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  DISCURSO E INTERAÇÃO EM SALA DE AULA

Rosana Ribeiro Ramos - USP

INTRODUÇÃO
Neste trabalho pretendo abordar a questão do uso da linguagem na interação professor/aluno, utilizando-me de observações realizadas em uma escola pública no 1o semestre de 2003 durante o meu período de estágio no curso de Licenciatura. As atividades de observação e regência foram realizadas nas turmas de 3o ano do Ensino Médio (período noturno), sendo que as aulas observadas foram ministradas em todas as salas pelo mesmo professor titular e, em sua ausência, pela mesma professora eventual. Deste período de estágio foi selecionado um corpus para análise neste trabalho (veja Anexo).

Na apresentação do corpus é possível observar que naquelas aulas de Língua Portuguesa não há êxito na interação entre os professores e seus alunos, no sentido de se estabelecer um diálogo produtivo; quando há diálogo entre eles, o conflito em questão não é solucionado e nem, ao menos, amenizado; ao contrário disto, cria-se um ambiente de insatisfação e até desrespeito; ou, em outra vez, não há o diálogo quando este é esperado por uma das partes.

Aqueles alunos, cuja faixa etária é de 16 a 27 anos, já estão na última fase da Educação Básica e enfrentarão (ou já enfrentam) os desafios da sociedade que exigirá deles um conjunto de habilidades supervalorizadas, como: flexibilidade, articulação, autonomia de pensamento e ação etc. Assim, estes alunos precisam (não só pela exigência da sociedade, mas para sua própria formação pessoal) pensar, tomar iniciativas, expressar seus pensamentos e idéias, argumentar, saber ouvir o outro e trabalhar em grupo. Porém, as situações em sala de aula que poderiam ser aproveitadas para o ensino/aprendizado dessas habilidades são desperdiçadas. A meu ver, sendo a conversação a prática social mais comum no dia a dia do ser humano, a sala de aula se torna um lugar privilegiado para ele aprender a falar e, para além disto, aprender sobre o que falar quer dizer (Bourdieu, 77).

Diante de tudo isso, alguns questionamentos são inevitáveis: o que leva as interações em situação específica de conflito em sala de aula a serem (ou não) bem-sucedidas? Por que, em determinadas situações, não se consegue ter espaço para negociação. O que leva um aluno a se pronunciar diante de seu professor de maneira desafiadora ou autoritária? Ou, o que leva um professor a se pronunciar de forma autoritária diante de seus alunos? De maneira corriqueira costumamos falar que a maneira de alguém falar causou aquela atitude negativa no outro. Isto é sempre uma verdade? Estamos, então, diante de questões ligadas ao uso da linguagem ou aos poderes da linguagem. Interessa analisar a maneira como os sentidos vão sendo construídos nas seqüências de falas pronunciadas e, ainda, como esses sentidos afetam o outro.

O objetivo deste trabalho é refletir sobre as questões abordadas acima, fazendo uso das considerações da Análise do Discurso. Na primeira parte, o corpus será analisado à luz da teoria dos Atos de Linguagem desenvolvida por J. L. Austin, e será também utilizado o modelo de análise de Oswald Ducrot. Na segunda parte, será analisada a Imagem que os interlocutores constroem um do outro e de seu referente em determinada situação, seguindo a perspectiva de Pêcheux, em uma leitura de Osakabe. Na terceira parte, com base nos dados obtidos na primeira e segunda parte, serão feitas algumas considerações sobre a perspectiva do sujeito condicionado à sua situação sócio-histórica; nesta parte serão levados em conta os estudos de Norman Fairclough. E, finalmente, a conclusão procurará esclarecer a inserção deste trabalho em um âmbito maior de pesquisa.

Antes ainda de passar às partes do trabalho, é importante esclarecer que levarei em consideração algumas contribuições da Análise do Discurso, conforme já mencionado. Para tanto, estou partindo do trabalho de Osakabe que se preocupou com a questão da delimitação do discurso e da necessidade de se esquematizar o sentido que, por consenso, tem sido atribuído ao termo, dentro da própria lingüística. O autor perpassa as considerações sobre o problema da delimitação do discurso feitas por Harris, Pêcheux e Benveniste.

