Voltar | ||
MACHADO
DE ASSIS E O JORNAL NO SÉCULO XIX: A CRÔNICA EDUCANDO O LEITOR
Patrícia Kátia da Costa Pina - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB A sedução da crônica é coisa antiga. É o texto que traz “a vida ao rés-do-chão”, como afirma Antonio Candido em publicação de 1981(e 1992). Segundo ele, “...ela fica perto de nós...”(CANDIDO, 1992, 13). O espaço da crônica é o do nosso mais corriqueiro cotidiano, mesmo quando ela resvala pelo lírico – e até principalmente quando ela resvala pelo lírico. Para Candido, a crônica ... pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais fantásticas, – sobretudo porque quase sempre utiliza o humor. (CANDIDO, op. cit., 14) O cronista não é o “grande nome da
literatura”, pelo menos não por escrever crônicas.
Aliás, essa é, em geral, a parte “marginalizada”
da produção de incontáveis escritores, brasileiros
ou não. Mas o bom é perceber que essa vocação
para as miudezas da vida traz a crônica para a nossa intimidade,
permitindo-nos senti-la no jogo de nossas emoções e de nossas
reflexões diárias. A crônica aproxima, assim, a literatura
do solo em que pisamos, sem que precisemos ter grandes leituras prévias,
até mesmo, sem que precisemos ter muita escolaridade, pois ela
lida com o sabido e o sentido, com o conhecimento da vida, não
o da escola, não o do livro – necessariamente. A crônica,
até hoje, promove a inclusão do receptor no circuito cultural,
enquanto o livro e a escola, muitas vezes, reforçam práticas
de exclusão. ...a crônica pode dizer as coisas mais sérias e mais empenhadas por meio do ziguezague de uma aparente conversa fiada. Mas igualmente sérias são as descrições alegres da vida, o relato caprichoso dos fatos, o desenho de certos tipos humanos, o mero registro daquele inesperado que surge de repente...(Idem, 20) A força e a natureza da crônica residem exatamente
na sua aparência de casualidade, na metaforização
das práticas orais comuns no cotidiano urbano e rural. Casualidade,
oralidade são seus instrumentos de contato com o público,
ao menos, seus instrumentos iniciais. O homem da rua pode ter o mundo nas mãos, lendo reportagens, entrevistas e crônicas[...]. Significativamente, nomeia-se crônica o texto leve, fluente e sintético, que forma o elo entre o passado (as linhagens medievais) e o presente (registro do instante, resgatado da viragem para a fama). (CARDOSO,1992, 137) A idéia que mais me seduz nessa afirmação
é a do homem da rua, e pode-se entender aí “qualquer
homem da rua”, não somente financistas, comerciantes, mas
ex-escravos, vendedores ambulantes etc., enfim, o que mais me seduz é
a idéia de democratização implícita no fragmento
citado. E essa “democratização” do impresso
está, é claro, associada à fluidez da crônica,
à sua proximidade da “conversa fiada”, a que se referiu
Antonio Candido. O pequeno leitorado e a indigência do ambiente cultural brasileiro são assuntos recorrentes na produção crítica de Machado de Assis desde seu início em 1858. As explicações para os males, assim como as soluções propostas para alterar tal estado de coisas, variam bastante ao longo do tempo, mas é possível dividir a postura de Machado de Assis em relação à penúria das artes no Brasil em dois momentos principais: num primeiro momento, o mal está associado à invasão das artes estrangeiras e a solução proposta é a nacionalização da produção artística e o aperfeiçoamento do gosto do público, tarefas atribuídas aos escritores; num segundo momento, que coincide com o início de sua produção romanesca, no início da década de 1870, o crítico revela decepção generalizada com a situação das artes no Brasil. (GUIMARÃES, 2004, 107-108) Segundo o referido pesquisador, escritores e receptores
estariam acostumados a lidar com literatura estrangeira, forjando, a partir
dela, seus parâmetros de produção e recepção.
