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  MACHADO DE ASSIS E O JORNAL NO SÉCULO XIX: A CRÔNICA EDUCANDO O LEITOR

Patrícia Kátia da Costa Pina - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB

A sedução da crônica é coisa antiga. É o texto que traz “a vida ao rés-do-chão”, como afirma Antonio Candido em publicação de 1981(e 1992). Segundo ele, “...ela fica perto de nós...”(CANDIDO, 1992, 13). O espaço da crônica é o do nosso mais corriqueiro cotidiano, mesmo quando ela resvala pelo lírico – e até principalmente quando ela resvala pelo lírico. Para Candido, a crônica

... pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais fantásticas, – sobretudo porque quase sempre utiliza o humor. (CANDIDO, op. cit., 14)

O cronista não é o “grande nome da literatura”, pelo menos não por escrever crônicas. Aliás, essa é, em geral, a parte “marginalizada” da produção de incontáveis escritores, brasileiros ou não. Mas o bom é perceber que essa vocação para as miudezas da vida traz a crônica para a nossa intimidade, permitindo-nos senti-la no jogo de nossas emoções e de nossas reflexões diárias. A crônica aproxima, assim, a literatura do solo em que pisamos, sem que precisemos ter grandes leituras prévias, até mesmo, sem que precisemos ter muita escolaridade, pois ela lida com o sabido e o sentido, com o conhecimento da vida, não o da escola, não o do livro – necessariamente. A crônica, até hoje, promove a inclusão do receptor no circuito cultural, enquanto o livro e a escola, muitas vezes, reforçam práticas de exclusão.
É ainda Antonio Candido quem afirma:

...a crônica pode dizer as coisas mais sérias e mais empenhadas por meio do ziguezague de uma aparente conversa fiada. Mas igualmente sérias são as descrições alegres da vida, o relato caprichoso dos fatos, o desenho de certos tipos humanos, o mero registro daquele inesperado que surge de repente...(Idem, 20)

A força e a natureza da crônica residem exatamente na sua aparência de casualidade, na metaforização das práticas orais comuns no cotidiano urbano e rural. Casualidade, oralidade são seus instrumentos de contato com o público, ao menos, seus instrumentos iniciais.
Marília Rothier Cardoso, ao estudar a crônica no século XIX, quando do surgimento e da consolidação da imprensa periódica, à qual a crônica se vê ligada por laços indissolúveis, associa essa forma narrativa à moda. A moda, em suas mutações, em sua intimidade com o consumo capitalista, representa simbolicamente a rápida transformabilidade do mundo da técnica, do mundo “moderno”. Segundo ela,

O homem da rua pode ter o mundo nas mãos, lendo reportagens, entrevistas e crônicas[...]. Significativamente, nomeia-se crônica o texto leve, fluente e sintético, que forma o elo entre o passado (as linhagens medievais) e o presente (registro do instante, resgatado da viragem para a fama). (CARDOSO,1992, 137)

A idéia que mais me seduz nessa afirmação é a do homem da rua, e pode-se entender aí “qualquer homem da rua”, não somente financistas, comerciantes, mas ex-escravos, vendedores ambulantes etc., enfim, o que mais me seduz é a idéia de democratização implícita no fragmento citado. E essa “democratização” do impresso está, é claro, associada à fluidez da crônica, à sua proximidade da “conversa fiada”, a que se referiu Antonio Candido.
Estudar a crônica produzida no século XIX, por Machado de Assis, e buscar suas relações com o público, seus meios de seduzi-lo e provocá-lo para novas e diferenciadas leituras, é o objetivo básico desta Comunicação. É a crônica como instrumento de educação informal do raro leitor brasileiro dessa época, como estratégia de estabelecimento de padrões de recepção e gosto, que será enfocada aqui. Mas são muitas décadas de produção machadiana para periódicos, muitos anos como cronista. Cabe, então, um recorte: A Semana, seção liderada por Machado de Assis durante a década de 90, em seus dois primeiros anos, 1892, 1893, será o foco desta abordagem. Que meios textuais e editoriais foram usados pelo referido escritor e seus editores, a fim de que pudessem envolver o leitor oitocentista, mais afeito à conversa que à leitura, inserindo em seu cotidiano o consumo do impresso?
Vale lermos um fragmento de crônica do Bruxo fluminense: “A senhora é uma linda frase de artista. Tem nas formas um magnífico substantivo: os adjetivos são da casa de Madame Guimarães. A boca é um verbo. Et verbo caro facta est.” (ASSIS, 1957[1893], 408) O trecho pertence a uma crônica machadiana bastante provocadora. Trata-se da representação de uma conversa entre uma leitora insatisfeita e um cronista, que se afastara da coluna na semana anterior por problemas de saúde. A leitora reclama a presença do cronista, colocando sob suspeita a doença alegada e imputando ao texto a característica de soporífero (ASSIS, 1957[1893], 409). É uma leitora ousada, sem dúvida. E ela carrega uma dupla representatividade: tanto supõe uma dada atitude autoral, como indicia uma situação para o leitor no cenário cultural oitocentista brasileiro. Por que um escritor como Machado de Assis atribuiria tanta autoridade ao leitor? Qual o papel do consumidor de bens culturais impressos nesse fim de século XIX?
Segundo Marisa Lajolo e Regina Zilberman, “...só existem o leitor, enquanto papel de materialidade histórica, e a leitura, enquanto prática coletiva, em sociedades de recorte burguês, onde se verifica no todo ou em parte uma economia capitalista.”(LAJOLO e ZILBERMAN, 1996, 16) Leitor e consumidor são, portanto, termos equivalentes no dezenove brasileiro. Daí a ousadia da ficção de leitora na crônica machadiana: é ela a grande agente do meio intelectual, concebido enquanto mercado de circulação de bens culturais. Daí a autoridade a ela atribuída. Mas essa é uma das pontas do iceberg.
Para Hélio Guimarães, Machado de Assis tem duas formas de perceber a relação literatura/público e de refletir sobre este último. A primeira, ligada ao que se considera a fase inicial de sua obra, associar-se-ia a uma fé imensa no poder do jornal e do teatro como veículos de educação informal e de formação do gosto; a segunda traria um travo de deseperança, um quê de insatisfação, traria, enfim, a constatação de que o onanismo intelectual brasileiro seria praticamente invencível:

O pequeno leitorado e a indigência do ambiente cultural brasileiro são assuntos recorrentes na produção crítica de Machado de Assis desde seu início em 1858. As explicações para os males, assim como as soluções propostas para alterar tal estado de coisas, variam bastante ao longo do tempo, mas é possível dividir a postura de Machado de Assis em relação à penúria das artes no Brasil em dois momentos principais: num primeiro momento, o mal está associado à invasão das artes estrangeiras e a solução proposta é a nacionalização da produção artística e o aperfeiçoamento do gosto do público, tarefas atribuídas aos escritores; num segundo momento, que coincide com o início de sua produção romanesca, no início da década de 1870, o crítico revela decepção generalizada com a situação das artes no Brasil. (GUIMARÃES, 2004, 107-108)

Segundo o referido pesquisador, escritores e receptores estariam acostumados a lidar com literatura estrangeira, forjando, a partir dela, seus parâmetros de produção e recepção. A isso, e nesse ponto concordo com Hélio Guimarães, Machado de Assis teria reagido, através de sua produção ensaística e ficcional, buscando o estabelecimento de novos parâmetros de criação e de gosto. Nessa linhagem de textos inserem-se “O Passado, O Presente e o Futuro da Literatura”, “Instinto de Nacionalidade”, “Idéias sobre o Teatro” e outros. Nessa possível “fase”, o escritor fluminense explicita uma crença nas possibilidades de superação das dificuldades do meio intelectual, tanto por parte de seus leitores, como por parte dos escritores.
Para Hélio Guimarães, no entanto, essa crença desaparece a partir da década de 70, dando lugar a um ceticismo corrosivo e desmistificador:

A desmistificação da produção literária é marca distintiva de sua produção crítica a partir do final da década de 11870 e na seguinte, quando escritos dessa natureza são raros. No prefácio de um livro de poemas, Machado declara que apresentar um poeta ao público é a mais inútil das tarefas [...] e ele mesmo se encarrega de desmistificar sua postura juvenil que via na instrução e na leitura a panacéia para todos os males do país e do mundo. (GUIMARÃES, op. cit., 119)

Discordo do citado pesquisador, no que tange a essa mudança de percepção: entendo que Machado de Assis viu, desde seus primeiros passos na cena intelectual brasileira, ou, mais especificamente, fluminense, a precariedade das relações autor/texto/público. Todos os seus esforços convergiram para vencer as limitações de nosso meio intelectual. Tanto seus instrumentos iniciais de controle e sedução do leitor – da leitora –, como seus expedientes de fim de século, apontam para o objetivo de construir, nos raros consumidores de bens culturais impressos do oitocentos brasileiro, hábitos de leitura, de manuseio de livros e jornais. Mesmo essa suposta descrença me parece um expediente pedagógico no sentido de tocar os brios do leitorado, fazendo-o sentir suas limitações e provocando-lhe uma necessidade de superá-las.
Em sua primeira crônica sob a rubrica A Semana, Machado de Assis define o cronista:

Sou como as atrizes, que já não fazem benefício, mas festa artística. A coisa é a mesma, os bilhetes crescem de igual modo, seja em número, seja em preço: o resto, comédia, drama, opereta, uma polca entre dois atos, uma poesia, vários ramalhetes, lampiões fora, e os colegas em grande gala, oferecendo em cena o retrato à beneficiada. (ASSIS, 1996 [1892], 45)