Em um reexame das considerações sobre as contribuições dos autores citados, Osakabe chega às seguintes conclusões:

“Do ponto de vista de sua natureza, o discurso caracteriza-se inicialmente por uma maior ou menor participação das relações entre um eu e um tu; em segundo lugar, o discurso caracteriza-se por uma maior ou menor presença de indicadores de situação; em terceiro lugar, tendo em vista sua pragmaticidade, o discurso é necessariamente significativo na medida em que só se pode conceber sua existência enquanto ligada a um processo pelo qual eu e tu se aproximam pelo significado; e, finalmente, o discurso tem sua semanticidade garantida situacionalmente, isto é, no processo de relação que se estabelece entre suas pessoas (eu/tu) e as pessoas da situação, entre seus indicadores de tempo, lugar etc. e o tempo, lugar etc. da própria situação.
Do ponto de vista de sua extensão, o discurso constitui uma entidade mais ampla do que a frase (a não ser que determinada frase possa ser caracterizada como discurso); em segundo lugar está limitado por dois brancos semânticos, que se devem quer à ausência pura e simples de uma cadeia significativa que o constitui, quer à alteração do locutor”.

PARTE I – OS ATOS DE LINGUAGEM
Foi o filósofo inglês, J. L. Austin, quem primeiro procurou descrever os diferentes empregos da linguagem, o que o levou a elaborar a noção de força ilocucionária (uma dimensão de todo enunciado ligada a seu sentido, mas não idêntica a ele). Segundo o autor o sujeito falante procede a três atos fundamentais no momento em que fala: primeiramente, ele procede a um ato locucionário (ato de “dizer algo”; por exemplo: ele me disse: “atire nela”); em segundo lugar, ele procede ao ato ilocucionário (a realização de um ato ao dizer algo, em oposição à realização de um ato de dizer algo; exemplo: ele me aconselhou a atirar nela); e, em terceiro lugar, o ato perlocucionário (consiste em se obter certos efeitos pelo fato de se dizer algo; exemplo: ele me persuadiu a atirar nela)” . Mais tarde, J. Searle refere-se ao ato perlocucionário como conseqüência dos atos ilocucionários:

“Se considerarmos a noção de ato ilocucionário, é preciso também considerar as conseqüências, os efeitos que tais atos têm sobre as ações, os pensamentos ou as crenças etc. dos ouvintes” .

É importante ainda mencionar que, para Austin, há uma oposição entre enunciados performativos e constatativos. “Uma expressão é chamada de constatativa quando tende apenas a descrever um acontecimento. Ela é chamada de performativa quando: 1) descreve uma certa ação de seu locutor e quando 2) sua enunciação consegue realizar essa ação; dir-se-á, pois, que uma frase que começa por “eu te prometo que” é performativa, pois, ao empregá-la, realiza-se o ato de prometer: não só diz-se prometer mas, ao fazê-lo, promete-se” .

Diante do embasamento teórico referenciado até aqui, passo, então, a analisar fragmentos dos discursos produzidos pelos professores e alunos. As análises efetuadas nas partes a seguir contribuirão para a compreensão da interação em sala de aula, nas situações dadas.

1.1 Presença do enunciado performativo
Aqui, pretendo reconhecer a presença do performativo no enunciado “você vai mudar de lugar” do Fragmento1 [F.1] do corpus. Considerando o interesse de analisar o sentido construído em determinadas seqüências de fala, acho importante reconhecermos os performativos que nos permitem enxergar quais ações estão sendo realizadas em tais enunciados.

