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  GLOBALIZAÇÃO, IDENTIDADE E (DES)ENRAIZAMENTO: A TRAJETÓRIA IDENTITÁRIA DO PROFESSOR COOPERADO NO CENÁRIO DA MODERNIDADE.

Vera Luísa de Sousa - Universidade Estadual Paulista – UNESP

Como se não bastassem os vários aspectos envolvidos na construção da identidade do professor – implantação do estatuto profissional, configuração sócio-histórica e econômica da sociedade e de seus sistemas de ensino, políticas e legislação educacional, dentre outros -, a contemporaneidade tem apresentado novos elementos para complexificar ainda mais esse processo. Se essa construção fosse concebida como uma tessitura, tal qual um bordado, certamente globalização e enraizamento/desenraizamento seriam dois novos ‘pontos’ da composição. Poder-se-ia ainda imaginar que o tecido no qual o bordado se faz resulta da mescla entre modernidade e mundo do trabalho. Assim descrito, tal processo poderia ser vislumbrado a partir do entrelaçamento dos conceitos: identidade, globalização e enraizamento/desenraizamento.
Esta foi a tarefa empreendida no percurso de uma pesquisa realizada com um grupo de professoras associadas em uma cooperativa de prestação de serviços educacionais a uma escola da rede privada de ensino, no interior de Mato Grosso do Sul.
Tendo em vista o objetivo da pesquisa - traçar a trajetória identitária das professoras a partir de sua contextualização no espaço-tempo do mundo do trabalho globalizado, no cenário da modernidade -, buscou-se a fundamentação nos conceitos listados acima. Apresentar a discussão desses conceitos e apontar algumas considerações sobre a pesquisa é, pois, o objetivo do texto.


SITUANDO O UNIVERSO DA PESQUISA

Como ponto de partida tomou-se a idéia de que o projeto do capital aliado à crise da modernidade gerou conflitos no processo de construção das identidades. Esses conflitos podem ser traduzidos em duas tendências contemporâneas aparentemente antagônicas. De um lado, a expansão da globalização e, de outro, o enfoque nas disposições individuais. Quanto mais são ampliadas as possibilidades de deslocamento de indivíduos, grupos ou elementos culturais no espaço social global - desenraizamento -, mais forte é o desejo de identificação local, de cultivo e fortalecimento de laços enraizadores.
Se até princípios dos anos 70, os trabalhadores contavam com as garantias do Estado de Bem-Estar-Social e com a segurança do emprego, a partir da aceleração da globalização e de seus reflexos - abertura dos mercados, impossibilidade dos países periféricos concorrerem com os países centrais, endividamento dos países em desenvolvimento junto às instituições financeiras internacionais e veloz revolução tecnológica -, a classe trabalhadora tem vivenciado um profundo processo de perdas legais, materiais e subjetivas.
Algumas investigações nesse campo têm decretado o fim da centralidade da categoria trabalho e o próprio fim da classe trabalhadora. Para Antunes (2000), no entanto, essas são conclusões simplistas. Ele admite que "[...] houve uma diminuição da classe operária industrial tradicional”. Mas, observa a ocorrência de “[...] uma significativa heterogeneização, complexificação e fragmentação do trabalho” (Ibid., p. 209), indicando a diminuição do operariado industrial e ampliando as formas de trabalho precarizado.
Desligados compulsoriamente de seus locais de trabalho e desejosos de voltar a produzir e a garantir a sobrevivência da família os trabalhadores brasileiros estão buscando como alternativa a criação de empresas de economia social, popularmente conhecidas como cooperativas. No caso dos profissionais docentes a diminuição dos concursos para a efetivação nas redes estaduais e municipais tem sido o elemento desencadeador da busca por alternativas.
Relembrando as origens brasileiras do magistério como profissão, situadas na passagem do século XIX para o XX, constata-se a sua concomitância à ordenação da vida republicana com suas inaugurações - eleições para cargos públicos, urbanização acelerada, industrialização, constituição das classes sociais, organização do movimento sindical, etc. -, dentre as quais se quer destacar a forte presença do Estado como empregador.
Neste panorama, ocorre a chamada ‘funcionarização’ do professor. Ou seja, a contratação prioritária de professores pelos governos municipal, estadual e federal, configurando o magistério como atividade estável, segura e garantidora dos direitos do professor. É fato que foram necessárias muitas reivindicações e lutas para que fossem conquistadas melhores condições de trabalho - estabelecimento de uma jornada, criação de sindicatos, melhorias salariais, etc. -, mas aqueles foram tempos de espaço garantido para o professor.
As participantes da pesquisa simbolizam a figura do novo trabalhador flexível, (re) qualificado, adaptado à nova ordem, ou seria trabalhador destituído de direitos garantidos nas lutas passadas, part-time, precarizado!?
É possível ao professor tecer uma identidade neste cenário de inseguranças e incertezas?
O EIXO CONCEITUAL: GLOBALIZAÇÃO, IDENTIDADE E (DES) ENRAIZAMENTO

