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  REINVENTANDO SENTIDOS E SIGNIFICADOS: MEMÓRIA E EXPERIÊNCIA EM PROCESSOS DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL
LIVRO DA VIDA: PÁGINAS PREENCHIDAS COM NOSSA MEMÓRIA

Ana Maria Ribeiro de Carvalho Gonsaga Ramadan (SME - Campinas)
Elaine Ferraresi Serediuk (SME - Campinas)

(RESUMO) A preocupação com a sistematização das informações obtidas e vivenciadas, no Curso de aperfeiçoamento para Monitores, nos motivou a utilizar um significativo instrumento de registro coletivo: O LIVRO DA VIDA, cujo objetivo foi relatar os fatos relevantes de cada encontro. Na verdade, queríamos que se tornasse nossa memória escrita, o reflexo da vida do grupo, onde pudéssemos expressar através da escrita, desenhos, pinturas e fotos toda a reflexão entre teoria e prática produzida ali, tendo como referência o trabalho diário desenvolvido nas creches. Mais do que informar os ausentes sobre o que aconteceu, o Livro da Vida tornou-se também um convite para que percebessem a importância do registro na prática educativa.

Este Relato de Experiência diz respeito ao trabalho de registro do vivido no decorrer do Curso de Aperfeiçoamento para monitores de creches, oferecido pela Secretaria Municipal de Educação de Campinas (SP) em 2004, que propõe uma formação específica sobre Educação Infantil para os profissionais que lidam diretamente com crianças de 0 a 3 anos.
A dinâmica do Curso e as experiências vividas em cada Grupo nos deu a possibilidade de um trabalho autônomo e singular, tendo a criatividade como aliada em todo o processo. Ao mesmo tempo em que isso nos instigava, também nos dava a liberdade de trazer para este trabalho com adultos algo que já utilizávamos com as crianças.
Como professoras de Educação Infantil da Rede Municipal de Campinas, desenvolvemos com as crianças um trabalho voltado a Pedagogia Freinet, e usamos, em nossas escolas, várias técnicas sugeridas por ele. E o livro da Vida é uma delas. Não podemos negar que nossa prática tem como suporte os fundamentos desta Pedagogia, adquiridos no processo incessante de reflexões entre teoria e prática, resultando, portanto, em uma mudança de postura em relação a concepção de educação, aprendizagem e criança . E não poderíamos deixar de trazer, para o Curso de Aperfeiçoamento de Monitoras, estas contribuições, já que não conseguimos mais dissociá-la das práticas educativas, seja ela com os adultos ou com as crianças.
Gostaríamos de salientar que todas as técnicas criadas por Freinet têm como objetivo favorecer o desenvolvimento dos métodos naturais da linguagem (desenho, escrita, gramática), da matemática, das ciências naturais e das ciências sociais. Porém, essas técnicas não são um fim em si mesmas, e sim, momentos de um processo de aprendizagem, que ao partir dos interesses mais profundos, propicia as condições para o estabelecimento da apropriação do conhecimento.
O primeiro fundamento da Pedagogia Freinet resume-se bem neste objetivo: Exprimir seus sentimentos e suas idéias. O Livro da Vida aparece então como uma das técnicas para o trabalho com este objetivo, mas também não podemos esquecer que outros objetivos surgem com igual valor para o trabalho com as monitoras: priorizar a memória e valorizar o registro individual e coletivo da prática.
Segundo Freinet (1995), o LIVRO DA VIDA é uma espécie de diário da turma, ao qual as pessoas têm livre acesso e do qual o formador também deve participar. O ideal é que seja montado com folhas grandes que são acrescentadas ao conjunto diariamente. O Livro da Vida é a forma de registro mais primária da livre expressão pois, embora pertença ao grupo, é formado pelas contribuições pessoais mais espontâneas. Nele podemos incluir qualquer trabalho (texto, desenho, pintura) que desejamos, sem passar pela correção coletiva.
Esta foi nossa principal produção coletiva realizada no Grupo, cujo objetivo era relatar tudo o que aconteceu, que se viveu, se disse e se realizou no decorrer dos dias. E foi isso que nos motivou a preencher as páginas em branco...
Queríamos que se tornasse nossa memória escrita... O reflexo da vida no grupo, onde pudéssemos expressar através da escrita, desenhos pinturas e fotos toda a reflexão que fazíamos sobre a nossa prática.
Através dos relatos pudemos informar aos ausentes sobre o que aconteceu, mas não podemos negar que se tornou também uma ligação com pessoas de fora do grupo, principalmente quando as monitoras levavam o livro para as unidades e o mostravam para suas colegas de trabalho, convidando-as a uma participação indireta.
E por falar em REGISTRO... o tempo todo este assunto esteve presente em nossas discussões e, no decorrer do curso, tivemos esta preocupação, solicitando sempre uma forma de registro individual das discussões e reflexões entre teoria e prática. E assim tiveram a chance de escrever cartas, poesias, narrativas, resenhas e até textos dissertativos sobre vários assuntos como, por exemplo: espaço físico, concepção de crianças, os direitos das crianças, o significado da infância, história da creche no Brasil, o profissinal das creches, teóricos da educação, etc...
A cada encontro uma pessoa era a responsável pelo registro do dia, anotando ali o máximo possível do que foi dito e feito. E em cada página surgia um jeito diferente de perceber as situações. Havia anotações sucintas e outras formais, tinha as mais descontraídas e aquelas que pareciam contos... Não importava a letra, mas sim o que as letras diziam, o que contavam...
Percebemos, que a cada página preenchida, havia um partilhar, tanto na responsabilidade do registro como também do “olhar” sobre o que acontecia nos encontros. Gostaríamos que o registro não tivesse apenas nosso olhar de “formadoras”, mas que o livro trouxesse e mostrasse esta heterogeneidade de pensamentos e habilidades, por muito tempo esquecido por estas mulheres como: atenção, observação, análise, síntese, capacidade de organização de idéias, poder de argumentação, habilidades entre a expressão oral e a escrita.
“Não fomos educados para olhar pensando o mundo, a realidade, nós mesmos. Nosso olhar cristalizado nos estereótipos produziu em nós paralisia, fatalismo, cegueira. Para romper esse modelo autoritário, a observação é a ferramenta básica neste aprendizado de construção do olhar sensível e pensante. Olhar que envolve atenção e presença. Atenção que para Simone Weil ‘é a mais alta forma de generosidade’. Atenção que envolve sintonia consigo mesmo, e com o grupo. Concentração do olhar inclui escuta de silêncios e ruídos de comunicação.” (Madalena Freire, 1996)