Os critérios da análise feita neste item foram usados por Austin para provar os enunciados performativos . No exemplo dado,
• se o ato é, de fato, performativo, há a realização de uma ação;
• uma ação só pode ser efetuada por um sujeito (o “eu” do enunciado);
• se, ao enunciar, o sujeito realiza uma ação, há algo que está sendo feito por ele no momento da enunciação , portanto, no tempo presente; há um ato realizado na própria fala;
• O ato ilocucionário pode ser parafraseado e explicitado por uma fórmula performativa. Sendo assim, “você vai mudar de lugar” poderia ser substituído por “eu afirmo que você vai mudar de lugar” ou “eu ordeno que você mude de lugar” ou “eu aconselho que você mude de lugar” ou “eu permito que você mude de lugar”, ou “eu o desafio a mudar de lugar” etc. Encontramos, então, o ato de afirmar, ordenar, aconselhar etc. O ato ilocucionário exprime a intenção do enunciador e, em nosso caso, o enunciador é o mesmo quem realiza a ação;

O próximo item nos dará pistas do ato específico produzido em [F.1].

1.2 Modo imperativo e prosódia
Para Austin, todo verbo no modo imperativo é um performativo. Porém, “um ‘imperativo’ pode ter vários sentidos (conforme demonstrado no item anterior): pode ser uma ordem, uma permissão, uma exigência, um pedido com empenho, uma sugestão, uma recomendação, uma advertência (‘vá e você verá’), ou pode expressar uma condição ou concessão ou ainda uma definição...”. Tomando [F.1] como exemplo qual seria, então, os sentidos produzidos pelo enunciado “você vai mudar de lugar...”?

Neste caso, é importante que consideremos não só a superfície do texto (o enunciado), mas o contexto da situação dada (a enunciação), que nos dará pistas do sentido produzido pela fala do enunciador. Por se tratar de língua falada, o contexto nos permite saber sobre a entonação usada pelos enunciadores (no caso, professor e aluna), a qual nos dá pistas sobre suas emoções (ou a falta de emoção): sentimento de alegria, raiva, ironia, desespero, desprezo etc. Neste caso, o significado dos atos ilocucionários só pode ser apreendido se levarmos em conta os aspectos prosódicos . Em “você vai mudar de lugar”, a elocução é realizada em um ritmo bem acelerado, em uma curva entonacional ascendente e descendente. Constatamos que o “imperativo”, neste caso, tem a força de uma ordem. O professor ordena, de maneira autoritária, que a aluna.1 mude de lugar.

É preciso aqui considerar também os lugares sociais ocupados por professor e aluno. Pierre Bourdieu discute claramente essa questão:

“A escola é um mercado dominado pelas exigências imperativas do professor que é legitimado para ensinar o que não deveria ser ensinado se todo mundo tivesse oportunidades iguais para adquirir esta capacidade (...). O professor é uma espécie de juiz de menores em questões lingüísticas: tem o direito de correção e de sanção sobre a linguagem de seus alunos. O autor diz ainda que, “para que o discurso professoral comum, enunciado e recebido como óbvio, funcione, é preciso uma relação de autoridade-crença, uma relação entre um emissor autorizado e um receptor pronto a receber o que é dito. É preciso que um receptor pronto a receber seja produzido, e não é a situação pedagógica que o produz”. (...) É preciso haver uma linguagem legítima .

Na análise feita neste item, já é possível perceber que o discurso produzido por professor/aluno não colaborou para o sucesso da interação entre eles.

1.3 Ato de perlocução: objetivo x resultado real
Conforme citado anteriormente, para Searl o ato de perlocução é conseqüência do ato de ilocução. Vejamos, novamente, qual é o ato de ilocução produzido ainda em [F.1]:

Enunciado ato de ilocucão
a) “você vai mudar de lugar” [F.1] de ordem (“eu ordeno que você mude de lugar”)


Agora, vejamos o possível efeito que este ato teve sobre as ações, os pensamentos ou as crenças etc. do ouvinte. Segundo Austin, o ato de perlocução pode alcançar o êxito de seu objetivo, ou pode obter um resultado diferente do esperado . Novamente, é preciso considerar o contexto, como no item anterior:

Objetivo do ato de perlocução resultado real do ato de perlocução
a) conduzir a obedecer rebeldia, discórdia

Conforme observado, o objetivo esperado pelo enunciador não foi alcançado na situação dada. Neste exemplo, a interação é marcada por ordem x contra-reação. Ao ordenar que a aluna mudasse de lugar, o professor provavelmente esperava a obediência dela. Porém, ela – ao invés de obedecer – retruca com uma pergunta pedindo explicação para aquela ordem. Ainda neste mesmo fragmento, ao explicar a razão de sua ordem, o professor não obteve adesão por parte da aluna:

Professor: Você vai mudar de lugar, sente-se aqui.
Aluna.1: Por quê? Explica o porquê.
Professor: Porque eu quero que você sente aqui.
Aluna.1: Isso não é explicação!