A isso, e nesse ponto concordo com Hélio Guimarães, Machado
de Assis teria reagido, através de sua produção ensaística
e ficcional, buscando o estabelecimento de novos parâmetros de criação
e de gosto. Nessa linhagem de textos inserem-se “O Passado, O Presente
e o Futuro da Literatura”, “Instinto de Nacionalidade”,
“Idéias sobre o Teatro” e outros. Nessa possível
“fase”, o escritor fluminense explicita uma crença
nas possibilidades de superação das dificuldades do meio
intelectual, tanto por parte de seus leitores, como por parte dos escritores.
A desmistificação da produção literária é marca distintiva de sua produção crítica a partir do final da década de 11870 e na seguinte, quando escritos dessa natureza são raros. No prefácio de um livro de poemas, Machado declara que apresentar um poeta ao público é a mais inútil das tarefas [...] e ele mesmo se encarrega de desmistificar sua postura juvenil que via na instrução e na leitura a panacéia para todos os males do país e do mundo. (GUIMARÃES, op. cit., 119) Discordo do citado pesquisador, no que tange a essa mudança
de percepção: entendo que Machado de Assis viu, desde seus
primeiros passos na cena intelectual brasileira, ou, mais especificamente,
fluminense, a precariedade das relações autor/texto/público.
Todos os seus esforços convergiram para vencer as limitações
de nosso meio intelectual. Tanto seus instrumentos iniciais de controle
e sedução do leitor – da leitora –, como seus
expedientes de fim de século, apontam para o objetivo de construir,
nos raros consumidores de bens culturais impressos do oitocentos brasileiro,
hábitos de leitura, de manuseio de livros e jornais. Mesmo essa
suposta descrença me parece um expediente pedagógico no
sentido de tocar os brios do leitorado, fazendo-o sentir suas limitações
e provocando-lhe uma necessidade de superá-las. Sou como as atrizes, que já não fazem benefício, mas festa artística. A coisa é a mesma, os bilhetes crescem de igual modo, seja em número, seja em preço: o resto, comédia, drama, opereta, uma polca entre dois atos, uma poesia, vários ramalhetes, lampiões fora, e os colegas em grande gala, oferecendo em cena o retrato à beneficiada. (ASSIS, 1996 [1892], 45) O cronista se vê em meio a uma sociedade do espetáculo,
sabe que precisa entrar no seio dessas práticas culturais, para
poder se utilizar delas com mais propriedade. Ele sabe que tem leitores
e leitores austeros, sabe que precisa escrever para todos. Mais que isso
– e nesse ponto atravesso a proposta de Hélio Guimarães
– sabe que uma de suas tarefas é conquistar o público
do espetáculo. A construção irônica de sua
narrativa parece visar exatamente a um jogo com o receptor, uma espécie
de esconde-esconde. O resultado final seria uma leitura crítica
dos textos em circulação. Estes leitores de carne e osso, dos quais se ocupam os censos e que sustentam o negócio dos livros, passíveis, portanto, de serem historicizados e estudados estatisticamente, têm sua contrapartida textual: o leitor empírico, destinatário virtual de toda criação literária, é também direta ou indiretamente introjetado na obra que a ele se dirige. Assim, nomeado ou anônimo, converte-se em texto, tomando a feição de um sujeito com o qual se estabelece um diálogo, latente mas necessário. (LAJOLO, ZILBERMAN, op. cit., 16-117) Diálogo necessário como meio de convencimento e persuasão do leitor oitocentista, habituado a uma cultura oralizada e pouco afeito ao impresso, ainda muito novo, com menos de noventa anos de vida em solo brasileiro, na época aqui recortada. Intimamente ligada a uma espécie de cruzada pedagógica no campo cultural, própria do século XIX, essa ficcionalização de leitor se apresenta como expediente de sedução do público real. O leitor, em relação aos produtores de bens culturais impressos, é uma alteridade a ser conquistada, e isso com os meios que estiverem disponíveis. Para Machado de Assis, O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social. (ASSIS, 1985[1859], V.3, 945) Além de mudar as práticas de produção
literária, e isso por envolver um público amplo, “democrático”,
diferente das elites habituadas ao consumo do livro, o jornal –
e os demais periódicos, acrescente-se – abalaria as estruturas
das sociedades a ele sujeitas. E por que tal convicção?