O cronista se vê em meio a uma sociedade do espetáculo, sabe que precisa entrar no seio dessas práticas culturais, para poder se utilizar delas com mais propriedade. Ele sabe que tem leitores e leitores austeros, sabe que precisa escrever para todos. Mais que isso – e nesse ponto atravesso a proposta de Hélio Guimarães – sabe que uma de suas tarefas é conquistar o público do espetáculo. A construção irônica de sua narrativa parece visar exatamente a um jogo com o receptor, uma espécie de esconde-esconde. O resultado final seria uma leitura crítica dos textos em circulação.
O leitor do dezenove é o mantenedor do comércio cultural: orientar seu gosto, estabelecer modos de habituá-lo a determinado tipo de texto e/ou de publicação eram ações autorais/editoriais importantíssimas. Uma das maneiras de envolver o leitor nas teias textuais é introjetá-lo nelas. A isso, Marisa Lajolo e Regina Zilberman chamam de leitor de papel e tinta:

Estes leitores de carne e osso, dos quais se ocupam os censos e que sustentam o negócio dos livros, passíveis, portanto, de serem historicizados e estudados estatisticamente, têm sua contrapartida textual: o leitor empírico, destinatário virtual de toda criação literária, é também direta ou indiretamente introjetado na obra que a ele se dirige. Assim, nomeado ou anônimo, converte-se em texto, tomando a feição de um sujeito com o qual se estabelece um diálogo, latente mas necessário. (LAJOLO, ZILBERMAN, op. cit., 16-117)

Diálogo necessário como meio de convencimento e persuasão do leitor oitocentista, habituado a uma cultura oralizada e pouco afeito ao impresso, ainda muito novo, com menos de noventa anos de vida em solo brasileiro, na época aqui recortada. Intimamente ligada a uma espécie de cruzada pedagógica no campo cultural, própria do século XIX, essa ficcionalização de leitor se apresenta como expediente de sedução do público real. O leitor, em relação aos produtores de bens culturais impressos, é uma alteridade a ser conquistada, e isso com os meios que estiverem disponíveis. Para Machado de Assis,

O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social. (ASSIS, 1985[1859], V.3, 945)

Além de mudar as práticas de produção literária, e isso por envolver um público amplo, “democrático”, diferente das elites habituadas ao consumo do livro, o jornal – e os demais periódicos, acrescente-se – abalaria as estruturas das sociedades a ele sujeitas. E por que tal convicção? No Brasil, especialmente, porque o jornalismo, na ótica machadiana, efetuaria um processo de educação informal, levando esse novo público, historicamente habituado aos ornamentos discursivos que incentivavam a crença e a adesão às idéias alheias, a fazer contato com uma maneira de produzir e divulgar bens culturais cuja ênfase vai para o individual, o particular, o reflexivo.
Cumpre ressaltar que a questão não é problematizar uma possível ameaça ao livro pela “popularidade” do jornal. André Belo assinala que

O sentimento de que o livro estava ameaçado apareceu pela primeira vez na segunda metade do século XIX, no momento em que, por razões econômicas, culturais e tecnológicas, a leitura dos jornais se popularizou, chegando a novas franjas de leitores que não liam livros habitualmente. (BELO, 2002, 20)

As relações entre livro e jornal medem-se exatamente pelo tipo de público a que cada uma dessas mídias atende, pelos usos a que cada uma dessas mídias pode se submeter. O livro tem um leitor raro no Brasil Colônia e no Brasil Império, raro por inúmeras razões: pouca escolaridade da população, desprestígio histórico da leitura em favor da audição, preço das publicações etc.
Para Marisa Lajolo e Regina Zilberman, “...o livro configura-se como lugar em que a noção de propriedade mostra a cara, conferindo visibilidade a um princípio fundamental da sociedade capitalista, construída a partir da idéia de que bens têm donos, fazem parte das transações comerciais...” (LAJOLO, ZILBERMAN, 2001, 18) O livro é patrimônio, é bem durável, pertence a uma ordem social ligada à noção de permanência e de valor material agregado. O livro não era e não é para “qualquer um”, é instrumento de exclusão social, ontem e hoje. Infelizmente...
O jornal responde a uma demanda diferenciada: seu consumidor queria e quer um contato com o cotidiano imediato, quer entretenimento barato, quer conhecimento suficiente para “manter a prosa na esquina”, “ a conversa fiada”, referida por Antonio Candido. E mais que tudo: não queria – e ainda não quer – perder a segurança de se sentir parte de um processo maior, um processo que não o exclui através de mecanismos de seleção que o caracterizam negativamente em comparação com segmentos sociais privilegiados.
Ao jornal caberia a tarefa de estabelecer um universo de receptores, a partir daquilo que era vivenciado no cotidiano da sociedade. Os antecessores do jornal diário – dentre eles destaque-se a leitura coletiva, em praça pública, de ordens, leis, avisos oficiais – supriram, por alguns séculos, as necessidades de comunicação dos que aqui viviam e contribuíram para que se estabelecesse uma tradição de oralidade. O jornal dialoga com as marcas deixadas por essa tradição, revisita-a e a coloca em interação com as mudanças culturais trazidas pelo século XIX.
Trata-se de um processo por demais complexo, no qual o jornalismo brasileiro tenta se inserir desde 1808, com a chegada da Família Real, a Imprensa Régia, a Gazeta do Rio de Janeiro e o Correio Braziliense, tendo, a princípio, Portugal como referência e, com o periódico de Hipólito da Costa, o Brasil como núcleo explícito de suas tentativas de construção de um grupo receptor expressivo, que consumisse o produto cultural, fazendo-o circular mais ampla e livremente.
A sociedade brasileira, até a difusão da imprensa, em meados de século XIX, mantém hábitos culturais formados no âmbito da oralidade, isto é, o leitor brasileiro foi criado nos liames da palavra-espetáculo. O ornato o seduz, a reflexão o afasta. É preciso reeducá-lo. Para Machado de Assis, o jornal é a mídia adequada para levar essa tarefa a bom termo, conjugando práticas orais e práticas letradas. E isso não apenas até a década de 70, como quer Hélio Guimarães. Machado de Assis sabe que o jornal é o primeiro veículo de divulgação de suas obras, mesmo daquelas apontadas pelo citado pesquisador como obras da época da decepção. Se o escritor fluminense não tivesse certeza da importância da democratização do impresso para a transformação do cenário social, político, intelectual brasileiro de fim de século XIX, não continuaria usando essa mídia para publicar crônicas, contos...
Segundo Lúcia Santaella, a linguagem jornalística insere-se perfeitamente no mundo de consumo capitalista:

O jornal, por seu lado, após um primeiro momento (suas fases ainda artesanais) de importação de beletrismo literário, foi gradativamente desenvolvendo seu próprio know-how (pós-industrialização) buscando para si uma imagem de objetividade, economia e imparcialidade que o mosaico jornalístico parecia realizar, satisfazendo a necessidade de condensação informativa e fornecendo ao leitor doses cotidianas para sua reserva de acontecimento – (ficção). (SANTAELLA, 2000, 53)

Enquanto suporte de informação e cultura, o jornal pode suprir as necessidades intelectuais do leitor. Mesmo em sua fase inicial, no Brasil do século XIX, ele poderia ser lido em qualquer lugar, por uma ou por várias pessoas, poderia ser alvo de uma leitura coletiva, alcançando, assim, até mesmo receptores analfabetos – poderia ser, também, emprestado, vencendo limites, imposições e dificuldades financeiras. Um conto machadiano, por exemplo, poderia ser lido e ouvido por qualquer “homem da rua”, poderia circular pelas boticas... A produção de grandes escritores, como também de escritores tidos como menores, posta em periódicos garantia o consumo por parte de boa parcela do leitorado oitocentista. Essa estratégia-mãe, a saber, a de usar o jornal como mídia literária, certamente ampliou o número de leitores e ajudou na revisão de padrões de produção e recepção. Certamente, foi instrumento eficaz de educação informal do raro leitor brasileiro do século XIX.
A viabilização da leitura como ato social, da leitura por grupos, da audição do lido, faz do jornal o elemento revolucionário a que se refere Machado de Assis em 1858. Em suas crônicas, o escritor em tela faz uma retrospectiva semanal de acontecimentos ligados à vida política, cultural, econômica do Rio de Janeiro e de outras partes do Brasil. É como se ele digerisse para seus leitores tudo que pudesse interessá-los, criando uma cadeia narrativa e reflexiva provocadora de uma leitura ativa.
Para compreender a ação machadiana junto ao público do oitocentos brasileiro, é interessante lançar mão de uma idéia básica de Hans Robert Jauss. No fim da década de 60 do século XX, na Alemanha, Jauss dá início a uma série de provocações aos teóricos e historiadores da literatura que dominavam o cenário acadêmico de então. Seu foco é uma crítica aos padrões imanentistas de produção na área, os quais não abordam o literário enquanto texto em comunicação, i. e., não se acercam do leitor. Nascem, aí, as Estéticas da Recepção e do Efeito, hoje representadas principalmente por ele e por Wolfgang Iser. O primeiro enfoca em suas investigações a recepção, utilizando-se de métodos histórico-sociológicos; o segundo, o efeito, trabalhando com métodos teorético-textuais.
Uma das vitoriosas provocações de Jauss concerne à idéia da ‘interpretação correta’, cuja hegemonia nos estudos literários ele abala e corrói através do conceito de horizonte de expectativas, o qual suscita questões relativas aos valores, aos hábitos, às práticas culturais das sociedades, todos partilhados por autores, editores e consumidores de bens culturais impressos no momento de publicação de cada obra e que não podem ser descartados em recepções posteriores. O horizonte de expectativas refere-se, ainda, às leituras prévias do leitorado a ser contactado:

Hay tres factores generales que siempre nos indicam qué preparación concreta espera el autor de sus lectores: primero, las normas comunes o leyes poéticas propias de un género; segundo, las referencias a obras del mismo ambiente literario; tercero, los contrastes entre imaginación y realidad, entre función poética y práctica del language que se prestan a una comparación por parte del lector consciente. (JAUSS, 1971, 76-77)