Diante dos exemplos dados, é possível observar que os efeitos produzidos pela fala dos interlocutores não colaboraram para o sucesso da interação entre eles. Isto nos remete novamente ao questionamento de Bourdieu:

“Por que em certas condições históricas, em certas situações sociais, ressentimo-nos com angústia ou mal estar, desta demonstração de força que está sempre implícita ao se tomar a palavra em situação de autoridade ou, se quisermos, em situação autorizada, sendo o modelo desta situação a situação pedagógica?” .

Se o ato de perlocução, conforme Searle, é resultado do ato de ilocução, é possível pensar, por exemplo, que a rebeldia e discórdia da “aluna.1” em [F.1] é conseqüência do autoritarismo do professor (considerando as condições de produção que envolve o contexto: professor com o objetivo de conduzir a obedecer, usando-se de uma ordem – de maneira autoritária). Nesta parte, este trabalho tem uma percepção que difere da percepção de Searl (veja explanação na parte III).

1.4 Implícitos
Nesta parte gostaria de chamar a atenção para os enunciados implícitos do corpus, ou seja, interessa saber o que os implícitos dizem, quais os possíveis efeitos causados por eles. Na perspectiva de Ducrot , deixando de lado a concepção de Saussure, a língua não é só definida como um código, isto é, como um instrumento de comunicação. Ela perde sua inocência e é considerada como o estabelecimento das regras de um jogo. Para ele, o fenômeno da pressuposição deve ser compreendido como um quadro institucional que regula o debate dos indivíduos; nem todos os conteúdos expressos são exprimidos de maneira explícita; o que é dito no código, nem sempre é totalmente dito. Vemos exemplos de discursos em que é possível haver uma significação implícita, ao analisarmos [F.1], por exemplo, e também [F.2]:

Em [F.1], ao ser repreendida por estar conversando durante a explicação do professor, a aluna.2 diz “o senhor também estava conversando uma hora”. Aqui, a aluna parece querer reduzir sua responsabilidade a essa significação literal, pondo a significação implícita sob a responsabilidade do ouvinte – o professor –. O implícito pode ter sido reconstituído pelo professor de várias maneiras, como: “se o senhor estava conversando uma hora, por que nós também não podemos fazê-lo?” ou “por que o senhor pode conversar e nós não? É importante lembrar que, na perspectiva de Pêcheux, pode-se ter um texto acabado, mas não um discurso acabado. Em nosso contexto de interação, notamos, então, que o professor ordena que a aluna.1 mude de lugar por causa de sua conversa com o colega, porém, a aluna.2 contra-reage dizendo que o professor também havia conversado. Não há, então, acordo entre eles e o assunto não tem continuação. Neste caso, está implícita também a imagem que aluno e professor fazem um do outro (veja Parte II deste trabalho).

Segundo Ducrot,
“Uma origem possível para a necessidade do implícito prende-se ao fato de que toda afirmação explicitada torna-se, por isso mesmo, um tema de discussões possíveis. Tudo que é dito pode ser contradito. De tal forma que não se poderia anunciar uma opinião ou um desejo sem expo-los ao mesmo tempo às eventuais objeções dos interlocutores” (Ducrot, op. cit.).

Esta teoria de Ducrot pode ser identificada em [F.2]:

Diante da reclamação dos alunos, já irritados, para que a aula fosse encerrada, o professor silenciou e continuou a aula interrompendo-a apenas minutos após o término programado. Este silêncio pode ter tido a motivação de, entre outras coisas, evitar um conflito.