No Brasil, especialmente, porque o jornalismo, na ótica machadiana,
efetuaria um processo de educação informal, levando esse
novo público, historicamente habituado aos ornamentos discursivos
que incentivavam a crença e a adesão às idéias
alheias, a fazer contato com uma maneira de produzir e divulgar bens culturais
cuja ênfase vai para o individual, o particular, o reflexivo. O sentimento de que o livro estava ameaçado apareceu pela primeira vez na segunda metade do século XIX, no momento em que, por razões econômicas, culturais e tecnológicas, a leitura dos jornais se popularizou, chegando a novas franjas de leitores que não liam livros habitualmente. (BELO, 2002, 20) As relações entre livro e jornal medem-se
exatamente pelo tipo de público a que cada uma dessas mídias
atende, pelos usos a que cada uma dessas mídias pode se submeter.
O livro tem um leitor raro no Brasil Colônia e no Brasil Império,
raro por inúmeras razões: pouca escolaridade da população,
desprestígio histórico da leitura em favor da audição,
preço das publicações etc. O jornal, por seu lado, após um primeiro momento (suas fases ainda artesanais) de importação de beletrismo literário, foi gradativamente desenvolvendo seu próprio know-how (pós-industrialização) buscando para si uma imagem de objetividade, economia e imparcialidade que o mosaico jornalístico parecia realizar, satisfazendo a necessidade de condensação informativa e fornecendo ao leitor doses cotidianas para sua reserva de acontecimento – (ficção). (SANTAELLA, 2000, 53) Enquanto suporte de informação e cultura,
o jornal pode suprir as necessidades intelectuais do leitor. Mesmo em
sua fase inicial, no Brasil do século XIX, ele poderia ser lido
em qualquer lugar, por uma ou por várias pessoas, poderia ser alvo
de uma leitura coletiva, alcançando, assim, até mesmo receptores
analfabetos – poderia ser, também, emprestado, vencendo limites,
imposições e dificuldades financeiras. Um conto machadiano,
por exemplo, poderia ser lido e ouvido por qualquer “homem da rua”,
poderia circular pelas boticas... A produção de grandes
escritores, como também de escritores tidos como menores, posta
em periódicos garantia o consumo por parte de boa parcela do leitorado
oitocentista. Essa estratégia-mãe, a saber, a de usar o
jornal como mídia literária, certamente ampliou o número
de leitores e ajudou na revisão de padrões de produção
e recepção. Certamente, foi instrumento eficaz de educação
informal do raro leitor brasileiro do século XIX. Hay tres factores generales que siempre nos indicam qué preparación concreta espera el autor de sus lectores: primero, las normas comunes o leyes poéticas propias de un género; segundo, las referencias a obras del mismo ambiente literario; tercero, los contrastes entre imaginación y realidad, entre función poética y práctica del language que se prestan a una comparación por parte del lector consciente. (JAUSS, 1971, 76-77) Escritor e público partilham, assim, saberes prévios
que conduzem o processo de recepção e que devem ser levados
em conta na produção sobre a literatura. Dessa forma, um
escritor produz sua obra dialogando com as obras que leu e que supõe
terem sido lidas pelos receptores que busca atingir. Esse conceito pode
fundamentar um estudo das estratégias de Machado de Assis e dos
editores de jornais e livros do século XIX: os protocolos de leitura
por eles criados correspondem tanto ao gosto que vigorava, como aos padrões
que eram almejados por esses empresários da literatura e pelos
escritores envolvidos no processo. Em suas crônicas, Machado de
Assis relê situações de conhecimento público,
trabalha com notícias divulgadas durante a semana em diferentes
periódicos, não traz nada que seu leitor não pudesse
entender e discutir e, quando o faz, estabelece cadeias associativas instigadoras
de uma leitura reflexiva. Até seu ceticismo pode ser lido como
instrumento de diálogo com o horizonte de expectativas do leitorado