Do latim identitas, identitate, identidade se traduz inicialmente pela percepção do mesmo, do igual, daquilo que imprime caráter do que é idêntico. Por outro lado, traduz a busca do que é mais peculiar ao indivíduo, do que lhe confere o caráter de específico, que o distingue de outros indivíduos e lhe assegura que ele é ele mesmo. Identidade se traduz ainda por conformidade, ajustamento, comunhão, sugerindo um processo de identificação que permita a um indivíduo confundir-se com outra pessoa, de quem assume as características.
Maria Stela Lemos Borges

Considerando a epígrafe, verifica-se a oposição de significados inerente à própria etimologia da palavra identidade, indicando tanto o caráter do que é idêntico, quanto o caráter do que é específico em cada ser. O termo sugere ainda, a assunção de características externas ao sujeito que se constrói. Admitindo no processo identitário a existência de dois pólos - o privado: estável, individual, subjetivo e biográfico; e, o público: provisório, coletivo, objetivo e estrutural (DUBAR, 1997). Nomeados por António Teodoro, processos biográfico (privado) e relacional (público):
A produção das identidades resulta então da convergência de dois processos, o biográfico e o relacional. O primeiro, o da identidade para si, decorre no tempo e resulta de uma construção pelos indivíduos de identidades sociais e profissionais a partir de categorias oferecidas por instituições como a família, a escola, o mercado de trabalho ou a empresa, consideradas acessíveis e valorizantes. O segundo, o da identidade para os outros, diz respeito ao reconhecimento das identidades associadas aos saberes, competências e imagens que os indivíduos dão de si próprios nos sistemas de acção em que participam, num dado momento e num determinado espaço de legitimação. (TEODORO, 1998, p. 02).
No entanto, para se desenhar o contorno do processo identitário do sujeito contemporâneo é necessário ir além desses dois pólos, situando-o num contexto histórico determinado: a modernidade. Para esta tarefa, dois autores serão convocados Stuart Hall (2002) e Manuel Castells (2001).
Em “A identidade cultural na pós-modernidade”, Hall apresenta três concepções de identidade: a do sujeito do Iluminismo, a do sujeito sociológico e a do sujeito pós-moderno. Ao se deter em três formas distintas de construção da identidade, Stuart Hall, de certo modo, subdivide a modernidade em três fases, também distintas.
A primeira delas, coincidindo com o início da Era Moderna, está marcada pela figura do sujeito que encarna, na sua individualidade, a ‘essência universal’ do homem. A fase seguinte é a que se convencionou chamar modernidade tardia, na qual ocorre aquilo que o autor denomina ‘descentramento final do sujeito cartesiano’, caracterizado pelas rupturas nos discursos do conhecimento moderno levando à constituição do sujeito pós-moderno, fragmentado e desprovido de uma identidade fixa ou essencial, o que compreenderia a terceira fase.
Nos dois primeiros momentos da modernidade haveria, para o autor, uma identidade definida para os sujeitos que se encontravam enraizados no mundo social e cultural, porém a partir das mudanças estruturais promovidas pelo avanço da globalização econômica e cultural a possibilidade de se construir uma identidade fixa, sólida, perdeu-se. Em suas palavras:
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente (HALL, 2002, p.13).
Castells, por sua vez, reporta-se à análise das identidades construídas no contexto de tensão e conflito delineado pela ‘Era da Globalização’. Ao afirmar que a construção social da identidade sempre ocorre num contexto marcado por relações de poder, o autor apresenta três formas e origens de construção de identidades que têm permeado a modernidade. A identidade legitimadora, a de resistência e a de projeto.
Para ele, a identidade legitimadora dá origem à sociedade civil, com seus atores e suas instituições organizados de modo a reproduzirem “a identidade que racionaliza as fontes de dominação estrutural”. Esse tipo de identidade funciona como um instrumento que permite a continuidade e, ao mesmo tempo, a harmonização dos aparatos de poder do Estado e das instituições da sociedade civil. Se, por um lado, os aparatos de poder do Estado prolongam seu campo de ação/dominação, por outro lado, tais aparatos estão profundamente enraizados nas pessoas, o que confere uma aparência de conciliação ideal entre os interesses do Estado e as intenções dos sujeitos.