O fragmento [F.2] é marcados por reclamação dos alunos x silêncio do professor. Conforme Ducrot , a pessoa interrogada vê impor-se a ela a obrigação de responder. Porém, vemos que nas situações analisadas, diante da pergunta da aluna, o professor, ao contrário do esperado, não responde. A manutenção do diálogo é possível quando há espaço para a argumentação; a atitude do professor em manter o diálogo mostraria um cuidado com o outro do discurso. Notamos que não há esse cuidado do professor diante de seus ouvintes (os alunos). Diante de alunos inflexíveis o professor prefere ser também inflexível.

PARTE II – O JOGO DE IMAGENS
A partir da análise dos Atos de Linguagem feita na PARTE I, podemos perceber uma imagem que vai sendo construída de um sujeito para o com o outro, e também destes sujeitos para com o seu referente. A importância dos Atos de Linguagem para o estudo das Imagens está, dentre outras coisas, no entendimento de que há uma ação por trás do dizer, o que pressupõe um compromisso com o dito por parte do enunciador diante de seu ouvinte; sendo assim, a atitude do enunciador em relação ao seu enunciado também reflete na construção de sua própria imagem.

As considerações a seguir são as percepções que eu tenho em relação à construção das imagens feitas pelos próprios sujeitos. Estas considerações estão baseadas no esquema proposto por M. Pêcheux, ao salientar a importância da imagem que se fazem mutuamente destinador e destinatário, e ainda, baseiam-se no acréscimo feito por Osakabe ao mesmo esquema :

Imagens construídas pelo professor (analisadas em [F.1] e [F.2]):
Segundo Osakabe , “quem enuncia é, no momento específico em que enuncia, a entidade dominante, na medida em que é ela quem manipula as coordenadas do discurso”. Sendo assim, a entidade dominante seria ora um sujeito da interação, ora outro. Porém, há uma especificidade em [F.1] no qual, ao dizer “você vai mudar de lugar, sente-se aqui”, o professor dá uma ordem. Para Ducrot , o ato de ordenar exige uma certa hierarquia entre aquele que comanda e aquele que é comandado. Isto parece ser indício de que a imagem que o professor faz de si mesmo é a de quem comanda a aluna e, ainda, a de quem está em condições de dar aquela ordem. Sendo assim, a imagem que ele faz da aluna é a de que ela pode ser comandada e, ainda, que deve ser conduzida a obedecer. Em [F.2] a imagem que o professor faz de si é a de quem tem o direito de não responder à aluna e de ultrapassar o horário normal de encerramento da aula. O assunto a que se referem os enunciadores em [F.1] é a conversa. A imagem que o professor parece fazer da conversa entre os alunos durante sua explicação da matéria é a de que ela é inadmissível.

Imagens construídas pelos alunos (analisadas em [F.1]):
Em [F.1] parece que a imagem que os alunos fazem de si mesmos é a de igualdade perante o professor, na medida em que a aluna.1 é tão autoritária quanto ele, e na medida em que a aluna.2 questiona a conversa do professor em um outro momento. A imagem que os alunos parecem fazer do professor é a de quem não ocupa o lugar que pensa ocupar (de autoridade). A aluna.1 não aceita a ordem dada pelo professor, não aceitando sua autoridade. Em relação ao referente - a conversa paralela -, os alunos mencionados parecem achar que ela pode ocorrer no momento de explicação do professor.

Cabe aqui uma reflexão maior sobre o referente - a conversa paralela -. Em [F.1] o aluno opõe a conversa à cópia, isto é, para ele a conversa só atrapalharia a cópia da matéria colocada pelo professor na lousa; assim, ele argumenta que pode ficar conversando durante a explicação do professor, pois estará copiando. Parece que há uma cultura já instalada de que a conversa não atrapalha e que o aluno pode ter liberdade para expressar o que quiser e na hora que quiser em sala de aula, isto porque “uma certa pedagogia criou uma certa teoria da carência, a de que o aluno é carente de afeto, de estímulo, de atenção, ou mais disso e aquilo outro e ao professor foi atribuído um lugar de suplência, de tampão desta carência” (Riolfi, 99). Há, ainda, aqueles que promovem o ensino centrado no aluno em nome da democracia (Noblit, 95). Essa cultura é denunciada mais ainda pela fala da aluna.2 em [F.1]: “é impossível ficar a aula toda sem falar nenhuma palavra”.