com o qual dialoga. Não há abertura de Congresso Nacional, não há festa de Treze de Maio, que resista a uma adivinhação. A Sessão legislativa era esperada com ânsia e será acompanhada com interesse. A festa de Treze de Maio comemorava uma página da história, uma grande, nobre e pacífica revolução, com este pico de ser descoberta uma preta Ana ainda escrava, em uma casa de S. Paulo. (1996 [1892], 57) Os moradores da cidade, a quem a Gazeta de Notícias,
periódico onde eram publicadas as crônicas em tela, atendia,
e mesmo moradores de outras localidades, já haviam tido notícia
sobre a questão do Congresso, com certeza sabiam do Treze de Maio,
até poderiam ter lido algo sobre a escrava Ana, mas o cronista
associou esses elementos díspares, na aparência, criando
uma linha narrativa capaz de levar esse leitor comum, o “homem das
ruas”, a pensar no processo político brasileiro e na questão
da sociedade escravocrata que ainda resistia à Lei maior. O cronista
machadiano resvala pelo fazer da história. E sobre essa questão,
ele registra:”Eu, se algum dia for promovido de crônica a
história, afirmo que, além de trazer um estilo barbado próprio
do ofício, não deixarei nada por explicar...” (1996[1892],
72) ... a relação entre texto e leitor só pode ter êxito mediante a mudança do leitor. Assim o texto constantemente provoca uma multiplicidade de representações do leitor, através da qual a assimetria começa a dar lugar ao campo comum de uma situação. Mas a complexidade da estrutura do texto dificulta a ocupação completa desta situação pelas representações do leitor. O aumento da dificuldade significa que as representações do leitor devem ser abandonadas. Nesta correção, que o texto impõe, da representação mobilizada, forma-se o horizonte de referência da situação. Esta ganha contornos, que permitem ao próprio leitor corrigir suas projeções. Só assim ele se torna capaz de experimentar algo que não se encontrava em seu horizonte. (ISER, 1979, 88-89) Pela própria indeterminação, a relação
texto-leitor abre incontáveis possibilidades de comunicação,
que dependem dos mecanismos textuais de controle – vazios e negações.
Estes dão o lugar do leitor, devendo ser por ele combinados no
ato da leitura, o que quebraria o fluxo textual de forma variada, abrindo
possibilidades e liberando aspectos “ocultos”. Por interromperem
a articulação das seqüências, os vazios viabilizam
a atividade imaginativa do leitor. Em “The Reading Process: A Phenomenological
Approach”, Wolfgang Iser analisa o processo de construção
literária: este não se identificaria única e exclusivamente
com o texto enquanto materialidade escrita, nem apenas com a produção
de sentido proveniente da leitura, mas seria o resultado da interação
entre o caminho produtivo e o caminho receptivo. Há, portanto,
segundo o autor, uma virtualidade que dinamiza a literatura, em cujo âmbito
o leitor tem importância fundamental: este daria mobilidade ao texto,
a partir do uso das várias perspectivas que lhe são oferecidas
(1975, 275). Machado de Assis, ao contrário de sua charge por Bordalo Pinheiro, não costumava figurar esse tipo de fuga às possibilidades reais de trabalho de um escritor na imprensa brasileira da época ou à materialidade mesma da impressão, dos tipos, do espaço restrito dos rodapés ou seções literárias de jornal. E, no seu caso, as formas que assume esse diálogo constante com a imprensa, com a impressão, teriam papel decisivo na sua produção ficcional. (SÜSSEKIND, 1993, 183-184) Além de recursos como as referências aos leitores austeros(ASSIS, 1996[1892], 45), das inclusões do leitor como companheiro do cronista, Machado de Assis também trabalha com uma explicitação da materialidade do veículo jornalístico bastante rica. Na crônica de 1893 abordada no início desta Comunicação, vê-se o autor conversando com uma ousada leitora. Vale a pena retomar essa “conversa”: -Não, não me mande embora, deixe-me ficar
ainda um instante. É tão bom vê-la, mirá-la...