Já na reta final, ao rever o LIVRO DA VIDA para montarmos um Dossiê sobre a história da trajetória de nosso Grupo dentro do Curso de Aperfeiçoamento de Monitoras, algo tocou em todas nós... A medida que virávamos as páginas todas tinham o que lembrar do trabalho e das experiências vividas.
Naquele momento o “escrever e registrar para quê?” estava sendo respondido sem palavras. Não havíamos nos dado conta do quanto tínhamos feito e de que o tempo havia passado rápido demais. Imediatamente nos lembramos do filme “Os Narradores de Javé”. E neste momento sentimos uma mistura de alívio e alegria em saber que a história de nosso grupo já estava escrita, e jamais esqueceríamos, pois tínhamos nas mãos um objeto significativo, que legitimava o vivido: nosso LIVRO DA VIDA totalmente preenchido!

BIBLIOGRAFIA

FREINET, C. Para uma escola do Povo: guia prático para a organização material, técnica e pedagógica da escola popular; SP; Martins fontes, 1995

FREINET, C. A pedagogia do bom senso, Editorial 70, Lisboa

___________ O nascimento de uma Pedagogia Popular, Ed. Estampa, Lisboa

___________ Método natural, Ed. Estampa, Lisboa, vol I – A aprendizagem da língua
vol II – A aprendizagem do desenho; vol III – A aprendizagem da escrita

FREIRE, Madalena Observação, Registro, Reflexão – Instrumentos Metodológicos, Série Seminários, 2a ed., 1996, Publicação do Espaço Pedagógico.

LIÈGEOIS, Groupe Maternal et.al A pedagogia Freinet na Educação Infantil Hoje (trad. Ruth Joffily)

VÁRIOS AUTORES, A pedagogia Freinet por aqueles que a praticam, Martins Fontes, Ed. Santos

 
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