Uma outra reflexão que é importante ser feita refere-se ao fato de o aluno opor a conversa à cópia, mas não à aula ou à concentração. Ele argumenta que ficaria conversando, mas que não deixaria que a conversa atrapalhasse sua cópia (veja [F.1]). Certamente, ele não poderia dizer que a mesma conversa não atrapalharia sua concentração. Parece que o mais importante é ele estar conseguindo copiar, mesmo que não esteja concentrado na aula; assim, parece que a conversa ou o “bate-boca” é mais valorizado que a razão, o conhecimento. Da mesma forma, o professor parece não valorizar a razão, uma vez que ele silencia não contribuindo para um avanço na compreensão do que seja uma aula e a relação com o conhecimento. Ao silenciar, o professor evita sim o “bate-boca”, porém, perde a oportunidade de construir um espaço de debate no qual se poderia aprender exercitar a habilidade no manejo do discurso. O poder exercido pelo professor, ao invés de transformar o aluno em um objeto, deve promovê-lo como sujeito e confirmar sua capacidade de lidar com essas novas situações .

PARTE III – O (NÃO) ASSUJEITAMENTO
Em uma reflexão mais subjetiva sobre as PARTES I e II deste trabalho, parece-me que os discursos, tanto dos professores quanto dos alunos daquelas determinadas turmas de 3o ano do Ensino Médio, estão condicionados às suas situações histórico-sociais . Nas situações observadas, os discursos de ambas as partes não caminham para uma melhor interação professor/aluno.

A imagem que os alunos vão construindo do(a) professor(a) é uma imagem negativa (veja [F.3]) que parece ser resposta às atitudes do professor que: é autoritário ([F.1]); não dialoga com os alunos ([F.2]); quebra as regras acordadas sobre o horário do término da aula ([F.2]); etc. O professor, por sua vez, parece construir uma imagem também negativa em relação aos alunos, pois esses: são respondões ([F.1]); não respeitam o lugar do professor ([F.1]); etc. As imagens construídas pelos sujeitos acabam por determinar, nestas situações, as ações que regem a interação entre eles (“um eu não define, por si só, a ação a ser empreendida; é preciso que ele tenha sua imagem do tu ou que o tu forneça essa imagem)” . Em nosso caso, as imagens construídas são negativas e as ações realizadas também são negativas (o autoritarismo, o não ouvir, o não-respeito à posição do professor, o não ensinar etc.).

Conforme visto, o sujeito pode ser, muitas vezes, condicionado pela ação/imagem do outro, porém, a meu ver, não podemos afirmar que seja sempre assim. Afirmar este modelo de determinação é cair no pessimismo e considerar o sujeito morto, incapaz de agir sobre a situação. Parece-me que o discurso da determinação do sujeito é reforçado por J. Searl quando ele diz que o ato de perlocução é conseqüência do ato de ilocução; isso significa afirmar que, em nosso corpus, a aluna.1 em [F.1] respondeu de forma autoritária ao professor justamente porque este também foi autoritário. Porém, diante desta teoria não poderíamos explicar a atitude do aluno com quem a aluna.1 estava conversando, o qual, ao receber a mesma ordem do professor, obedeceu em silêncio. Esta situação nos remete às palavras de Geraldi, as quais nos ajudam a refletir sobre o assunto:

“Enquanto a coerção (física ou simbólica) incide diretamente sobre as ações dos sujeitos, determinando-as ou proibindo-as, independentemente do grau de ‘convencimento’ ou ‘persuasão’ dos agentes a propósito das vantagens ou desvantagens de agir (ou deixar de agir) de uma determinada forma, as ações lingüísticas sobre o outro incidem sobre as motivações para agir. Como estas motivações podem ser de diferentes ordens e resultam dos diferentes modos de como cada sujeito se põe diante do mundo, alterar tais motivações demanda construir, pelo discurso e para o interlocutor, novas motivações que alterem as anteriores ou que as reforcem, já que a adesão dos sujeitos a suas crenças e a suas representações do mundo é sempre de intensidade variável” (itálico meu).

