Miguel Rettenmaier
O título desse trabalho evidentemente é
uma referência ao conhecido texto de Harold Bloom, de julho de 2000,
“Can 35 million book buyers be wrong? Yes.” , no qual o renomado
crítico norte-americano ataca frontalmente a obra de Rowling. Situando-a
como parte de uma vasta literatura considerada por ele inadequada, estética
e ideologicamente, para crianças e para adultos, e detratando narrativa
de Harry Potter segundo critérios que a julgam pouco ou nada original,
Bloom inequivocamente retoma, com seus argumentos mais candentes, uma
tradicional postura que, mesmo desde antes da “invenção”
do leitor, na modernidade, buscou reprimir práticas de leitura
e silenciar os textos e os leitores que se insubordinassem ao controle
e à interdição das autoridades encarregadas da manutenção
da ordem social e da organização política. Na ditocomia
entre certo e errado, Blomm reaviva antigas tensões, e coloca,
na atualidade dos debates sobre a leitura de jovens, a necessidade de
se pensar suas preferências e escolhas sem o olhar inquisitorial
de um tribunal do Santo Ofício e sem as reservas de um pensamento
excessivamente didatizante. Harry Potter é,a cima de tudo, uma
personagem “do bem”.
A preocupação com as eventuais influências que determinados
livros podem trazer aos leitores de alguma maneira reproduz um medo senão
muito antigo, pelo menos não muito novo, possivelmente situado
na aurora do pensamento moderno, nos estertores do período medieval.
Nesses tempos, os livros eram avaliados, antes de serem publicados ou
mesmo após sua publicação à revelia do desejo
das autoridades religiosas. As obras que, por algum motivo, constituíssem
ameaças à fé e à moral católicas, eram
arroladas no Index librorum prohibitorum, que vigorou entre 1559 e 1966,
sofrendo a última reimpressão em 1948.
Se, com o início da civilização “das luzes”,
a política de contensão pela fé e de defesa da virtude
cristã contra os pecados de heresias perdeu gradativamente a força
decisória, sua influência revigorou-se em uma ética
de “bons princípios” estabelecida na nova instituição
norteadora das massas: a escola. Defendida, assim como a família,
pelo liberalismo, como um espaço de formação moral,
a escola passou a decidir sobre a adequação de textos e
a legitimação de determinadas práticas de leitura,
na defesa de virtude e na exaltação da disciplina. Não
por acaso, data dessa época também a paulatina descoberta
da escola como, além de braço ideológico do Estado,
mercado auspicioso para o comércio de livros – de compêndios
didáticos, de antologias, de manuais, de dicionários...
de “boas” leituras...
O fenômeno Harry Potter (que ironicamente envolve um bruxo como
protagonista de uma extensa narrativa) reanima esses velhos medos. Por
não ter surgido de uma orientação de púlpito,
(como não o foram quase todas as obras da literatura) e, principalmente,
por ter prosperado em índices quantitativos impressionantes, à
revelia das imposições de sala de aula, a obra de Rowling,
destinada aos jovens e sem o aval das autoridades constituídas,
tem em si o perfil de uma leitura inadequada ou de uma desobediência
infantil. Aos antigos medos, nesse caso, se acrescentam novos receios,
relacionados às alterações históricas da sociedade
burguesa, agora assumidamente de consumo. Em uma nova conjuntura, as antigas
resistências das condutas disciplinares reafirmam-se contra os perigos
que, sob mutação, transformaram os antigos desejos proibidos
nos atuais sonhos aquisitivos. Atentos contra um mercado que procura produzir
não apenas bens de consumo, mas consumidores em massa ou consumistas
vorazes, entre eles principalmente os jovens, alertados para a quase invencível
força de atração do mundo dos subprodutos spin-off,
pais e professores temem de que o império dos shoppings e das lanchonetes
sepulte outros valores, mais autênticos, mais humanos. Por isso,
como adultos zelosos, muitos antipatizam sobretudo com aquilo que vende
muito, que vira moda, da mesma maneira como, em outros tempos, se temia
o que poderia dar prazer, o que poderia conceder satisfações
impuras ao corpo, o que poderia desencaminhar da direção
do dever. Harry Potter é uma dessas coisas que parecem “perigosas”,
mas definitivamente não é. Pelo contrário, se vista
sem preconceitos, a obra de Rowling pode ser considerada como “recomendável
aos jovens”, para usarmos o mesmo jargão das práticas
escolares.