Escritor e público partilham, assim, saberes prévios que conduzem o processo de recepção e que devem ser levados em conta na produção sobre a literatura. Dessa forma, um escritor produz sua obra dialogando com as obras que leu e que supõe terem sido lidas pelos receptores que busca atingir. Esse conceito pode fundamentar um estudo das estratégias de Machado de Assis e dos editores de jornais e livros do século XIX: os protocolos de leitura por eles criados correspondem tanto ao gosto que vigorava, como aos padrões que eram almejados por esses empresários da literatura e pelos escritores envolvidos no processo. Em suas crônicas, Machado de Assis relê situações de conhecimento público, trabalha com notícias divulgadas durante a semana em diferentes periódicos, não traz nada que seu leitor não pudesse entender e discutir e, quando o faz, estabelece cadeias associativas instigadoras de uma leitura reflexiva. Até seu ceticismo pode ser lido como instrumento de diálogo com o horizonte de expectativas do leitorado com o qual dialoga.
Em 15 de maio de 1892, retoma questões publicadas na Gazeta de Notícias e no Jornal do Commercio:

Não há abertura de Congresso Nacional, não há festa de Treze de Maio, que resista a uma adivinhação. A Sessão legislativa era esperada com ânsia e será acompanhada com interesse. A festa de Treze de Maio comemorava uma página da história, uma grande, nobre e pacífica revolução, com este pico de ser descoberta uma preta Ana ainda escrava, em uma casa de S. Paulo. (1996 [1892], 57)

Os moradores da cidade, a quem a Gazeta de Notícias, periódico onde eram publicadas as crônicas em tela, atendia, e mesmo moradores de outras localidades, já haviam tido notícia sobre a questão do Congresso, com certeza sabiam do Treze de Maio, até poderiam ter lido algo sobre a escrava Ana, mas o cronista associou esses elementos díspares, na aparência, criando uma linha narrativa capaz de levar esse leitor comum, o “homem das ruas”, a pensar no processo político brasileiro e na questão da sociedade escravocrata que ainda resistia à Lei maior. O cronista machadiano resvala pelo fazer da história. E sobre essa questão, ele registra:”Eu, se algum dia for promovido de crônica a história, afirmo que, além de trazer um estilo barbado próprio do ofício, não deixarei nada por explicar...” (1996[1892], 72)
Por esse fragmento, pode-se perceber uma de suas estratégias, tanto ligada ao horizonte de expectativas no qual circulava, como ligada à sua ficcionalização de leitor: o cronista pode ir deixando vazios espalhados pelo texto, pode disseminar negações, que exijam, por parte do leitor, uma atividade imaginária – e, é claro, reflexiva. O Historiador precisa esconder as brechas de seu discurso, precisa explicar todos os nexos que cria. O cronista é livre para flanar de um assunto para outro, deixando ao leitor que faz implícito no texto a tarefa de guiar os possíveis leitores reais.
Outra questão colocada pelas Estéticas da Recepção e do Efeito, esta desenvolvida por Wolfgang Iser, concerne aos vazios e ao leitor implícito, situando-se no plano direto da textualidade. O referido teórico parte das interações humanas: tendo em vista sermos obrigados a um cotidiano de interpretações, pode-se observar que estabelecemos na interação diádica face a face uma série de elementos que permitem o início e a permanência do contato com o outro.
Relacionando a comunicação oral cotidiana à obra literária, a reflexão iseriana aponta para os instrumentos que viabilizam a interação texto/leitor, dados pelo texto e apropriados pelo receptor e que funcionariam como uma espécie de projeção do leitor, como um guia de leitura, por meio dos atos de fingir, da ativação do imaginário: “Apenas a imaginação é capaz de captar o não-dado, de modo que a estrutura do texto, ao estimular uma seqüência de imagens, se traduz na consciência receptiva do leitor.”(ISER, 1996, 79)
O texto literário se concentra nos vazios comuns às interações humanas, sistematizando-os – o leitor, em face da literatura, é um turista, que, por não conhecer as práticas locais, precisa verificar sempre sua produção de sentido – Iser se preocupa com o efeito causado pela obra:

... a relação entre texto e leitor só pode ter êxito mediante a mudança do leitor. Assim o texto constantemente provoca uma multiplicidade de representações do leitor, através da qual a assimetria começa a dar lugar ao campo comum de uma situação. Mas a complexidade da estrutura do texto dificulta a ocupação completa desta situação pelas representações do leitor. O aumento da dificuldade significa que as representações do leitor devem ser abandonadas. Nesta correção, que o texto impõe, da representação mobilizada, forma-se o horizonte de referência da situação. Esta ganha contornos, que permitem ao próprio leitor corrigir suas projeções. Só assim ele se torna capaz de experimentar algo que não se encontrava em seu horizonte. (ISER, 1979, 88-89)