Ao invés de pensar sobre um sujeito que não tem saída diante da situação vivida, podemos pensar na possibilidade que ele tem de modificar esta situação. Se as ações lingüísticas sobre o outro incidem sobre suas motivações para agir, é importante, e é preciso que o discurso em sala de aula e sobre a sala de aula mude, influenciando as crenças e as representações do mundo dos sujeitos envolvidos. Adoto aqui também a perspectiva de Fairclough, para quem o discurso pode ser socialmente constitutivo, ou seja, pode contribuir para a construção das posições dos sujeitos, das relações sociais entre as pessoas e ainda, para a construção de sistemas de conhecimento e crença . É preciso, então, considerar a capacidade que os sujeitos, um a um, têm de agir socialmente por meio de seu discurso. Porém, conforme o autor nos alerta, não se pode cair em nenhum dos extremos: de um lado, na determinação social do discurso e, de outro, na construção do social no discurso. Fairclough defende uma relação dialética entre o discurso (que tem implicação nos fatores sociais) e os fatores sócio-históricos (que implicam no discurso). Pensando em tudo isso, não é negativo o fato de ter havido discórdia em [F.1], por exemplo, se pensarmos que é necessário que haja o dissenso para chegarmos ao consenso; o consenso pode não ocorrer de todo (e nem precisa), mas o importante é que haja interesse em se encontrar os pontos comuns para que assim a interação possa ir sendo construída.

CONCLUSÃO
É importante esclarecer que apenas o corpus analisado neste trabalho não serve como representatividade do que realmente acontece nas interações em sala de aula dos 3os anos do Ensino Médio em escola pública. De qualquer forma, escolhi este corpus porque me chocou a falta de espaço para a expressão em sala de aula, o que envolveria o diálogo e a negociação nas situações de conflito. A meu ver, todas aquelas questões levantadas pelos alunos precisam ser ouvidas e discutidas, entretanto, se não forem abordadas em um ambiente propício não se chegará a lugar nenhum. É preciso, então, construir este ambiente propício para expressão do aluno, atentando-se, acima de tudo, à necessidade de haver um espaço de interlocução entre professor/aluno em condições de efetiva interação pessoal, sem a qual é impossível falar em linguagem (Franchi, 86). Estas questões nos remetem novamente a Fairclough que, ao escrever sobre o discurso e a mudança social, diz: “as pessoas fazem escolhas sobre o modelo e a estrutura de suas orações que resultam em escolhas sobre o significado (e a construção) de identidades sociais, relações sociais e conhecimento e crença” . Olhando novamente para o nosso corpus, o enunciado “sente-se aqui”, por exemplo, poderia ter sido dito de outra maneira, como “você poderia sentar-se aqui?”. Por que o professor usou esse enunciado e não outro?

Meu interesse primeiro, a partir deste trabalho, é investigar essas mesmas questões em outras escolas que atendem públicos de diferentes níveis sociais (escola pública de periferia; escola particular de periferia; escola pública de região mais nobre; escola particular de região mais nobre) a fim de chegar a uma representatividade que nos permita enxergar melhor como essas questões têm sido lidadas em sala de aula.

Meu interesse em um âmbito mais abrangente é, por meio da pesquisa, alertar a todos nós sobre a necessidade de fugir do senso comum de que o aluno deve expressar o que quiser, na hora que quiser e da maneira que quiser; porém, é necessário, para além disto, construir no dia a dia da sala de aula um ambiente propício, isto é, atentar-se aos usos da linguagem, em como são construídos os sentidos a fim de poder usá-los para uma melhor interação professor/aluno.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUSTIN, J.L. How to do Things With Words. Oxford: Oxford University Press, 1962.