E depois, advirto que estou apenas na tira oitava, e tenho de dar, termo
médio, doze. O cronista parece ficar à mercê do consumidor:
pede que este continue a lê-lo. Só que a advertência
de que um determinado número de tiras deveria ser preenchido, além
de apontar para a obrigação profissional do jornalista –
que deve ocupar um determinado espaço no papel, espaço este
que lhe é prévia e sistematicamente indicado – dá
outra dimensão ao relacionamento escritor/jornal/público:
o termo mediano desse circuito – o jornal – tinha sua organização
particular, a qual precisava ser seguida pelos dois outros termos –
escritor e público, isso para que se estabelecessem hábitos
de consumo para a mercadoria adquirida, emprestada ou ouvida, i.e., a
fim de que o que estivesse impresso pudesse ser conhecido. Em outras palavras:
o meio material de divulgação do texto também compõe
o horizonte de expectativas do leitor, do escritor e dos editores, a mídia
dita as regras da produção e da recepção.
Assim, o aparecimento repetitivo da mesma coluna, nos mesmos dias, em
um dado periódico, seria, de um lado, garantia de circulação
para o jornal e, de outro, garantia de distração para o
consumidor. Manuscritos ou impressos, os livros são objetos cujas formas comandam, se não a imposição de um sentido ao texto que carregam, ao menos os usos de que podem ser investidos e as apropriações às quais são suscetíveis. As obras, os discursos, só existem quando se tornam realidades físicas, inscritas sobre as páginas de um livro, transmitidas por uma voz que lê ou narra, declamadas num palco de teatro. (CHARTIER, 1994, 8) O suporte da escrita, então, influi diretamente
no processo de recepção. O livro, ao surgir, incrementou
uma elitização da leitura: quer voltado para o estudo, quer
para o lazer, o livro demanda, em geral, uma leitura particular e silenciosa,
a partir da qual o leitor dialoga tão só com o lido. O livro
é objeto de status, de determinação do lugar social
dos grupos que com ele são habituadas. Existe aí um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da escrita, puramente textuais, desejados pelo autor, que tendem a impor um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma maneira de ler que lhe é indicada, seja fazendo agir sobre ele uma mecânica literária que o coloca onde o autor deseja que esteja. (CHARTIER, 1996, 96) Essas instruções, no entanto, se cruzam com outras, relacionadas ao suporte material da escrita e que envolvem questões tipográficas, como disposição e divisão dos textos, ilustrações etc. Tal trabalho editorial, essa maquinaria externa ao texto, interage com ele, e traz implícito o tipo de leitor a que o impresso se dirige: Os dispositivos tipográficos têm, portanto, tanta importância ou até mais, do que os ‘sinais’ textuais, pois são eles que dão suportes móveis às possíveis atualizações do texto. Permitem um comércio perpétuo entre textos imóveis e leitores que mudam, traduzindo no impresso as mutações de horizonte de expectativa do público e propondo novas significações além daquelas que o autor pretendia impor a seus primeiros leitores. (CHARTIER, op. cit., 98) O enfoque do suporte material da escrita abre, portanto,
espaço para o social. Os protocolos de leitura implicados no impresso
indiciam os possíveis usos que cada grupo social pode fazer dele.