A identidade de resistência é aquela que propicia a formação de comunidades que resistem à imposição de valores, crenças, opções sexuais, enfim a todo tipo de dominação. Em outras palavras, possibilitam a organização de formas de resistência coletiva, apresentando um caráter defensivo. Castells denomina esses movimentos de resistência de “exclusão dos que excluem pelos excluídos”. Funciona como um mecanismo tanto de auto-afirmação dos excluídos, quanto de obstaculização das forças dos que excluem.
Finalmente, a identidade de projeto é aquela que ‘produz sujeitos’. Ao construir um projeto de vida que objetiva redefinir sua posição na sociedade, o sujeito estará ‘chacoalhando’ a estrutura social, deslocando suas bases. A identidade de projeto, desta forma, atua como perspectiva de mudança social.
Os dois autores permitem concluir que o processo identitário do sujeito moderno passa necessariamente pelas dimensões da modernidade, tais como: relações sociais de produção capitalistas; instituições burguesas, família, empresa, escola; Estado-Nação; ênfase ora no processo, ora no produto, etc., absorvendo seus elementos como partes de si constitutivas.
No entanto, o sentimento de pertencimento e de enraizamento das pessoas e das idéias a um grupo, uma cultura, um papel social, possibilitado pelo paradigma do racionalismo moderno, vem sendo progressivamente substituído pela insegurança, pela ausência de raízes. Especialmente após a expansão do processo de globalização econômica, cultural e tecnocientífica, que tem tornado o mundo um lugar de experiências fugazes, efêmeras, fugidias, as quais o homem não tem guardado, no íntimo de seu ser, como significativas em sua trajetória do construir-se.
A globalização, como se sabe, não é algo recente ou original. Mas, é também sabido que sua expansão e radicalização são produtos, sobretudo, das últimas décadas do século XX, pois como afirma Santos (2001):
Mesmo admitindo que existe uma economia-mundo desde o século XVI, é inegável que os processos de globalização se intensificaram enormemente nas últimas décadas. Isto é reconhecido mesmo por aqueles que pensam que a economia internacional não é ainda uma economia global, em virtude da continuada importância dos mecanismos nacionais de gestão macroeconômica e da formação de blocos comerciais (SANTOS, 2001, p. 289).
Para além de ser resultado da racionalidade técnica, a globalização também é produto da difusão do capitalismo como sistema produtivo e mesmo como “processo civilizatório”. No dizer de Ianni (2002):
Na medida em que se dá a globalização do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório, desenvolve-se simultaneamente a sociedade global, uma espécie de sociedade civil global em que se constituem as condições e as possibilidades de contratos sociais, formas de cidadania e estruturas de poder de alcance global. Nessa mesma medida, desenvolvem-se as relações e os processos característicos da globalização, formam-se as estruturas do poder econômico e político também característicos da globalização (IANNI, 2002, p. 205).
Neste contexto, as dificuldades enfrentadas pelo trabalhador aumentam cada vez mais de intensidade. Podendo-se sentir, dentre outras alterações no mundo do trabalho, a brutal disseminação do trabalho morto, a exigência, sempre renovada, por re-qualificação profissional e a aceleração dos processos de flexibilização do trabalho. Nesse metamorfosear do mundo do trabalho ocorre um outro tipo de metamorfose, a do próprio ‘ser’ do homem.
Tal processo tem afetado a formação da sociabilidade e da identidade humanas, provocando aquilo que Milton Santos (2002), denominou ‘confusão dos espíritos’: “A competitividade, sugerida pela produção e pelo consumo, é a fonte de novos totalitarismos, mais facilmente aceitos graças à confusão dos espíritos que se instala” (Santos, M., 2002, p. 37); e, Octavio Ianni (2002), de ‘desterritorialização’:

A fábrica global se instala além de toda e qualquer fronteira, articulando capital, tecnologia, força de trabalho, divisão do trabalho social e outras forças produtivas. Acompanhada pela publicidade, a mídia impressa e eletrônica, a indústria cultural [...] dissolve fronteiras, agiliza os mercados, generaliza o consumismo. Provoca a desterritorialização e reterritorialização das coisas, gentes e idéias. Promove o redimensionamento de espaços e tempos (IANNI, 2002, p. 19).

O que se mundializa não é somente o mercado - de ações, de capital, de produtos in natura ou processados, de postos de trabalho, etc -, é preciso, também, considerar o avanço de uma cultura sobre outra. E, mais do que isto, tem que se estar atento à ampliação, em escala global, do individualismo competitivo e danoso para as relações interpessoais.
Outro aspecto extremamente importante para se compreender o desenraizamento provocado pela globalização é a dissolução das categorias tempo e espaço promovida pelo avanço técnico dos meios de comunicação. A velocidade com a qual são transmitidas informações ao redor do planeta produz uma sensação de perda das noções de tempo e espaço. A notícia viaja num tempo infinitesimal, espalhando-se por todo o espaço geográfico da Terra, negando ao homem a possibilidade de pensar sobre ela, de digeri-la com cuidado. O que resta ao sujeito é a impressão de estar desenraizado de sua posição histórica e geográfica.
O distanciamento entre o homem e o seu tempo e o seu espaço, no sentido de experiências vividas no e com o seu entorno, desencadeia um processo de alijamento compulsório de sua identidade, fazendo com que ele não se reconheça no outro, ou, o que é pior, em si mesmo. Para Simone Weil (2001):

O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. Um ser humano tem raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos de futuro. Participação natural, ou seja, ocasionada automaticamente pelo lugar, nascimento, profissão, meio. Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber a quase totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos meios dos quais faz parte naturalmente (WEIL, 2001, p.43).

No entanto, ao aumentar as diferenças econômica e social a globalização ‘arranca’ de suas raízes o homem. Seja ao diminuir os postos de trabalho vivo; seja ao reservar as melhores terras ou lugares aos atores mais poderosos; seja ao massificar a cultura, anulando a individualidade por meio da homogeneização de gostos, paladares e desejos; seja, ainda, pela determinação do consumo como necessidade básica à sobrevivência humana.
Em todos esses casos exemplifica-se a perversidade do tipo de globalização que vem sendo produzida, confundindo, desterritorializando e desenraizando os sujeitos.
O processo de enraizamento não deve estar apenas ligado às relações locais, próximas, entre iguais. É possível e mesmo necessário que se estabeleça uma rede globalmente integrada que promova o universalismo prometido e desejado na modernidade. Tanto é assim que Weil (2001), afirmava na primeira metade do século XX:

As trocas de influências entre meios muito diferentes não são menos indispensáveis do que o enraizamento no entorno natural. Mas um meio determinado deve receber uma influência externa não como uma contribuição, mas como um estimulante que torne sua própria vida mais intensa. Não deve alimentar-se das contribuições externas senão depois de as ter digerido, e os indivíduos que o compõem não devem recebê-las senão através dele (WEIL, 2001, p. 43).