Pela própria indeterminação, a relação texto-leitor abre incontáveis possibilidades de comunicação, que dependem dos mecanismos textuais de controle – vazios e negações. Estes dão o lugar do leitor, devendo ser por ele combinados no ato da leitura, o que quebraria o fluxo textual de forma variada, abrindo possibilidades e liberando aspectos “ocultos”. Por interromperem a articulação das seqüências, os vazios viabilizam a atividade imaginativa do leitor. Em “The Reading Process: A Phenomenological Approach”, Wolfgang Iser analisa o processo de construção literária: este não se identificaria única e exclusivamente com o texto enquanto materialidade escrita, nem apenas com a produção de sentido proveniente da leitura, mas seria o resultado da interação entre o caminho produtivo e o caminho receptivo. Há, portanto, segundo o autor, uma virtualidade que dinamiza a literatura, em cujo âmbito o leitor tem importância fundamental: este daria mobilidade ao texto, a partir do uso das várias perspectivas que lhe são oferecidas (1975, 275).
Nas crônicas machadianas percebe-se essa vontade de dar ao leitor a chance de entrar no texto e jogar com ele, produzindo sentidos não exatamente iguais aos previstos. Machado de Assis quer que seu leitor se aventure na trama das palavras, daí chamá-lo tantas vezes, daí inseri-lo em formas verbais pluralizadas: “Não sei bem onde tínhamos ficado...”(ASSIS, op. cit., 73), “Mas se assim explicarmos o primeiro bocejo divino...”(Idem, 77), “Voltemos ao carrilhão.”(Idem, 83), “Comecemos por excluir a abstenção.” (Idem, 99). Essa implicitação do leitor no texto pode funcionar como um mecanismo criador de identidade, de familiaridade, conseqüentemente, de hábitos de leitura. Por se sentir próximo ao cronista, o “homem das ruas” não se sente excluído do universo da escrita, sente-se parte do cotidiano do escritor, do jornal etc. O “homem das ruas” passa a ser parte do mundo capitalista. A variabilidade de assuntos, às vezes aparentemente desconexos, também parece estabelecer uma espécie de vazio, a partir do qual o leitor compõe uma ação imaginária e produz sua leitura. A própria casmurrice do cronista machadiano, combinada aos outros aspectos da construção da crônica, pode funcionar nesse processo de ativação do imaginário.
No ensaio “Machado de Assis e a Musa Mecânica”, Flora Süssekind afirma:

Machado de Assis, ao contrário de sua charge por Bordalo Pinheiro, não costumava figurar esse tipo de fuga às possibilidades reais de trabalho de um escritor na imprensa brasileira da época ou à materialidade mesma da impressão, dos tipos, do espaço restrito dos rodapés ou seções literárias de jornal. E, no seu caso, as formas que assume esse diálogo constante com a imprensa, com a impressão, teriam papel decisivo na sua produção ficcional. (SÜSSEKIND, 1993, 183-184)

Além de recursos como as referências aos leitores austeros(ASSIS, 1996[1892], 45), das inclusões do leitor como companheiro do cronista, Machado de Assis também trabalha com uma explicitação da materialidade do veículo jornalístico bastante rica. Na crônica de 1893 abordada no início desta Comunicação, vê-se o autor conversando com uma ousada leitora. Vale a pena retomar essa “conversa”:

-Não, não me mande embora, deixe-me ficar ainda um instante. É tão bom vê-la, mirá-la... E depois, advirto que estou apenas na tira oitava, e tenho de dar, termo médio, doze.
-Vamos; fale por tiras.
-Tomara poder falar-lhe por volumes, por bibliotecas. Não esgotaria o assunto: tudo seria pouco para dizer os seus feitiços e o gosto que sinto em estar a seu lado. (Idem, 409)

O cronista parece ficar à mercê do consumidor: pede que este continue a lê-lo. Só que a advertência de que um determinado número de tiras deveria ser preenchido, além de apontar para a obrigação profissional do jornalista – que deve ocupar um determinado espaço no papel, espaço este que lhe é prévia e sistematicamente indicado – dá outra dimensão ao relacionamento escritor/jornal/público: o termo mediano desse circuito – o jornal – tinha sua organização particular, a qual precisava ser seguida pelos dois outros termos – escritor e público, isso para que se estabelecessem hábitos de consumo para a mercadoria adquirida, emprestada ou ouvida, i.e., a fim de que o que estivesse impresso pudesse ser conhecido. Em outras palavras: o meio material de divulgação do texto também compõe o horizonte de expectativas do leitor, do escritor e dos editores, a mídia dita as regras da produção e da recepção. Assim, o aparecimento repetitivo da mesma coluna, nos mesmos dias, em um dado periódico, seria, de um lado, garantia de circulação para o jornal e, de outro, garantia de distração para o consumidor.
Em A ordem dos livros, Roger Chartier ressalta a importância do meio material do impresso para a efetivação de um processo receptivo:

Manuscritos ou impressos, os livros são objetos cujas formas comandam, se não a imposição de um sentido ao texto que carregam, ao menos os usos de que podem ser investidos e as apropriações às quais são suscetíveis. As obras, os discursos, só existem quando se tornam realidades físicas, inscritas sobre as páginas de um livro, transmitidas por uma voz que lê ou narra, declamadas num palco de teatro. (CHARTIER, 1994, 8)