A série Harry Potter merece, em primeiro lugar, consideração
pelo simples fato de interessarem aos jovens. Em outras palavras, os livros
de Rowling já seriam dignos de leitura apenas pelo fato de jovens
os desejarem. Nesse sentido, é importante que reconheçamos
que ler tais livros não é mais um entre tantos programas
hedonista propostos pelo mercado aos adolescentes, freqüentemente
mobilizados por delirantes promessas de entretenimento fácil ou
da satisfação vazia. Os livros de J.K Rowling, volumosos
e sem qualquer ilustração, são muito mais desafiadores
do que o videogame mais sofisticado. Na realidade, as exigências
que as obras de Rowling fazem a seus leitores são, aparentemente,
muito maiores do que qualquer outro tipo de texto enriquecido pela simultaneidade
das mídias de som, imagem e movimento. A interação
que pretende a autora de Harry Potter com seu leitor não é
aquela que proporciona respostas imediatas a estímulos sonoros
e visuais multiplicados. Como já constatou Nelly Novaes Coelho
, para lermos as aventuras do jovem bruxo, precisamos de um outro tempo,
diferente do tempo das máquinas: precisamos de um tempo vagaroso
que nos possibilite concentração interior. E na atualidade,
quando o automatismo e a velocidade impõem normas de conduta e
quando o culto à exterioridade define padrões de comportamento,
um objeto que se ofereça ao jovem, mediante uma suspensão
das ambições imediatistas e das imposições
do cotidiano, pelo jogo simbólico da narrativa literária,
merece, por si, não uma reação de suspeita, como
a de muitos adultos desconfiados, mas um sinal de respeito por conseguir,
de forma tão contundente, introduzir o desejo pelos livros no universo
dos jovens.
A série Harry Potter é digna de leitura também por
seu conteúdo. Cruzando elementos dos contos de fadas e do romance
policial, entre tantos intertextos, relacionando mitologias, recriando
antigas fábulas, reanimando narrativas bíblicas, aludindo
à História (com “H” maiúsculo) humana
e usando de uma linguagem despojada de descrições cansativas
ou de inovações formais, Rowling seduz o leitor pela ação
intermitente, pela seqüência de episódios de coragem
do herói, por suas surpreendentes descobertas na rota de suas investigações
contra o Mal, personalizado pelo vilão Voldemort. E essas histórias
não seguem a trivialidade das narrativas de massa, desenvolvidas
a partir de clichês e de estereótipos que colocam, no lado
do bem, heróis e heroínas perfeitas, que sempre vencem o
mal, representado por antagonistas imperfeitos, feios, pobres, monstruosos
ou mesmo diferentes, como os índios, os orientais, os mestiços,
os extraterrestres etc. Rowling não pretende acomodar a consciência
das crianças com um fio narrativo previsível, cuja solução
passa pela reorganização da vida com a vitória dos
padrões estabelecidos contra as perturbações do inadequado.
Harry Potter, embora permaneça, como uma espécie de “fábula
policial”, no tema da luta pelo bem, não reduz as alteridades
ao reino do mal. Pelo contrário, em todos os livros, principalmente
a partir do segundo, no qual surge a figura de Dobby, um elfo doméstico
escravizado, o tema da discriminação, do racismo e da violência
contra os diferentes é constantemente atrelado às aventuras
do herói. Seus grandes inimigos, os Malfoy, são representantes
exemplares de uma ideologia racista, embasada na intolerância e
no ódio contra os de “sangue-ruim”, frutos de casamentos
entre bruxos e não bruxos, e a vitória do protagonista sobre
esses adversários poderosos, acima de tudo, é a garantia
do triunfo de uma sociedade plural perante as doutrinas de pureza racial.
Outro ponto, porém, dignifica ainda mais a leitura das aventuras
de Harry Potter e tem relação justamente com um dos mais
fortes os argumentos usados por seus detratores, como Bloom. Acusada,
de escrever livros para “vender e se tornar sucessos no cinema e
na televisão”, Rowling seria responsável por “confeccionar”
uma máscara que ocultaria “o rosto cada vez mais estúpido
da era da informação” em um tipo de produção
que colaboraria para destruir a cultura literária , graças
a suposta seqüência de clichês localizados em sua obra
pela crítica especializada. Tal exigência de originalidade,
porém, falha não apenas por contestar as tendências
dos estudos literários da atualidade, preocupados em refletir sobre
as relações intertextuais envolvidas na cultura e sobre
o diálogo entre os muitos textos que definem e dão razão
a cada enunciado de determinado gênero. Erra, sobretudo, ao não
“ler” as intenções de uma narrativa que, deliberadamente,
pretende “brincar” com o que lhe foi escrito anteriormente.
Parece claro que Rowling, além de jamais ter pretendido ser “original”
(e a composição de sua trama, à maneira de um romance
policial, comprova isso), escreve, contrariamente, apontando de forma
explícita para a tradição literária.
Psicanalista e professora de filosofia na França, em sua obra Harry
Potter: as razões do sucesso, Isabelle Smadja esmera-se em um trabalho
que tem um duplo propósito. O primeiro propósito, não
realizado de forma satisfatória, procura desenvolver uma interpretação
da obra de Rowling à luz da psicanálise e do consagrado
modelo de Bettelheim; o segundo propósito, mais acertado e valendo-se
de elementos realmente legíveis “nas” narrativas, refere
a forte intertextualidade manifestada nas narrativas de Harry Potter.
