é a chave, a senha da compreensão. E se nosso menino esperto se deparasse com isso? “ 534G2 13 127 36 4 17 21 41 DOUGLAS 109 293 5 37 BIRLSTONE 26 BIRLSTONE 9 127 171 Que você deduz disso, Holmes? Evidentemente, trata-se de uma tentativa para transmitir uma mensagem secreta.” Mas que valor tem uma mensagem cifrada sem a respectiva chave?” É interessante como as histórias em torno do corpo de conhecimento denominado Matemática são paradoxais: ora exprimem alegria, surpresa, curiosidade maravilhamento; ora exprimem tristeza, insegurança, medo, desejo de distanciamento. Apesar da matemática estar presente em tudo ou quase tudo o que fazemos, não é assim percebida. Para ser Matemática é preciso de números. Assim pensam o menino simpático, alguns professores e a Escola. Na verdade, a linguagem manifestada na escola pelo trabalho com a Literatura infantil e juvenil e com a Língua Portuguesa, assim como com qualquer outra área do conhecimento humano e escolar, requer a mediação que permita estabelecer o elo entre o sujeito que aprende e as práticas sociais de leitura e de escrita. O menino arteiro não teria se assustado tanto com a presença das letras na aula de matemática, caso seu modelo de aprendizagem estivesse inserido nas práticas cotidianas, no seu dia-a-dia. Mas, mitos não são privilégios da Matemática. A Língua Portuguesa, também, está cercada dos seus. Um, muito difundido no meio escolar, é o de que “ trabalhar com a Língua Portuguesa ” é função do professor ou da professora dessa área. Afirmar isso, é entender que todas as áreas do conhecimento humano e escolarizado não concebem os conteúdos de linguagem como seus próprios. Considerar que os processos interlocutivos só acontecem através da linguagem verbal é outro mito. A linguagem da matemática, da arte e de qualquer ciência comunica tanto quanto a fala e a escrita. São vozes que se revelam de maneiras diferentes. Conceber a Língua Portuguesa a partir da visão normativa é um outro mito. Na verdade, é necessário o conhecimento da estrutura e do funcionamento da língua materna, porém esse conhecimento não garante nem a fluência de leitura e de escrita nem o acontecimento da interlocução. A gramaticalidade da língua vem, exatamente, das relações que são construídas pelo sujeito-leitor e escritor no uso social, na relação com outras áreas, na relação entre falantes. Prossigamos com a fala de Sofia, uma outra personagem ao lado do menino dos cabelos anelados, que nos ajuda a conduzir a conversa: “As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas são ditas sem eu as ter dito. Ou, pelo menos, não era apenas isso. Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar – uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo despenhadeiro as minhas altas geleiras” ( Ségur, 1995) Um tapete é feito de muitos fios. Uma história de muitas histórias. Uma linguagem de muitas linguagens. Talvez Sofia nos explicite a trama da linguagem. Esse correguinho fino e transparente, que pelo caminho que percorre agrega, mais e mais , outras corredeiras, tornando-se mais volumoso e forte. Essa pode ser uma das imagens da presença da linguagem e suas relações com as áreas do conhecimento humano. Pode, ainda, ser a metáfora da relação entre a Língua Portuguesa e a Matemática, no campo escolar. Na verdade, o que revitaliza as relações entre as áreas e o que garante as suas especificidades, é a linguagem que produzem e em que são produzidas. À medida que as corredeiras vão engrossando o correguinho , vão também preenchendo suas reentrâncias, o mesmo que faz o leitor com a obra lida. Sua imaginação preenche as lacunas do texto. Ao conhecido e explícito se junta o desconhecido e implícito. Pensar, refletir, problematizar fazem parte desse preenchimento que – de forma absolutamente fiel , junta Língua, Literatura e Matemática , inexoravelmente. Como diz Umberto Eco ( 1994, p.118): “ Ler é como uma aposta. Apostamos que seremos fiéis às sugestões de uma voz que não diz, explicitamente, o que está sugerindo.” Ao menino arteiro, que problematizou sem saber que problematizava , faltava a leitura de que o texto ( jogo Torto) tinha uma voz implícita; sugeria , mas não declarava. Naquele momento, não lhe era permitido, ainda, perceber a aposta O que vimos discutindo, em relação à associação do trabalho da Linguagem com a Matemática, nos leva a considerar que o sistema escolar impõe a segmentação e o divórcio da linguagem. Língua Portuguesa e Matemática, dada a natureza de seus objetos, tornam-se , dessa forma, inconciliáveis, sobretudo pela visão imposta através dos mitos, anteriormente apresentados ; o conhecimento matemático é, então, considerado incompatível com as elucubrações possibilitadas pelas atividades com a Língua e com a Literatura infantil e juvenil, para ficarmos em nosso recorte de abordagem. Produções visíveis, controle, provas, deveres: eis o que almeja o sistema.Tomemos como objeto a Literatura infantil e juvenil, especificamente. O que é isso se não a instigação à curiosidade intelectual, ao interesse pelo vivido, ao experimento, à descoberta? E a Matemática, é diferente disso? Pelo conhecimento da Língua Portuguesa em seu uso social , isto é falada e escrita por falantes e escritores de carne e osso, datados e pela leitura da Literatura infantil e juvenil , se formam indivíduos questionadores, críticos, contextualizados, inseridos – portanto – na vida real. Agora a pergunta: Esse nível de concreticidade é