Como afirma Márcia Abreu: “A leitura não é
prática neutra. Ela é campo de disputa, é espaço
de poder.” (ABREU, 2002, 15) A percepção da problemática
envolvida no consumo do impresso implicou, desde seus começos,
um investimento em estratégias capazes de abrir caminhos para que
livros, jornais, folhetos, enfim, pudessem circular produtivamente nas
sociedades. ...o leitor individual insinua seus significados e objetivos dentro do texto de outrem. Cada leitor individual tem meios silenciosos e invisíveis de subverter a ordem dominante da cultura de consumo. (op. cit., idem) O leitor, sob tal ótica, tem poder sobre o texto que lê. Para Michel de Certeau, A uma produção racionalizada, expansionista, além de centralizadora, barulhenta e espetacular corresponde outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (1996, 39) Se o leitor, conforme a reflexão aqui estabelecida,
é quem movimenta o mercado cultural – que lhe é imposto,
registre-se –, sua apropriação dos bens culturais
impressos é pessoal, é ousada, desafiadora. Ao menos, pode
ser, e a leitora da crônica de Machado de Assis o atesta. Infere-se,
também, que a leitura seria produção e atividade
de indivíduos dominados por uma ordem maior, estruturadora das
formas e manifestações da escrita. Na teoria de Michel de
Certeau, os leitores só são dominados sob a ótica
dos produtores de bens culturais, i.e., dos dominadores, e isso porque
aqueles desenvolvem táticas de apropriação que fogem
às determinações destes, implícitas no texto
e no suporte – os leitores, fracos a priori, tirariam partido dos
produtores, seres fortes nessa “cadeia alimentar” intelectual. Essas idéias fecundas infelizmente carecem de dimensão histórica: elas tratam textos literários como estáticos e imutáveis. No entanto, eles são constantemente reeditados através dos tempos, em versões e formatos diferentes e a preços variáveis. Cada reencarnação de um texto tem por alvo um novo público, cuja participação e expectativas dão dirigidas não apenas pelos autores, mas por estratégias de publicação, ilustrações e tantos outros aspectos físicos do livro. (LYONS, op. cit., 10) Discordo de Lyons: as noções de horizonte
de expectativas, vazios, negações, imaginário, pautam-se,
sim, no escrito, no impresso, mas apontam para algo que transcende esses
limites. Mesmo sendo o texto-palavra a indicar o que compõe o horizonte
de expectativas, ou a indicar vazios e negações, o imaginário
do leitor é livre e imprime à leitura – e ao texto,
conseqüentemente – uma transformabilidade no tempo e no espaço,
tansformabilidade esta que não há papel e tinta que possa
deter. Parece-me que Lyons acredita demais nos procedimentos editoriais,
mas eles compõem a leitura implícita a que se refere Chartier,
i.e., eles também dependem do papel e da tinta, e mais, também
dependem de quem os crie. O problema não é orientar a leitura,
é entendê-la como processo que mescla o individual e o coletivo,
isso nos dois pólos básicos da rede literária: o
da produção e o da circulação. Doente o cronista, doente ou alistado em um batalhão de voluntários, voluntário ou preso sem noção de culpa, preso ou nadador barrigudo, força é que alguém o substitua por esta vez só, amigo leitor, que há tempos trazes o paladar apurado pelo manjar dos deuses, que todos os domingos te servem. (in: ASSIS, 1957, 435) O absurdo das desculpas evidencia a necessidade das mesmas:
somente por doença, guerra ou prisão o cronista poderia
afastar-se do jornal, quebrando uma cadeia de publicações
que simultaneamente criava e alimentava o horizonte de expectativas do
leitor oitocentista. Era necessário ocupar o lugar deixado por
Machado de Assis. Outra questão que ressalta do fragmento acima:
o leitor é um “amigo”, alguém a quem não
se poderia decepcionar, um “amigo” que já se habituara
a encontrar “manjares jornalísticos” naquela mesma
seção do periódico, todo domingo. Essa última
senha ultrapassa o textual: a publicação semanal da mesma
coluna, no mesmo espaço, no mesmo periódico, funcionaria
com estratégia editorial de formação de hábitos
de consumo do impresso. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ABREU, Márcia. “Prefácios: Percursos
da Leitura”. In.: _____ (org.). Leitura, história e história
da leitura. |
||
Voltar |