BENVENISTE, É. Problemas de lingüística geral I. Trad. De Maria da Glória Novak e Maria
Luisa Néri; revisão do Prof. Isaac Nicolau Salum. 4a ed. Campina/SP: Pontes, 1995
BOURDIEU, Pierre. “O que falar quer dizer”. In: Questões de Sociologia. Rio de Janeiro:
Editora Marco Zero Limitada, 1983.

DUCROT, O. Dizer e o Dito. Revisão Técnica da Tradução: Eduardo Guimarães.
Campinas/SP: Pontes, 1987.

__________ . Princípios de Semântica Lingüística (dizer e não dizer). Tradução: Carlos Vogt
et. ali. São Paulo: Cultrix, 1972.

DUCROT, O., TODOROV, T. Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem.

Tradução: Alice K. Miyashiro et. ali. 3a ed. São Paulo: Perspectiva, 1972.

FAIRCLOUGH, N. Discurso e Mudança Social. Cood. Tradução: Izabel Magalhães.

Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

MATEUS, M. H. M. et. Ali. Gramática da Língua Portuguesa. 4a ed. Lisboa: Editora
Caminho, 1989.

NOBLIT, G. W. “Poder e desvelo na sala de aula”. In: Revista da Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo. V. 21. N. 2. Jul/dez 1995. Pp. 119-137

OSAKABE, Haquira. Argumentação e Discurso Político. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes,
1979.

PÊCHEUX, M. “Análise Automática do Discurso”. In: Por uma análise automática do
Discurso: uma introdução a obra de Michel Pêcheux. Tradução: Bethânia S Mariani
et. ali. 2a ed. Campinas/SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1969.

RIOLFI, C. R. “Escola e violência: uma dúzia de pontos para pronto socorro”. In: Quaestio. Revista de Estudos de Educação. V. 1, n. 2. Sorocaba, SP: UNISO, 1999. Pp. 31-48
SEARLE, JH. R. Les actes de langage: essai de philosophe du langage. Trad. francesa de
Hélene Pauchard. Paris: Hermann, 1972. [Orig. Speech Acts]

A N E X O


FRAGMENTOS


[F.1] Final de uma aula do professor titular: a aluna.1 conversava durante a explicação do professor e houve o seguinte diálogo:
Professor: Você vai mudar de lugar, sente-se aqui. (tom autoritário)
Aluna.1: Por quê? Explica o porquê. (tom autoritário)
Professor: Porque eu quero que você sente aqui. (tom autoritário)
Aluna.1: Isso não é explicação!
(O professor não insistiu no assunto e pediu para o outro aluno, com quem a aluna estava conversando, mudar-se de lugar, e ele obedeceu).
Outros alunos reclamaram ainda na mesma aula:
Aluno: Professor, o senhor não pode dizer que não estamos copiando a matéria só porque estamos conversando um pouco.
Aluna.2: É impossível ficar a aula toda sem falar nenhuma palavra. O senhor também estava conversando uma hora...!
(Não houve continuação do assunto);

[F.2] Final de uma aula de sexta-feira: os alunos, irritados, reclamaram:
Aluna.1: Professor, chega, estamos cansados, hoje é sexta-feira!
(O professor não deu atenção e continuou a pedir para alguns alunos conjugarem verbos oralmente).
Aluna.2: Que isso, professor, que saco! Chega! Estamos cansados!
(O professor continuou não dando atenção e dispensou os alunos alguns minutos após o horário normal de término da aula).

[F.3] Frases escritas pelos alunos em uma redação cujo título foi “O Ensino Médio em Escola Pública”:
• “Alguns professores ganham para não fazer nada, faltam, faltam e ganham tomam o lugar dos recém-formados...” (aluna no 27);
• “Os alunos aprontam sim, mas tem os que estudam e esses não têm ouvidos para expor os seus problemas(...). Há professores que deixam o profissionalismo de lado e levam para o lado pessoal, aí quem é prejudicado? Claro que o aluno.” (aluna no 47);

 
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