O suporte da escrita, então, influi diretamente no processo de recepção. O livro, ao surgir, incrementou uma elitização da leitura: quer voltado para o estudo, quer para o lazer, o livro demanda, em geral, uma leitura particular e silenciosa, a partir da qual o leitor dialoga tão só com o lido. O livro é objeto de status, de determinação do lugar social dos grupos que com ele são habituadas.
A leitura, para Chartier, parece ultrapassar os limites tanto do público, quanto do privado, parece apelar para algo pessoal, interior, muito próprio de cada indivíduo, algo a que o processo de ficcionalização do leitor, explicitado na crônica machadiana em tela, remete. O estudo dessas estratégias de sedução, envolvimento e persuasão do leitor real percorre a obra de inúmeros teóricos e historiadores da literatura e da leitura.
Segundo Roger Chartier, “O essencial é compreender como os mesmos textos podem ser diversamente apreendidos, manejados e compreendidos”. (CHARTIER, op. cit.,16) Essa diversidade não implica, necessariamente, marcas de hierarquização, não faz, por exemplo, o livro melhor que o jornal, mas aponta para a relação indispensável entre conteúdo e suporte material do texto.
Em “Do Livro À Leitura”, Chartier trabalha com a questão da posse do livro e com a questão dos usos do impresso e das formas de apropriação do mesmo, colocando a história do impresso como uma história das práticas culturais a ele associadas: ele expõe duas formas de abordagem da história do impresso e da leitura – a que enfoca a produção de textos e a que aborda a produção de livros. O que importa para a investigação da leitura via produção de textos são as senhas, explícitas ou implícitas, trabalhadas pelo autor, suas instruções ao leitor, as quais têm duas estratégias, a saber, inscrever no texto convenções sociais ou literárias e empregar técnicas que objetivam a produção de um determinado efeito:

Existe aí um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da escrita, puramente textuais, desejados pelo autor, que tendem a impor um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma maneira de ler que lhe é indicada, seja fazendo agir sobre ele uma mecânica literária que o coloca onde o autor deseja que esteja. (CHARTIER, 1996, 96)

Essas instruções, no entanto, se cruzam com outras, relacionadas ao suporte material da escrita e que envolvem questões tipográficas, como disposição e divisão dos textos, ilustrações etc. Tal trabalho editorial, essa maquinaria externa ao texto, interage com ele, e traz implícito o tipo de leitor a que o impresso se dirige:

Os dispositivos tipográficos têm, portanto, tanta importância ou até mais, do que os ‘sinais’ textuais, pois são eles que dão suportes móveis às possíveis atualizações do texto. Permitem um comércio perpétuo entre textos imóveis e leitores que mudam, traduzindo no impresso as mutações de horizonte de expectativa do público e propondo novas significações além daquelas que o autor pretendia impor a seus primeiros leitores. (CHARTIER, op. cit., 98)

O enfoque do suporte material da escrita abre, portanto, espaço para o social. Os protocolos de leitura implicados no impresso indiciam os possíveis usos que cada grupo social pode fazer dele. Como afirma Márcia Abreu: “A leitura não é prática neutra. Ela é campo de disputa, é espaço de poder.” (ABREU, 2002, 15) A percepção da problemática envolvida no consumo do impresso implicou, desde seus começos, um investimento em estratégias capazes de abrir caminhos para que livros, jornais, folhetos, enfim, pudessem circular produtivamente nas sociedades.
Em “A História da Leitura de Gutenberg a Bill Gates”, Martyn Lyons relê Michel de Certeau: “ O leitor é um invasor, rastejando pela propriedade de outrem atrás de propósitos nefastos.”(LYONS, 1999, 11) Depreende-se da definição dada que a atividade de leitura seria invasiva, audaciosa, independente. Mais adiante, na mesma página e no mesmo contexto teórico, ele afirma:

...o leitor individual insinua seus significados e objetivos dentro do texto de outrem. Cada leitor individual tem meios silenciosos e invisíveis de subverter a ordem dominante da cultura de consumo. (op. cit., idem)

O leitor, sob tal ótica, tem poder sobre o texto que lê. Para Michel de Certeau,

A uma produção racionalizada, expansionista, além de centralizadora, barulhenta e espetacular corresponde outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (1996, 39)

Se o leitor, conforme a reflexão aqui estabelecida, é quem movimenta o mercado cultural – que lhe é imposto, registre-se –, sua apropriação dos bens culturais impressos é pessoal, é ousada, desafiadora. Ao menos, pode ser, e a leitora da crônica de Machado de Assis o atesta. Infere-se, também, que a leitura seria produção e atividade de indivíduos dominados por uma ordem maior, estruturadora das formas e manifestações da escrita. Na teoria de Michel de Certeau, os leitores só são dominados sob a ótica dos produtores de bens culturais, i.e., dos dominadores, e isso porque aqueles desenvolvem táticas de apropriação que fogem às determinações destes, implícitas no texto e no suporte – os leitores, fracos a priori, tirariam partido dos produtores, seres fortes nessa “cadeia alimentar” intelectual.
Martyn Lyons, no capítulo estudado, declara encontrar nas Estéticas da Recepção e do Efeito, representadas aqui por Jauss e Iser, uma ajuda na empreitada historiográfica de caça ao leitor, mas reflete:

Essas idéias fecundas infelizmente carecem de dimensão histórica: elas tratam textos literários como estáticos e imutáveis. No entanto, eles são constantemente reeditados através dos tempos, em versões e formatos diferentes e a preços variáveis. Cada reencarnação de um texto tem por alvo um novo público, cuja participação e expectativas dão dirigidas não apenas pelos autores, mas por estratégias de publicação, ilustrações e tantos outros aspectos físicos do livro. (LYONS, op. cit., 10)