Porém, o tipo de globalização em curso refuta integralmente as recomendações de Simone Weil. As ditas contribuições, têm sido imposições de países centrais sobre os periféricos. Vide o protocolo de Kyoto, a guerra contra o Iraque, o desrespeito à ONU, etc., provocando nos sujeitos, de modo peremptório, uma crise de identidade. A velha segurança no desempenho dos papéis sociais e profissionais os abandonou. A certeza de dominar a linguagem falada e escrita, de compreender as regras do mercado de trabalho, de poder contar com leis trabalhistas protetoras, do acesso à informação por meio da notícia confiável. Todas essas certezas deixaram de sê-las.
A ênfase na necessidade de relações ‘flexíveis’ entre compradores e vendedores de força de trabalho desencadeia um forte sentimento de insegurança, medo e instabilidade nos trabalhadores, pois:
Hoje se usa a flexibilidade como uma outra maneira de levantar a maldição da opressão do capitalismo. Diz-se que, atacando a burocracia rígida e enfatizando o risco, a flexibilidade dá às pessoas mais liberdade para moldar suas vidas. Na verdade, a nova ordem impõe novos controles, em vez de simplesmente abolir as regras do passado — mas também esses novos controles são difíceis de entender. O novo capitalismo é um sistema de poder muitas vezes ilegível (SENNETT, 2001, p. 10).
Um bom exemplo da ilegibilidade apontada é o fato de que as pessoas não conseguem identificar o avanço desse poder sobre suas vidas privadas, que vai minando até mesmo o sentimento de pertencimento a grupos, nacionalidades e categorias profissionais.
Durante o século XX o desenraizamento do trabalhador era facilmente percebido no momento de seu ingresso na fábrica. Ecléa Bosi relata com propriedade esse movimento:
A escola, penetrada embora de valores burgueses, ou por isso mesmo, apela para o sentimento de identidade pessoal, exalta a força do indivíduo e a recompensa do mérito. Procura despertar no aluno o convívio com as plantas e animais, a curiosidade por terras distantes, pelos naturais de outros países. Precocemente ele ingressa na fábrica. Da noite para o dia ele se torna um complemento da máquina, uma coisa que deve obedecer ao ritmo da produção, e não importa quais sejam seus motivos para obedecer. As pessoas de outra classe desconhecem, a não ser em momentos de desagregação e doença, essa vertigem que o aprendiz experimenta de não mais existir. Começa para o jovem, para a criança egressa da escola, uma existência dobrada sobre a matéria, atenta às exigências da máquina, segregada como se fora outra humanidade (BOSI, 1987, p. 21).
Hoje porém, a característica desenraizadora do capital se apresenta muito mais diluída no fluxo intenso das categorias tempo e espaço, na precarização, no aumento da competitividade e da fragmentação, e, na administração organizada como ‘rede’ . Sob os lemas ‘não há longo prazo’, ‘o capital é impaciente’, ‘as pessoas estão famintas [de mudança]’ dissemina-se uma pedagogia invisível da ‘corrosão do caráter’:
[...] as redes institucionais modernas se caracterizam pela ‘força de laços fracos’, com o que quer dizer, em parte, que as formas passageiras de associação são mais úteis às pessoas que as ligações de longo prazo, e em parte que fortes laços sociais como a lealdade deixaram de ser atraentes. Esses laços fracos se concretizam no trabalho de equipe, em que a equipe passa de tarefa em tarefa e muda de pessoal no caminho (GRANOVETTER citado por SENNETT, 2001, p. 25).
Diante da lógica do ‘não há longo prazo’ é de se supor que o processo identitário das pessoas fique comprometido. Se há a possibilidade, sempre iminente, de que as relações sejam cortadas e as pessoas substituídas, faz todo o sentido a afirmação de:
[...] que o capitalismo de curto prazo corrói o caráter [...], sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável (SENNETT,2001, p. 27).
Expostos assim, a um momento histórico de mudanças na estrutura das sociedades e de suas instituições, os homens contemporâneos não devem permitir que o poder insidioso do ‘novo capitalismo’ seja aceito, absorvido e reproduzido irrefletidamente nas relações entre eles e, mais, nas relações entre vendedores e compradores de força de trabalho.
Isso equivale a afirmar que a cada integrante da sociedade civil cabe ocupar o seu espaço de responsabilidade no interior das mudanças, marcando posição no seu entorno e, como ensina Castells (2001):
[...] utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance [...] (construa) uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social (Ibid., p.24).
O que confirma a hipótese anunciada: “quanto mais as alterações sociais influenciam o trabalho docente — tanto na prática pedagógica, quanto na forma de organização para o trabalho —, mais a construção de uma identidade enraizada numa cultura profissional se faz necessária para o professor”. Portanto, ao professor cabe conhecer e reconhecer-se nas suas raízes para que a partir delas possa traçar uma “identidade de projeto”, comprometida com o salto qualitativo que poderá abrir ‘um’ dos caminhos para o resgate das sociedades humanas da deriva na qual se encontram.