Para Smadja a obra da escritora “acende para nós um feixe
de fogos de artifícios de lendas, mitos e invenções
fantásticas, que explodem diante de nossos olhos tomados de admiração”
. Nesse aspecto, ao constantemente remeter a outros textos, Rowling parece
admitir que, em lugar de procurar a originalidade e a inovação,
busca mobilizar o que Barthes , a partir dos estudos de intertextualidade
de Kristeva, chama de “lembranças circulares”: invertendo
origens, tais lembranças têm a capacidade de fazer o texto
anterior provir do texto ulterior, em um revigoramento constante de toda
a cosmogonia literária no interior do texto lido. Assim, tanto
Potter, o órfão salvador, o herói marcado no corpo
para combater o mal, quanto seu maior inimigo, o serpentino Voldemort,
além dos centauros, dragões, lobisomens, unicórnios,
vampiros, elfos, ente tantos seres mágicos, retirados da mandala
sem início e sem fim das fabulações humanas, são,
todos, realizações provenientes de jogos de citações
que transcendem de sua circunstância a um amplo e enredado universo
de mitologias que lhe são tanto exteriores, porque parte de diferentes
culturas, quanto, interiores, pois essenciais à sua própria
condição ficcional e textual. Por isso a leitura das aventuras
de Harry Potter necessita ou ao menos solicita que relembremos o lendário
ao integrarem-se, por exemplo, na trama do jovem bruxo, a Fênix
ou o Basilisco nascido do sangue de Medusa. O exercício de bricolagem
organizado por Rowling, que pretende fundir e unificar, segundo Smadja,
“os grandes relatos da humanidade” , não é mera
cópia do já inventado, mas uma espécie de recordação
que revigora as tantas histórias que possibilitaram à autora,
em sua formação leitora, o contato com o imaginário,
nas viagens aos paracosmos mágicos consentidas pela literatura.
Nesse caminho, em que “o livro faz o sentido, o sentido faz a vida”
, a leitura de Harry Potter parece querer reintegrar seu leitor, via contato
com o mágico e com a recordação do lendário,
em um mundo distante das “normalidades” da vida. Por isso
o resgata, juntamente com o protagonista, da Rua dos Alfeneiros, em um
bairro com “grandes casas quadradas com gramados perfeitamente cuidados”
em cujas casa, nas cozinhas, “cirurgicamente limpas”, há
“uma geladeira de último tipo e uma tela enorme de televisão”
. Como a operação de salvamento empreitada pela Ordem da
Fênix, a saga de Harry Potter tenta conservar, em seu leitor, os
resquícios de magia que o mundo convencional insiste em depurar.
Para que o jovem não se conforme em ser um trouxa, como é
chamado quem não tem “um pingo de sangue mágico nas
veias” , Rowling o enfeitiça com as mitologias do mundo tentando
oferecer lendas, onde há consumo, tentando reinventar antigos mitos,
onde há apenas aparências, tentando ilustrar as conquistas
de seu herói com o afeto verdadeiro, onde vigoram as hipocrisias
e os sentimentos mal resolvidos. De alguma forma, Harry Potter nos ensina
que os trouxas são os cegos que não lêem e a literatura
é a mágica que não carregam no sangue.
As obras de Rowling são, por tudo isso e por sua referência
constante aos tesouros das mitologias, uma homenagem apaixonada à
literatura, uma declaração de amor aos livros. Em torno
das peripécias do jovem bruxo, propõem a aventura da leitura
aos jovens e mostram que há mágicas possíveis na
realidade quase sempre sem graça do cotidiano: pela abertura de
um livro, pela contemplação da literatura, pela recordação
da beleza das fábulas, podemos, todo nós, trouxas que não
queremos ser, embarcar, pela “plataforma nove e meia”, no
Expresso para Hogwarts, com destino, assim, às bruxarias das narrativas
literárias.
Referências:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação
Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BARROS, Diana Luz Pessoa de & FIORIN, José Luiz (Org.) Dialogismo,
polifonia, intertextualidade.2 ed. São Paulo: EDUSP, 2003.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 4 ed. São Paulo: Perspectiva,
2004.
BLOOM, Harold. Can 35 million book buyers be wrong? Yes. Wall Street Journal,
11 July 2000.
___. Elas não são idiotas. Época, n. 246, fev. 2003.
Entrevista concedida a Luiz Antônio Giron.
COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário.
Narrativa infantil e juvenil atual. São Paulo: Global, 2003.
JACOBY, Sissa & RETTENMAIER, Miguel. Além da plataforma nove
e meia: pensando o fenômeno Harry Potter. Passo Fundo, RS: EDUPF,
2005.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira. História
e Histórias. São Paulo: Ática, 1984.
RETTENMAIER, Miguel; RÖSING, Tania; SALDANHA, Márcia. (Org.)
Leitura, identidade e patrimônio cultural. Passo Fundo,RS: EDUPF,
2004.
SMADJA, Isabelle. Harry Potter: as razões do sucesso. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2004.