construído através do que, se não pelo concurso de todas as áreas do conhecimento humano? Agora a resposta: Se é assim, não é possível dissociar o processo de construção da leitura e seus desdobramentos do processo de construção do conhecimento matemático, particularmente, e das demais áreas , em geral. Sofia deu a senha : as palavras me antecedem e me transformam. O menino dos cabelos encaracolados colocou o problema: se a linguagem for una, me explica melhor isso, pois não estou entendendo. Ambos leram um contexto e lhe atribuiram significado e, todos sabemos e o poeta diz: “ O mais difícil, mesmo, é a arte de desler” ( Mário Quintana). Fazer a menino “ desler” é atribuir um sentido ao seu pensamento. É mostrar-lhe, como Sofia percebeu, que muitos são os fios que se entrelaçam e que – ainda que eu pense em seguir um só – todos os fios estão irremediavalmente tramados. Será isso a interdisciplinaridade? Estreitando um pouco mais os laços da Linguagem e da Matemática, podemos nos dirigir para algo mais paupável , que é o próprio objeto-livro. O que dá materialidade à leitura e às leituras? Não são os objetos que as contêm? O livro materializa as relações que estamos tentando apontar: o conteúdo da linguagem toma dimensão, forma, cor, design, proporção. É o conteúdo da linguagem no continente da matemática. Não tão objetiva, mas profundamente matemática , é a problematização que o texto desvenda ou acoberta: Quem será o leitor? Que expectativas traz? Como caminha rumo ao desvendamento? Outro fator é a espácio-temporalidade da obra, que fortalece e desencadeia a relação entre a linguagem e a matemática: tempo e índices do autor, extensão espacial e expressão da espacialidade. Há algo, profundamente, matemático no enredo. As relações de atração e de oposição ( antagonistas e protagonistas, herói e vilão); as descrições, comparações, sínteses, antíteses. A descoberta do sentido, dirigida pela articulação das habilidades de pensamento, a compreensão dos sentidos culturais, as respostas aos quês e porquês, o mundo representado, os implícitos e explícitos, os princípios, as idéias, os problemas e as soluções. Eis a linguagem da Língua, da Literatura e da Matemática, que quebram a ordenação predeterminada de idéias, fazendo com que o pensamento flúa e permita a leitura polissêmica. Importante apontar que – na busca da interdisciplinaridade das leituras, há que se cuidar para não incorrer em metaleituras, isto é, divorciar a leitura de sua função de fruição, através da qual se penetra no conhecimento, para – forçadamente – fazer com que dê conta de aspectos disciplinares. O que é o conhecimento se não uma formação labiríntica sobre a qual transitam imagens, percepções, reflexões, exposições que se entrelaçam? Isso pressupõe a resolução de situações conflituosas , de problemas , a superação de obstáculos epistemológicos., bem de acordo com as leituras interdisciplinares que estes escritos defendem. Aquilo que não pareceu tão natural aos olhos do garoto com ares de arteiro, nada tem de exótico ou extraordinário. São muitos fios. Histórias em outras histórias, como diz Sofia. No âmbito dessa discussão, há um outro fator importante a ser considerado: não convém que se discuta a Linguagem, a Língua, o texto literário sem se remeter à Imagem, fonte de construção de sentidos. Sabemos que a imagem nos textos é de fundamental importância, não só como elemento estético, mas sobretudo como uma segunda linguagem, que se integra à leitura e à escrita e que com elas compõe o campo semântico da obra. Para pontuarmos a relação que vimos fazendo entre a Linguagem e a Matemática, podemos nos ater ao índice, ao nosso ver, o mais representativo elemento dessa relação. A leitura indicial é aquela que se desenvolve através do incentivo à imaginação e à intelecção, através do desvendamento de índices: pistas, indicadores, seqûëncia lógico-fatual, arquitetura mental, trilha semântica. A linguagem verbal está adormecida; está “ em off”. Campo riquíssimo para as interlocuções com a Matemática. É o que podemos chamar de “ ginástica literária”, que exercita a criatividade, a descoberta, o conhecimento e o exercício intelectual. É indiscutível que a função da imagem é importantíssima também nas obras de linguagem não indicial, por sustentar as habilidades de pensamento, permitir a recriação e a fruição. Sobretudo nas relações que se quer interdisciplinares, a imagem pode e deve contribuir de forma bastante significativa. Ela pode auxiliar na construção de um “ design de interpretação”, importante para a consolidação dos processos interlocutivos. Ao se discutir a construção de uma visão interdisciplinar de leitura, é preciso que se considere fatores externos ao sistema escolar e suas práticas. Pensamos que a leitura interdisciplinar não se promova, somente, através dos portadores de texto e da mediação entre eles e o sujeito-leitor. A formação do leitor interdisciplinar passa pela união de todos os agentes informantes de leitura: professores, editores, bibliotecários e setores ligados ao livro. Não descarta políticas de incentivo ao leitor, à leitura e aos equipamentos para isso. O desenvolvimento e a compreensão dos processos de formação do leitor e do escritor ultrapassam os limites escolares .“ Mas professora, afinal você é professora de quê? ” No mesmo movimento dos círculos concêntricos da Matemática, nosso texto recomeça aqui!

 
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