A TRAJETÓRIA IDENTITÁRIA DAS PROFESSORAS

Nascidas e criadas na segunda metade do século XX, no interior do Brasil, numa região agroprodutora, conservadora e povoada por migrantes (sulinos e nordestinos) e imigrantes (italianos e japoneses), as professoras possuem fortes raízes interioranas, representando, alegoricamente, o sujeito moderno, que veio se descentrando ao longo das últimas décadas e perdendo, nesse processo, a ‘unidade’ do seu ‘eu’ biográfico.
Todas passaram pela escola pública, pelo ensino superior, pelo trabalho na rede pública, pela indecisão da escolha profissional, pelo casamento, pela maternidade, enfim são brasileiras que vivem no interior do país, mas que representam o sujeito apontado acima.
Donas de uma identidade razoavelmente fixa que lhes assegurava bom desempenho no papel de estudantes, trabalhadoras/funcionárias, esposas e mães, hoje se vêem em busca de uma identidade profissional que lhes confira o lastro necessário a sua segurança, aos seus direitos de trabalhadoras autônomas, ao desenvolvimento de sua profissionalidade e ao aperfeiçoamento de sua práxis.
Elas precisavam trabalhar, não encontraram vaga em outras instituições. Submeteram-se ao processo seletivo da cooperativa, ou, como em alguns casos, foram convidadas por amigas ou conhecidas já associadas. No princípio, houve todo um encantamento. Nas palavras de uma delas: “Eu tinha uma expectativa grande, assim grandiosa quanto à cooperativa....”, que foi se deslocando aos poucos, deixando à mostra fragilidades, descontentamentos e, principalmente a angústia frente ao desconhecimento sobre o modo de organização da cooperativa.
As coisas não estavam muito claras. Se não havia um patrão, elas deveriam tomar as decisões relativas a todas as fases do seu processo de trabalho. Desde a elaboração da proposta para concorrer na licitação até a escolha do material didático a ser utilizado em sala de aula. Afinal, haviam contribuído igualmente com a quota de associação à cooperativa, eram sócias num empreendimento educativo.
Estavam enganadas, as professoras. Assim como o estava o sujeito cartesiano, que depois dos descentramentos fundamentais pelos quais passou no século XX, viu sua verdade radicalmente racional ser posta em xeque pelo materialismo histórico, pela descoberta do inconsciente, pelo estruturalismo, pelo poder disciplinar e, finalmente, pelo movimento feminista. Não eram, como imaginaram, sócias num empreendimento educativo, mas prestadoras de serviços educacionais ‘agenciadas’ pela diretoria da cooperativa. Suas vozes não são ouvidas, suas reivindicações engavetadas, sua ignorância, acerca da organização estrutural da cooperativa, alimentada.
Certamente o problema mais grave enfrentado pelas professoras está diretamente ligado às mudanças que estão deslocando as estruturas que organizaram o mundo do trabalho durante boa parte do século passado.
As referências profissionais ou metaforicamente as raízes das professoras estavam fincadas na estabilidade das redes públicas. Seja como estudantes, profissionais ou mães, a escola pública balizou suas trajetórias. No entanto, estão agora submetidas a condições de organização para o trabalho completamente diferenciadas. São autônomas , mas o seu desejo mais evidente é passar à condição de ‘empregadas’.
Pressente-se o medo e a insegurança sentidos por essas mulheres diante da novidade de pertencerem a uma cooperativa. O que desejam é a estabilidade e a segurança - raízes antes sólidas -, de um “emprego com registro em carteira”.