Discordo de Lyons: as noções de horizonte de expectativas, vazios, negações, imaginário, pautam-se, sim, no escrito, no impresso, mas apontam para algo que transcende esses limites. Mesmo sendo o texto-palavra a indicar o que compõe o horizonte de expectativas, ou a indicar vazios e negações, o imaginário do leitor é livre e imprime à leitura – e ao texto, conseqüentemente – uma transformabilidade no tempo e no espaço, tansformabilidade esta que não há papel e tinta que possa deter. Parece-me que Lyons acredita demais nos procedimentos editoriais, mas eles compõem a leitura implícita a que se refere Chartier, i.e., eles também dependem do papel e da tinta, e mais, também dependem de quem os crie. O problema não é orientar a leitura, é entendê-la como processo que mescla o individual e o coletivo, isso nos dois pólos básicos da rede literária: o da produção e o da circulação.
A partir das investigações dos teóricos das Estéticas da Recepção e do Efeito, surgiram diferentes abordagens co campo das histórias da literatura e da leitura e novos estudos sobre o leitor. Nessa trilha, Roger Chartier reencontra Iser, em sua proposta do leitor implícito, e investiga a leitura implícita, ampliando e deslocando o objeto iseriano: “Uma segunda maquinaria, puramente tipográfica, sobrepõe seus próprios efeitos, variáveis segundo a época, aos de um texto que conserva em sua própria letra o protocolo de leitura desejada pelo autor”. (CHARTIER, 1996, 96) Na ótica iseriana, o que conta para o estudo do leitor e da leitura é enfocar as senhas trabalhadas pelo autor – trata-se de um estudo da produção de textos. Chartier propõe que a estas senhas se cruzem outras, ligadas à produção de livros.
Historiadores da leitura como Martyn Lyons e Roger Chartier, apesar de reconhecerem um débito com as teorias alemãs, estabelecem um desdobramento dessas, ampliando seu objeto de estudo e enfocando a materialidade do impresso. Nos enfoques teóricos destacados até aqui, o estudo da leitura e do leitor sempre remonta ao texto-palavra. Com Chartier e Lyons, os estudos remontam ainda ao texto-acontecimento, ao texto publicado – e a seu suporte, claro.
Em se tratando de crônica – e de crônica escrita por Machado de Assis – , estudar as senhas autorais e as editoriais é fundamental para se perceber as estratégias de sedução e envolvimento de público. Uma das crônicas machadianas aqui abordadas, de 1893, tematiza uma conversa do cronista com uma leitora insatisfeita. Na semana anterior, Ferreira de Araújo havia substituído o escritor fluminense, daí a “conversa” entre o cronista e a leitora. Na crônica escrita por Ferreira de Araújo, destacam-se senhas textuais e extra-textuais. No primeiro grupo, salta aos olhos a mudança do nome da seção, de “A Semana”, para “Uma Semana”, a troca dos artigos evidencia a exceção à regra, e mais: evidencia que havia uma regra, havia normas, havia um horizonte de expectativas a ser levado em consideração.
Ferreira de Araújo demonstra, também, grande empenho em desculpar-se com o leitor:

Doente o cronista, doente ou alistado em um batalhão de voluntários, voluntário ou preso sem noção de culpa, preso ou nadador barrigudo, força é que alguém o substitua por esta vez só, amigo leitor, que há tempos trazes o paladar apurado pelo manjar dos deuses, que todos os domingos te servem. (in: ASSIS, 1957, 435)

O absurdo das desculpas evidencia a necessidade das mesmas: somente por doença, guerra ou prisão o cronista poderia afastar-se do jornal, quebrando uma cadeia de publicações que simultaneamente criava e alimentava o horizonte de expectativas do leitor oitocentista. Era necessário ocupar o lugar deixado por Machado de Assis. Outra questão que ressalta do fragmento acima: o leitor é um “amigo”, alguém a quem não se poderia decepcionar, um “amigo” que já se habituara a encontrar “manjares jornalísticos” naquela mesma seção do periódico, todo domingo. Essa última senha ultrapassa o textual: a publicação semanal da mesma coluna, no mesmo espaço, no mesmo periódico, funcionaria com estratégia editorial de formação de hábitos de consumo do impresso.
Internas ao texto ou externas a ele, as senhas de autores, editores, gráficos etc. parecem operar como elementos condutores do ato de ler, sim, mas também, provocadores do imaginário dos receptores. Acima de tudo: entendo que tais senhas se inserem no projeto pedagógico assumido pelos intelectuais do século XIX, não apenas da primeira metade, mas de todo o século, no sentido de que se estabelecessem, a princípio, e se reformassem e alimentassem, posteriormente, padrões de consumo de bens culturais impressos, parâmetros de recepção cultural. Essas senhas funcionaram, segundo entendo, como elementos agilizadores de um processo de educação informal do leitorado brasileiro oitocentista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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