Contudo, nem mesmo a percepção da desvalorização e a sensação de alienação - certamente representantes da perda das raízes sociais e institucionais da profissão -, afugentam o desejo do (re)enraizamento, da criação de uma identidade profissional entre elas. Há um comprometimento evidente das professoras com a docência, assim como há um interesse crescente em conhecer mais a fundo a organização da cooperativa e em participar mais ativamente do processo decisório que desenha o seu futuro profissional. Tais observações indicam traços identitários comuns entre elas: o compromisso com a profissão e com o desenvolvimento da profissionalidade.
A análise dos depoimentos também possibilitou estabelecer uma relação entre o processo identitário das professoras e as dimensões da construção da identidade descritas por Castells (2001): identidade legitimadora, identidade de resistência e identidade de projeto.
As professoras encontram-se na passagem da primeira para a segunda dimensão. Assumem as regras e normas impostas pela diretoria da cooperativa e pela instituição contratante, no entanto já começam a questionar a passividade com que aceitam esse ‘domínio’ institucional.
Sugerindo a emergência da ‘identidade de resistência’, confirmada pela defesa dos seus interesses e pelo questionamento àquelas regras e normas. E, se a teoria de Castells (2001) se aplicar a esse grupo de pessoas significa que há grandes chances de que venham a desenvolver a ‘identidade de projeto’, a partir da redefinição de suas atitudes e de seu posicionamento no interior da cooperativa, da instituição contratante e da própria sociedade da qual são elementos formadores.
Em suma, a conclusão, possível e provisória, aponta para a insatisfação das professoras com a associação na cooperativa. No entanto, este fato não altera a clara consciência da importância de cultivar as instâncias pedagógica e profissional. Ao contrário, as instiga a fazê-lo com mais veemência. Mostrando seu desejo de: desenvolver a profissionalidade; ter acesso à formação contínua; e, de superar a precarização de sua condição de trabalhadoras.
Estas são professoras de um tipo especial, que lutam contra a adversidade de sua realidade, mesmo quando não têm consciência de que o fazem. Importam-se, sobretudo com as relações que travam com seus alunos. O plano pedagógico de sua atividade é visivelmente destacado. Incansáveis, depositam esforços e esperanças na formação sempre, sempre contínua. Mesmo que, por vezes, se sintam perdidas frente à tarefa de identificar o novo papel da escola; paralisadas diante das novas concepções e usos das categorias tempo e espaço as professoras buscam, fuçam, não desistem, porque sabem o que são e não querem deixar de sê-lo. Como se fôra por instinto, lutam contra as inseguranças do contrato temporário de trabalho; da debilidade dos cursos de formação inicial; da quase inexistência de cursos de formação em serviço; da desvalorização social crescente. Ainda que as raízes estejam sendo arrancadas, há o espírito da seiva a lhes soprar ânimo, a lhes conduzir para o caminho da palavra, da construção do conhecimento junto ao seu aluno, da pressentida necessidade de buscarem suas identidades de mulheres, cidadãs e professoras do século XXI.

Referências Bibliográficas

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